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Cuidar os outros. E quem cuida deles?

De enxada na mão, o senhor Albuquerque consumia os dias da sua reforma a agricultar no quintal da casa, entre hortaliças e flores. Naquela tarde, quando o filho mais velho o foi visitar, encontrou-o estendido junto à cancela, sem reação. Chamou de imediato o INEM e, a partir daí, a sua vida alterou-se radicalmente. O AVC provocou-lhe a perda total de movimentos do lado esquerdo e afetou a fala, audição e atividade cerebral. 

De um momento para o outro, passou de homem ativo a dependente de terceiros. Depois de estabilizado, o Hospital enviou-o para uma Unidade de Cuidados Continuados, onde viria a permanecer durante três meses. Apesar de alertada para tal, a família “acordou” para o problema no dia em que foi informada de que iria ter alta. “E agora?”, perguntaram os dez filhos reunidos em casa para decidir quem havia de tomar conta do pai. Mas, todos os olhares se fixaram na sua irmã viúva, como se ela tivesse a obrigação de tomar conta do pai. E houve até quem o verbalizasse: “O melhor é ficar em casa da Emília”, disse um deles, dando a entender que não era uma sugestão, mas uma decisão. Enquanto a Emília ficou calada no seu canto, todos os outros aprovaram a sugestão sem hesitar como quem se livra da peste, sem se preocuparem em saber o que pensava a sua irmã viúva. Como nenhum queria o “embrulho”, a decisão “só podia ser aquela”. Afinal, não era um problema, porque foi resolvido num instante. Mas não se esqueceram de nada? Nem de ninguém?

Se é de um momento para o outro que se passa de pessoa saudável a um ser mais ou menos dependente, também é em decisões como esta que se fica a ser “cuidador informal”. “Empurra-se o problema” quase sempre para uma irmã, muito especialmente se for solteira, viúva ou divorciada. “É a única que tem possibilidades de tomar conta do pai”, dizem os outros, como se ela não tivesse vida própria. Neste egoísmo sem pudor, muitas vezes até se “esquecem”, intencionalmente, de lhe assegurar o apoio financeiro, como se lhe coubesse também a ela essa obrigação. É assim que uma mulher recebe um “presente” para o qual não está preparada e que vai fazer dela em pouco tempo uma ruína física e psicológica. O AVC que deixa graves consequências, modifica a rotina da pessoa doente, mas também a de todos os que estão à sua volta. E, no caso em questão, sabe-se que nas primeiras semanas os irmãos até foram passando lá por casa, para ver como estava o pai. Mas, como ele não falava, não participava numa conversa por mais simples que fosse, era uma “chatice” ficar ali a olhar para ele, a “fazer figura de parvo”. Foi por isso, e por muito mais, que os outros filhos se “foram esquecendo” da existência do pai, entregue aos cuidados da irmã Emília. E ela, apesar de ter recebido o “presente” por empurrão dos irmãos sem sequer ter sido ouvida nem achada, dedicou-se ao pai a tempo inteiro, numa missão nada fácil que a foi consumindo física e psiquicamente. A sua vida pessoal acabou e deixou de ter tempo para si, para cuidar da sua saúde, do emprego, do lazer. Nenhum dos nove irmãos se lembrou sequer, que ela também tinha os mesmos direitos que eles, apesar de ser viúva. Mas só viram que estava disponível …

É verdade. Não se tem verdadeira noção do que é “tomar conta” e “cuidar” de alguém com incapacidade física ou mental durante dias, meses e anos, uns atrás dos outros, sem ter estado nessa situação. Só quem passa por isso fica a saber como é difícil e desgastante, de onde se sai arrasado, deprimido, pronto para ir ao psiquiatra ou para uma cura de sono. Não se tem vida pessoal porque se vive só para o outro, não se tem capacidade de reagir pois tem de se anular, não se tem saúde porque só se tem tempo para cuidar da saúde de outro.     

Hoje, todo aquele que presta assistência a uma pessoa dependente de ajuda para o seu dia a dia, sem qualquer remuneração, é tratado por “cuidador informal”, o nome que carrega sofrimento, esconde dramas e implica sacrifícios. Como se trata de uma atividade stressante, o seu prolongamento no tempo leva à sobrecarga do cuidador, provocando altos índices de depressão, sintomas de stress, uso de psicotrópicos e outras doenças associadas, sendo que esses efeitos negativos podem persistir em alguns mesmo depois da perda do paciente. O “cuidador informal” é a expressão de amor e carinho, em regra por familiar ou, às vezes, amigo Em princípio, está entregue a si próprio, ignorado pelo estado, abusado pela família, esquecido de que também é gente. 

