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Fique em casa e cuidado com o bolso

Fiquei em casa, cumprindo uma regra fundamental no combate ao “inimigo invisível” que nos ataca a todos. Aqui, na Europa, no mundo. Mas confesso que demorei um pouco mais do que devia a interiorizar que tinha de o fazer. Por mim, pela família e pelos outros. Porque só com o empenho de todos somos capazes de sair desta, mais depressa e com “menos baixas”. Sejamos francos: começamos por não levar isto a sério, por não acreditar que este vírus é um assunto grave e por pensarmos estar imunes e ser um problema “dos outros”. “Temos a nossa vida e não podemos parar”, pensamos. Até porque esse (mau) exemplo “veio de cima”, tal como veio de vários lideres mundiais que negaram as evidências. Só quando a “sua casa lhes começou a arder” acordaram para a realidade. Alguns até aconselharam os seus povos a enfrascarem-se com whisky e vodka para que o “bicho não pegue” e só agora estão a tomar (alguma) consciência desta dura realidade.

A viver na China como treinador adjunto de futebol no Shangai SIPG, Luís Miguel criticou o que se fez na Europa, em especial Portugal, e aconselhou os portugueses a mudarem alguns comportamentos. O técnico português afirma que a Europa não está a levar este vírus com a devida seriedade, tal como fizeram os chineses, “os únicos no mundo que estão a conseguir controlar a epidemia: “A China está a conseguir controlar bem o vírus, que é mortífero, porque tem muito respeito e disciplina. Tiveram muita paciência, fecharam-se em casa, a economia parou … mas ficaram em casa. Dói-me ver o que se passa na Europa. Tivemos três meses para aprender com a China, mas nós desvalorizamos o “inimigo”. Vê-se o que se passa na Itália, Espanha, Irão. Fiquei aterrorizado quando me desloquei para a China. No aeroporto de Lisboa ninguém estava protegido, não houve controle de temperatura. Zero. Aqui está tudo de quarentena. Há disciplina. Aconselho: parem, fiquem em casa com a família. Só uma pessoa deve ir às compras. Quando voltar, desinfete os sapatos, ponha a roupa para lavar e tome banho. Parem as caminhadas, as corridas fora de casa. É preciso muita disciplina, paciência e respeito por este vírus”. 

Será que percebemos bem esta mensagem e que a estamos a praticar em pleno? Ou achamos (e eu incluo-me no grupo) que não tem mal nenhum fazer uma caminhada ou corrida lá fora, que não é preciso esse rigor de ir só uma pessoa à rua e à chegada ter de desinfetar o calçado, deitar a roupa para lavar e tomar banho?

Sejamos realistas: não é fácil aceitar que temos de parar, deixando o negócio, a atividade, o lazer, os deveres lá de fora, em suma, a vida, com todas as consequências económicas e financeiras atuais e futuras que virão depois, quando não já. Está visto que esta batalha é ganha só com a “ausência”, o que só por si é um ato heroico, se bem que os verdadeiros heróis sejam os que lutam 24 horas por dia para nos salvarem. Mas será que vale a pena pôr em risco a saúde, quando não a nossa vida – e a dos outros que amamos e nos rodeiam – porque o futuro fica comprometido? Mas não está ele desde já comprometido? O nosso e de (quase) todos?

E digo “quase todos” e não “todos” porque, como em tudo na vida, há sempre quem se aproveite da situação, sem escrúpulos ou vergonha, para ter ganhos indevidos, especulando com os bens necessários ao combate contra o vírus, já para não falar de outros. Falo no caso dos produtos de prevenção contra a propagação do novo coronavírus – equipamentos de proteção individual e dispositivos médicos, como máscaras, luvas e fatos, e produtos biocidas como o álcool, gel e desinfetantes. Mais que nunca, a não serem gratuitos, deviam estar acessíveis a preços normais. Mas, apesar das notícias dizerem que as “entidades públicas responsáveis” não encontraram sinais de abusos de preços depois de “visitar alguns estabelecimentos”, todos sabemos que a realidade nada tem a ver com essa “ficção”. E, se precisamos de nos defender do maldito vírus que vai virar as nossas vidas de pernas para o ar, em momento tão difícil, infelizmente também temos de nos defender dessa cambada de especuladores e oportunistas que não respeitam nada nem ninguém. 

