A Loja do Tio Peixoto

O Bernardo, meu primo e amigo, todos os anos tem a amabilidade de me convidar para ir a sua casa comer cerejas, com a intenção de me satisfazer um prazer que me vem do tempo de criança: comê-las diretamente da árvore.

No telefonema que me fez este ano teve o cuidado de me avisar que “andasse depressa”, antes que os pássaros comessem a parte a que tinham direito e a parte dele, enquanto dono. Por isso, nesse dia vigiava o seu quinhão. Assim, sem ir a voar mas tentando chegar antes da passarada, fui comer a minha (pequena) parte e aproveitar para pôr a conversa em dia, sendo as cerejas o motivo. Ao estar naquele quintal vieram-me à memória recordações do meu tio Peixoto, pai do Bernardo e figura incontornável da minha infância, que ali viveu e criou um rancho de filhos com a tia Miquinhas, o sol em torno do qual girava o mundo da família.

E essas memórias levaram-me à “Loja” (mercearia e tasca, com ramo de loureiro à porta) do tio Peixoto, que ficava um pouco acima da casa dos meus pais. Parece que ainda estou a estou a ver: À entrada, um balcão tosco em madeira de pinho, com uma balança e uma broa ao lado para vender aos nacos; ainda em cima do balcão, um cartão publicitário para furar a troco de dois tostões por furo, de onde caía uma pequena bola que, em função da cor, dava direito a um chocolate da Regina; noutras ocasiões, era uma caixa de rebuçados com cromos de futebolistas e uma bola de couro no cartaz, prémio para quem completasse a caderneta, um sonho para nós crianças que jogávamos com bolas feitas com meias velhas cheias de trapos.

Era ali que eu gastava a moeda que o meu pai me dava ou a coroa (cinco tostões) que recebia por ir na “cruzada” nos funerais. Havia um bidão de petróleo para os candeeiros e carboneto em latas estanques, para os gasómetros, porque a maioria das casas não tinha eletricidade, que faltava muitas vezes; o azeite estava em vasilhas de lata e era medido sem esbordar; o arroz (que eu fiquei a detestar por ter muitas pedras), a massa e o feijão, estavam em caixas de madeira debaixo do balcão de onde eram tirados com um “corredor” para cartuchos de papel grosso; um pouco ao lado os garrafões de aguardente, vendida a copo pela manhã como “mata-bicho”, às vezes para regar um naco de broa; os “luxos” eram a bola de queijo flamengo vendido à fatia, a manteiga num pote de barro e pouco mais; para os fumadores, os cigarros Português Suave, Fortes, Provisórios e o tabaco a granel com as caixas de mortalhas para enrolar o cigarro; e de lado, duas pipas de vinho tinto assentes em vigas de madeira, para vender ao garrafão e à garrafa, ou servido ali mesmo, em canecas de porcelana ou ao copo.

À tarde e ao domingo, jogava-se à malha e ao fito, no caminho em frente à loja e, a cada jogo, os perdedores pagavam um copo de litro. E havia dias em que estavam ali a tarde inteira… Bebia-se muito vinho pelo que, semanalmente, havia troca de pipa vazia por cheia, uma cena digna registo.

A pipa era transportada em carro de bois pelo caminho de terra cheio de buracos, fazendo-se anunciar pela chiadeira do rolar da madeira contra a madeira. Para a descarregar, o carreteiro colocava o carro com a traseira virada para a porta da loja, ficando um rapaz a segurar os bois enquanto os homens colocavam duas pranchas de madeira do carro ao interior da loja, entaladas contra a pipa e seguras aos “fueiros”.

Então, colocava-se um homem de cada lado da pipa e outro por trás e, usando as trancas como alavancas e ao som ritmado de um “Ôpa, ôpa, ôpa…” entoado por um deles, faziam deslizar aquela “meia tonelada de vinho” pelas vigas abaixo até dentro da loja e para cima das vigas ao lado da outra, com toda a perícia.

O serviço ficava completo quando o meu tio metia a torneira de madeira na pipa com uma pancada seca de mascoto, depois de aparar o batoque com uma faca. Feito isto, servia broa, azeitonas e vinho num copo de litro, que rodava de mão em mão. Em frente à loja todos os anos montava uma cascata em honra de S. João, seu homónimo e santo favorito, povoada de um sem número de figuras, água e até um chafariz, em que eu colaborava carregando pedras, ramos de carvalho e musgo, e angariando “fundos”, sempre com a mesma lengalenga para quem passasse por ali: “Dê um tostãozinho para a cascata do S. João”.

Tinha o prazer da leitura e dedicava-se à escultura de santos, trabalhando a madeira com um canivete. Para autodidata, executou um número considerável de peças de belo recorte, de que guardo uma bonita imagem de S. José que me ofereceu anos mais tarde. Ao ver os supermercados de hoje e pensar naquela “Loja” do antes, só posso colocar-lhes um rótulo: O Excesso e o Essencial. A “Loja” era a antítese do supermercado, um serviço de proximidade e de confiança nos clientes (e vizinhos), com muitas vendas a “fiado” registado num livro grosso, numa relação comunitária própria desse tempo de coisas simples.

E todos eram confiáveis, por mais pobres que fossem (e como eram pobres!!!), porque existiam bens inestimáveis que queriam preservar a todo o custo: A DIGNIDADE, A HONRA E O BOM NOME. E ao relembrar a importância que se dava a esses bens, hoje só me apetece perguntar: Como é que mudamos tanto???…

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