Quando o céu nos cai em cima

Acabara de almoçar e estava sentado no sofá da sala a relaxar um pouco antes de voltar ao trabalho, quando tocou o meu telemóvel. Olho e vejo no mostrador o nome da minha mulher: LUISA. “Mas o que é que se passa? Porque será que me está a telefonar se ela está cá em casa?” Carrego na tecla verde e digo “Estou?” mas do outro lado ninguém me responde. Intrigado, dirijo-me apressadamente à casa de banho para onde fora e encontro-a sentada mas tombada sobre o lado direito, sem dar acordo de si. Seguro-a nos braços e chamo por ela mas não reage, não dá sinal de me reconhecer nem de perceber que estou a falar com ela.

Peço ajuda à Dita que vem logo a correr e ainda conseguimos levantá-la e vesti-la, mas continua ausente. Na emergência, chamo os Bombeiros de Lousada, que são rápidos a chegar, a transferi-la para a maca e a meterem-na na ambulância. A Teresa acompanha-a na viagem até ao Hospital Padre Américo, enquanto agarro roupas e documentos, seguindo logo atrás. Pela cabeça passa-me um mundo de pensamentos, mas empurro os negativos e construo a esperança de que não é nada de grave e que depressa a Luísa estará novamente em casa.

Já no hospital retiram-na da ambulância e empurram a maca para as portas da Urgência, por onde desaparece, enquanto acompanho um bombeiro ao guichet da recepção para fazer a ficha de admissão. Retiro do bolso os seus documentos e dou as indicações que me pedem, um tanto perdido, como se me visse no meio de um filme a que não pertenço. Dizem-me para esperar na sala de acompanhantes mas, dado o estado em que se encontra, peço e autorizam-me a ficar junto dela na zona de triagem, onde lhe colocam uma braçadeira laranja, quando eu esperava uma vermelha por me parecer que a situação era grave.

Não reclamo, até porque acho que todos consideramos que os nossos casos são sempre os mais urgentes (costumo dizer que as maiores dores são sempre as nossas, porque as nossas nós sentimo-las e as dores dos outros sentimo-las no momento mas, afastados, depressa as esquecemos). Pouco depois levam-na para dentro mas não me é permitido ir mais além e tenho de ficar cá fora, confrontando-me com uma sensação de impotência, de nada poder fazer senão esperar. Dou comigo a pensar que hoje eu faço parte “dos outros”, porque costumamos pensar que estas coisas só acontecem aos outros (mas, para os outros, nós somos os outros).

Telefono ao filho que está em viagem e que se apressa a regressar para acompanhar a mãe, e a outros familiares e amigos, informando-os do ocorrido, procurando alguém que consiga chegar até ela dentro do hospital para ter informações permanentes. Esperar sem notícias é motivo de angústia pois, mesmo que não digam o que queremos ouvir, qualquer informação sempre nos alimenta a esperança na espera.

O diagnóstico foi derrame cerebral que fez com que fosse transferida para o Hospital de S. João. Ao outro dia parecia que não tivera nada mas, quinze dias depois e ainda dentro do hospital, repetir-se-ia o derrame de uma forma mais violenta que a levou para os cuidados intensivos, a um coma induzido durante vários dias, a infeções hospitalares e não sei quantas coisas mais ao longo de três longos meses, seguidos de muitos mais em convalescença noutros hospitais, com duas pernas partidas durante a recuperação, fazendo dela uma sobrevivente.

Passei a conhecer a rotina das visitas hospitalares, os dramas de doentes e familiares, o sofrimento contido e a solidão, a incerteza da espera, alguns excelentes profissionais de saúde e a qualidade do nosso SNS, a solidariedade que é mais forte no sofrimento do que na alegria, o conforto de ter família e amigos, o valor de uma simples palavra ou de um gesto silencioso mas significativo. Moldei-me a novos ritmos de vida, novas rotinas, às certezas da incerteza, à cedência nas prioridades, a abdicar de mim tornando-me um cuidador atento às necessidades de quem tem dependência quase total e vive noutra realidade, noutro mundo.

Foi no mês de Agosto de há uns longos cinco anos e a vida da Luísa mudou completamente e com ela a minha. Devo revoltar-me? Perguntar “porque é que isto lhe aconteceu”? “Mas porquê a nós”? “Porquê, meu Deus”? “Que mal fizemos”? Não, não tenho razões para me revoltar contra quem quer que seja, muito menos contra Deus.

A doença, os acidentes, a morte, chegam todos os dias a casa de milhões de pessoas que não conhecemos, ocasionando imenso sofrimento, dor e todo o tipo de dramas que nos passam ao lado, numa roleta interminável do acaso. E esse acaso ditou agora a nossa vez e só tenho de me conformar, de aceitar com humildade colando os cacos que for possível colar, dando graças a Deus pelas preciosas ajudas que ainda tenho, pensando que há sempre quem esteja muito pior que nós, e por nos ter dado tantos anos de bónus, livres deste sofrimento. Até porque nunca me esqueço que o Sofrimento é parte integrante da vida, embora nós passássemos muito bem… sem ele.

Leave a Reply