Para que se compreenda a dimensão dos “roubos” e o tamanho da pouca vergonha, vou só fornecer alguns números: até há pouco tempo compravam-se “máscaras cirúrgicas” às empresas fornecedoras a “4” cêntimos. Repito para que se perceba bem: 4 CÊNTIMOS. E, de repente, como por magia, o mesmo artigo no mesmo fornecedor passou a custar … 60 CÊNTIMOS. Cada uma. O que é isto senão um assalto sem arma, um roubo à descarada? E a falta de vergonha é tal que outro fornecedor teve o desplante de nos dizer que guardou uns milhares delas para nós, por consideração. E a que preço? Um euro e meio. CENTO E CINQUENTA CÊNTIMOS. Mais de trinta e cinco vezes. Que grande consideração!!! E há uma empresa na região que as fabrica em grandes quantidades, mas nenhuma para cá. Vão todas para fora. Dizem-me que a 5,00 € cada!!! Cento e vinte e cinco vezes mais caras … e não há requisição civil. Não estamos num “estado de emergência”? A especulação nestas máscaras acontece também com as máscaras “bico de pato”, gel de álcool, desinfetantes, álcool e tantos outros. As batas impermeáveis, que nada têm a ver com o vírus, subiram quase vinte vezes. E aqueles “pés cirúrgicos” que se enfiam nos pés, saltaram de 5 cêntimos para 2,00 €.

Nem no tempo da II Guerra Mundial os bens essenciais inflacionaram tanto em tão pouco tempo, o que só vem comprovar que estamos noutra Guerra, com consequências sanitárias e económicas incalculáveis. E é neste clima que os especuladores, qual “abutres” a aproveitar-se da necessidade e do sofrimento alheio, “medram a olhos vistos, sem que ninguém os ponha onde deveriam estar”. Como penso “que podemos esperar sentados”, tenhamos consciência que “estão mexendo no nosso bolso” de forma brutal, escandalosa, a raiar o obsceno, sem ter quem nos defenda …

Com máscara ou sem máscara, vou continuar por casa, tentando ser “chinês em quarentena” ou, pelo menos, a saber copiá-lo, para meu bem e daqueles que me são próximos. Estou a aproveitar para pôr as minhas coisas em ordem, fazer jardinagem, cuidar da pequena horta, ler, fazer passatempos e separar algum do muito “lixo” que tenho cá em casa para aliviar a carga. Para não ficar aborrecido, espero não ir contar quantos grãos tem um pacote de arroz e questionar porque é que o outro pacote, que pesa o mesmo, tem mais 6 ou 7 grãos …

E não preciso de estudar para, quando me disserem que a doença é respiratória, não correr disparatadamente por aí a comprar papel higiénico às carradas… 

“Discriminados”. Ouça, fique em casa

Há dois mil anos existia uma doença terrível que, nessa altura, não tinha cura: A lepra. Quando alguém tinha sintomas da doença, dirigia-se ao Templo e era o sacerdote a confirmar se era “leproso” ou não. Em caso afirmativo, era privado do convívio com as outras pessoas, tinha de viver num lugar isolado e informar os outros que sofria de lepra. Os leprosos deviam morar fora dos muros das cidades. Como a doença era incurável e contagiosa, os lideres religiosos judaicos criaram regras que dificultavam muito a vida dos doentes. Uma delas impunha a distância mínima entre um leproso e uma pessoa sadia em 2 metros, mas que, com vento, passava para 45 metros. Os leprosos acabavam por ter de viver em cavernas isolados da sociedade e, se quisessem contactar alguém, teriam de tocar o sino para se fazer anunciar, manter a distância de segurança e dar conta que ia passar um imundo, um contaminado pela lepra, arriscando ser corridos à pedrada pelo líder religioso. As regras a que os leprosos estavam sujeitos eram minuciosas. Não podiam entrar em casas, hospedarias e igrejas, nem tocar em objetos usados por todos, como corrimões de escadas, sem usar luvas. Tinham de usar uma veste especial e levar sinetas a anunciar a sua presença. Em suma, eram discriminados pela sociedade. A sua situação era humilhante e durante grande parte da História foram vítimas desse “estigma social”. 

Ora, não estando infetado por uma das bactérias que provoca a lepra – tanto quanto sei – nem tendo sido declarado pelo “sacerdote do Templo” como “leproso”, apesar de também não estar infetado com o covid-19, senti-me a modos que um “novo leproso” nos últimos dias só pelo facto de viver em Lousada. E, como eu, todos os que moram cá e em Felgueiras, estejam ou não infetados com o coronavírus. Será que vamos ter de avisar que chegamos ou até que vamos passar, para terem tempo de se afastarem e manter uma distância de segurança? Percebo que o medo do desconhecido cria o pânico e este conduz a comportamentos absurdos, até porque nenhuma autoridade impôs e nem sequer aconselhou a quarentena. Faz algum sentido que, numa paróquia de concelho vizinho, no limite com o nosso, se diga a uma criança “não vais fazer o Pai Nosso porque frequentas uma escola que está no concelho de Lousada”? Faz algum sentido que uma jovem que estuda num colégio privado de um outro concelho, quando lá chegou em transporte do colégio, tenha sido informada para recolher as suas coisas de imediato e regressar a casa como se fosse “leprosa”, sem lhe assegurarem transporte, sem dinheiro e sem respeito, entregue a si mesma, só porque … Estiveram bem os presidentes das câmaras de Lousada e Felgueiras ao denunciar as “pressões sofridas por alunos nas Universidades para não frequentarem as salas de aulas e demais espaços delas, alegadamente devido ao vírus, medidas consideradas discriminatórias, ilegais e lesivas das pessoas.

Claro que a forma como a informação passou e a imprensa explorou, ajudou a que esta “onda discriminatória” ganhasse velocidade, qual tsunami. Senti isso nalguns telefonemas que recebi de mais ou menos longe a perguntarem-me se estava bem e não tinha nenhum sintoma, como se por morar aqui fosse sinónimo de “infeção automática”; em encontros desmarcados à última hora porque “não me parece ser o momento oportuno”, “adoeceu-me o adjunto e já não posso sair” ou outra desculpa mais ou menos esfarrapada.

Entretanto, o vírus está a espalhar-se a um ritmo crescente a partir de várias origens, aumentando o número de infetados e já com um morto na estatística, o que tem levado as autoridades a tomar mais medidas, novas medidas, sendo que a atividade do país é reduzida. Instituições, empresas, estabelecimentos comerciais, desportivos, recreativos e muitos outros encerram ou quase. E o conselho geral das autoridades é um só: “Fique em casa”. Porque é preciso conter a disseminação do vírus. É que, ao estar com alguém, não sabemos se estamos ou não a correr riscos. Começamos a ter noção dos contactos cruzados, que A esteve com B e este com C que se soube agora estar infetado. A cabeleireira encerrou o salão ao saber que uma cliente esteve em contacto com familiares de outra a quem foi diagnosticada a infeção. E uma esteticista telefonou a todas as clientes cancelando as marcações, ao tomar conhecimento que a mãe fora confirmada como mais um caso. E quem se encontrou com alguém nesta situação pergunta-se: “Será que também já estou”? 

Por isso, custe o que custar, faça tudo o que puder para ficar em casa, ainda que isso não seja fácil. E como o humor continua a ser uma das formas de combater o medo, transcrevo a mensagem enviada por um amigo metido em casa, de autor desconhecido:

“Primeiro dia de isolamento- Isto do covid até tem as suas vantagens: não vou para o escritório aturar o pascácio do chefe e posso dormir até mais tarde. Vou aproveitar para ler aqueles livros que comprei na feira do livro em 1988 quando namorava com a minha mulher e a levei lá. E ver se desligo um bocado da net e do facebook e fortaleço laços com a patroa e os miúdos.

Segundo dia de isolamento- O meu apartamento até é bem fixe e acolhedor. Tenho uma família 5 estrelas: a minha mulher é meiga e os putos são porreiros. A vizinhança é do melhor.

Terceiro dia de isolamento- Os miúdos acordam muito cedo. A minha mulher ressona. Gostei muito do pequeno almoço feito por ela, mas não percebi muito bem o que ela quis dizer que isto não é nenhum hotel. Os vizinhos são um pouco estranhos.

Quarto dia de isolamento- Os sacanas dos putos já levaram duas galhetas cada um. São dois terroristas. A gaja também já começou a desconversar. Fui lá abaixo pôr o lixo, alguém desinfetou o elevador com lixívia. Carreguei nos botões com os cotos.

Quinto dia de isolamento- Matem-me. Prefiro apanhar o vírus do que estar neste inferno. Acabou o álcool, o suicídio parece-me a melhor solução. A bruxa não me larga. Desconfio que os miúdos não sejam meus. Os vizinhos de cima não me dispensaram um rolo de papel higiénico. Forretas.

Décimo dia de isolamento- A privação de álcool e tabaco provoca-me alucinações. A minha mulher e eu estamos muito melhor desde que ela se barricou no quarto. Dei os putos para a adoção. Os vizinhos são uns filhos” …

Caso sério, que importa desanuviar…

“Estamos feitos ao bife”, diria um amigo meu que já não anda por cá. É que já ninguém fala da Operação Marquês, do Sócrates, do Salgado e companhia. Nada. Já ninguém fala do Benfica ter caído ao segundo lugar do campeonato. Nada. Também ninguém fala da novela sobre o novo aeroporto de Lisboa, agora a não poder “aterrar” no Montijo. Nada. Ninguém fala dos dez milhões de euros que o Varandas pagou por uma “cria de treinador” de futebol. Nada. Ninguém agora fala dos impostos altos, da vida cara, das loucuras do Trump, nem da Cristina e do Cláudio e da telenovela que os une ou separa. Nem tão pouco das “lindas canções” que a RTP nos ofereceu no Festival da Canção. Nada. Porque o que está a dar, é só o “coronavírus”. Basta ver os telejornais das televisões nacionais (não sei como são as outras).  Começam logo a abrir com as notícias mais impactantes sobre a epidemia e depois passam metade do tempo a venderem-nos o “coronavírus” como se nos fosse “limpar o sarampo” a todos, para não falar na contabilidade sobre casos suspeitos daqui à China, para além dos infetados curados e outros mais. “Já são dois os infetados”, “já são cinco”, “atingiram a dezena”. A imprensa vibra e mais parece um relato de futebol. Das duas uma: ou apanhamos o vírus (ou será ele que nos apanha?) ou apanhamos uma depressão. Não há meio termo. Dizia uma mãe num desabafo após um período de isolamento que a deixou desesperada: “Depois de uma semana fechada em casa com os meus filhos por causa das medidas impostas pelo governo, se eles não morrerem com o coronavírus, sou eu mesma que os mato” …

É um vírus muito contagioso? É. Tão perigoso para a saúde como uma gripe? Mais contagioso e, provavelmente, é mais letal. Temos de ter cuidados? Temos, mas não precisamos de alarmismo. O alarmismo leva-nos a comportamentos irrefletidos e estúpidos que não ajudam. Em nada. De um edifício de acesso público onde existem embalagens de produto para desinfetar as mãos têm desaparecido muitas delas. Será normal ou está tudo louco? É verdade que já temos infetados, é espectável que o número aumente muito ou um pouco menos e que pode haver mortos. O que é natural, como doença que pode agudizar. Vai chegar a nossa casa? Acredito bem que sim. Há essa possibilidade, mesmo que tome todas as medidas de prevenção aconselhadas pelas autoridades (e as outras que vizinhos e familiares defendem …). Mas corre menos riscos se adotar medidas preventivas. Claro, sabendo sempre que um dia destes tocam à porta e quando for atender “ouvirá” o coronavírus dizer: “Cheguei!!!  

Isto está a ficar muito estranho. Basta sair à rua, ver os sinais. Vamos cumprimentar alguém e puxa-se a mão atrás dizendo que “agora não se pode”. Vai-se dar um beijo e as cabeças ficam a vinte centímetros, não mais perto. Se possível, “não pode ser”. Pode-se dizer sem errar que é uma doença “anti-social”. Não se pode beijar, trocar um aperto de mão, fazer um afago, muito menos abraçar. Até a ministra pede para nos contermos nesses cumprimentos e manifestações diárias de sociabilidade e afeto. Por isso, mantenha a distância. Use fita métrica.

O humor é uma forma do ser humano vencer o medo. É um consolo de último recurso a que nos podemos agarrar. Porque todos temos medos, especialmente do que se não conhece, mesmo que não demos sinais nem o queiramos reconhecer. E o coronavírus é desconhecido. Por isso o ser humano tem usado humor para “combater” este medo manifestando-se por todo o mundo das mais variadíssimas formas, brincando com uma coisa séria, que se pode enfrentar com humor. Basta ver o que circula nas redes sociais e a criatividade imensa que nos faz sorrir. Satirizam as máscaras de proteção preconizando o uso de preservativos, seja só para a cabeça ou mesmo para o corpo todo;     

utilizam o simples garrafão de plástico da água recortado por forma a que a cabeça se encaixe dentro, com ventilação pelo gargalo; o copo de plástico seguro no focinho de um cão ou peças de roupa interior de senhora adaptadas como máscara numa crítica saudável à falta de material no mercado, esgotadas pelo açambarcamento.

Os chineses primeiro e agora os italianos fazem parte dos “bonecos”.  Um deles diz: “Meu Deus, com esta história do coronavírus os pobres não têm um dia de descanso. Sempre que veem um chinês a virar a esquina, põem-se logo a correr em sentido contrário” … Houve um que fez circular nas redes sociais algo como: “aluga-se chinês, que dá direito a quinze dias de férias em quarentena” … Ou então, há quem sugira que os turistas italianos e chineses devem ser aconselhados a visitar o Palácio de S. Bento, pois “é um belo edifício que vale a pena conhecer. E até quem ponha o vírus a “falar”, como no caso: Quando perguntaram ao coronavírus qual é uma das suas grandes paixões, respondeu: “Dar a volta ao mundo” …

Confesso que, de vez em quando, dou comigo a empurrar as portas com o ombro ou a puxar pela manga da camisola para me agarrar ao puxador, quando não usando outro estratagema qualquer para evitar pôr as mãos em contacto com algo que pode ser um transmissor do “bicho” por contágio. Paranoia ou precaução? A verdade é que é real em todos nós, com manifestações muito variadas. Para isso, o melhor texto é de um autor anónimo, que transcrevo:

“Hoje, no trabalho, empurrei a porta do WC com o joelho, acendi a luz com o ombro, levantei o tampo da sanita com o pé, acionei o botão do autoclismo com o cotovelo, abri e fechei a torneira da água com o antebraço, sequei as mãos sem tocar no secador, puxei a porta com a biqueira do sapato e atravessei os corredores sem tocar em nada. Uma hora depois, na pausa do café, avisado por uma colega bastante alarmada, reparei que me esquecera de arrumar o “instrumento” e de fechar a braguilha!…”.

O preocupante é que nos andaram a dizer que estávamos preparados e, afinal, não estávamos, apesar do tempo que o vírus nos “concedeu”. Mas, talvez nos valha a nossa capacidade de improviso … ou O Senhor dos Aflitos … 

O valor duma simples bola de trapos

Precisei de falar com um amigo e, sabendo que estava a assistir ao treino de futebol do seu filho ainda muito novo, fui lá procurá-lo. Achei interessante ver parte do treino e, em especial, o entusiasmo com que alguns pais vivem tão intensamente a evolução do seu rebento e o sonho lindo de uma carreira a dar chutos na bola. Mas, quando vi aqueles sacos cheios de bolas não pude deixar de sentir uma ponta de inveja porque, quando eu era criança, não havia sacos de bolas de futebol, não havia sequer bola de futebol. O que nós tínhamos para jogar era … uma bola de trapos E para isso, algum de nós tinha de conseguir arranjar lá por casa uma meia velha. As melhores meias para fazer a bola de trapos eram as “de vidro”, porque conseguia-se que a bola fosse maior. Mas, na sua falta, qualquer uma servia, sendo cheia com trapos velhos ou mesmo folhas de jornal amarrotadas, que se comprimiam o mais possível enquanto se lhe dava uma forma arredondada. 

Jogávamos a bola nos caminhos de terra (eram todos) com mais ou menos buracos, sendo as balizas delimitadas por duas pedras. Não havia treinador nem lugar a táticas e as fintas eram difíceis, até porque jogar com uma bola de trapos dava para o que dava. Como era “tudo ao molho e fé em Deus”, valia mais o pontapé para a frente e direto à baliza, se possível, defendida pelo miúdo descalço e de calças rotas, na tentativa de marcar golo. E lembro-me que se jogava com entusiasmo e alegria natural. O resultado era menos preocupante do que o raspanete da mãe quando chegasse a casa por ir todo sujo, quando não com mais um rasgão nas calças. Não havia bolas de “couro” p’rá malta. Eram inacessíveis.

Só para se ter uma ideia, assisti a jogos do Lousada no velho campo junto à feira, em que só havia uma bola de cada equipa. Se durante o jogo um chuto mais forte e torto a atirasse para o campo de milho para lá da vedação, havia sempre alguém do lado de fora para ir atrás dela. Houve ocasiões em que o jogo teve de ficar parado, à espera que a bola fosse devolvida ao terreno de jogo … por não haver outra.

Nós, miúdos, quando recebíamos alguns tostões como nos funerais por integrar a “cruzada”, íamos logo investi-los a comprar rebuçados de fraca qualidade, mas que traziam a embrulhá-los fotografias de jogadores de futebol, ídolos do nosso tempo, parte da coleção de cromos que se colava numa caderneta, com a vã esperança de a poder completar e ganhar aquela linda bola de futebol, tida como feita em cabedal, mas que muitas vezes mais parecia do tipo cartão prensado. Havia sempre um cromo único de um jogador que o fabricante desse negócio colocava bem no fundo da caixa para se venderem os rebuçados até ao fim, pois caso contrário, mal alguém completasse a caderneta e levasse a bola, acabava-se o negócio. O miúdo que a ganhasse era o felizardo, muito invejado por todos os outros que queriam muito poder dizer que “jogaram com uma bola de couro”. Ficavam pendentes dele para começar ou acabar um jogo. É que ele era o “dono da bola”. Bastava que a sua equipa estivesse a perder ou não o deixassem marcar o penalti, agarrava na bola meio amuado, dava o jogo por terminado e caminhava para casa …

Já adolescente, joguei pela equipa lá da terra, o Macieira, contra outras freguesias dos arredores. Os jogos e treinos eram realizados no terreno do adro de S. Gonçalo e a bola, já em couro, cosida à mão e com câmara de ar, de vez em quando furava ou rompia-se pelos pontos da cosedura. Um dia um dos remates foi forte e direitinho … a uma lança da grade que havia na capela e a bola “morreu” de repente. Quando isso acontecia, acabava o jogo por não haver bola substituta …

Ao ver que hoje bolas de cabedal não são problema, nem em qualidade nem em quantidade e ao olhar para essa infância distante, fico dividido: Se ter inveja pelo muito que hoje há comparado com o nada de “ontem” ou ficar feliz pelo entusiasmo, alegria, gosto e entrega ao jogo pelo jogo desse “ontem” – porque era só um jogo de bola que estava em causa – sem ilusões do vedetismo que hoje se persegue e que, quase sempre, termina em frustração dos miúdos, quando não bem mais dos próprios pais. 

Na minha infância as brincadeiras de miúdos eram na rua, saudáveis e alegres, de forma despreocupada e segura. A grande preocupação dos pais era arranjar-nos forma de nos instruirmos e evoluir na educação e ensino. Ao contrário, hoje a preocupação é conseguir tirá-los de casa, afastá-los dos jogos informáticos e do computador para brincarem ao ar livre. O que será mais saudável? 

Nos dois últimos dias perdi dois amigos, quando recordo com nostalgia e emoção esses jogos usando uma simples “bola de trapos” num qualquer caminho da aldeia. De um deles que jogava descalço, levei caneladas “quanto baste”, apesar de eu estar “munido” de botas ou “chancas”. Mas a alegria, entusiasmo e vida desses convívios, com ou sem “caneladas”, marcando ou sofrendo mais golos e apesar da “bola de trapos” nem sempre aguentar inteira até ao fim, ficaram como boas recordações, memórias que um deles fez questão de relembrar e partilhar comigo poucos dias antes de “partir”, porque são “pedaços de felicidade” que dão cor à vida … e que nos unem.