A senhora Maria tem mais de oitenta anos e cuida de dois filhos com deficiência há mais de cinquenta anos, a tempo inteiro. Cinquenta anos é uma vida. Mas, pior que isso, naquelas circunstâncias é uma eternidade para quem está despida de si, para quem nunca se põe em primeiro lugar. E, como se essa vida difícil não bastasse, vive com a angústia cravada no peito ao ver que os anos que lhe restam já não serão muitos e interrogando-se: “Quem vai cuidar deles quando eu morrer”? Porque ninguém sabe cuidar deles como ela, conhecer-lhes as necessidades específicas como pôr a mão na cara dum deles para conseguir adormecer. “Como vai conseguir ele adormecer sem mim”, pergunta desesperada, sem conseguir uma resposta que a sossegue e lhe dê a tranquilidade e a paz de que tanto precisa no crepúsculo da sua existência.

Diz-se que são mais de 800.000, mas ninguém sabe. Há muita gente a cuidar do conjugue, dos pais, de filhos e outros familiares. Porque são muitos os dependentes que não conseguem cuidar de si próprios.

Foi a pensar nestes heróis anónimos, naqueles que abdicaram de si em favor do outro, em todos aqueles de quem o estado e a sociedade se demitiram, que a Misericórdia de Lousada lançou em este ano o CACI – Centro de Apoio ao Cuidador Informal, para saber quem são, quantos são no concelho de Lousada e quais são as suas necessidades e as respostas que possam atenuá-las. Sem ter a veleidade de sanar o problema, pretende-se conhecê-lo e estudá-lo para encontrar formas de ajudar esta gente, de que eu faço parte.

Sendo uma obra de grande dimensão, a Instituição quer estabelecer parcerias com todos aqueles que possam dar mais valia ao projeto e ser parte integrante da solução. Todos podemos colaborar, a começar por ajudar na identificação das pessoas que tomam conta de alguém em situação de dependência. É que nem sempre é fácil chegar a eles, muitas vezes ignorados, esquecidos ou até escondidos da família e vizinhos, como se fosse um crime desempenhar um papel tão nobre. Para causa tão importante e que sempre foi ignorada, há que ajudar na empreitada, porque a tarefa é imensa. Mas, como diz o pensador chinês Lao-Tsé, “uma longa caminhada começa com o primeiro passo”. E todos seremos poucos para o fim pretendido …

Será que somos todos iguais?

Por esse mundo fora vendem-se imensas teorias, umas verdadeiras outras falsas, algumas mais ou menos lógicas e outras mais ou menos estranhas. Há as que são óbvias e têm aplicação prática, mas também as que não passam disso: Teorias. Uma das que nos vão impingindo é a de que nós, seres humanos, somos todos iguais. É bonito e fica bem, como slogan promocional da igualdade, mas está longe da realidade. Gostava de ter razões para crer, mas não tenho. E já nem alimento as ilusões de sonhador. Por isso, considero que não passa de mais uma teoria. Diria mesmo que não é mais que uma “teoria da treta”. Seria bom que fosse verdade, porque todos nascemos iguais: “Nus”. Mas rapidamente deixamos de o ser, conforme o “berço” em que se nasce, o “biberão” em que se mama, a “mesa” em que se come, a roupa que se veste. 

Mas somos todos iguais perante a lei? Claro que somos … e isso quer dizer o quê? Somos todos iguais perante a Justiça? Somos … mas quem não tem dinheiro para pagar a um batalhão de advogados pode com mais facilidade “bater com os costados na cadeia”. Somos todos iguais no acesso à Saúde? Dizem que somos … mas quem não tem “cacau” para não ter de ficar à espera da cirurgia que precisa com urgência ou não conhece alguém que conhece outro alguém, que também conhece alguém no hospital, pode já não vir a precisar dela …

Podemos dizer que somos todos iguais, independentemente da raça, religião, sexo, partido, clube ou nível de estupidez natural? Somos … em teoria. E só em teoria. Ou querem-me convencer que nenhum destes fatores é discriminatório? Por se ser preto e não branco, do partido X que está no poder e não do partido Y que está na oposição, não é motivo para se colocar A à frente de B, C à frente de D, sem ter em conta as suas capacidades e qualificações? 

A este propósito estou a lembrar-me de uma personalidade do norte do país que, em tempos, foi escolhida pelo governo de então para dirigir os destinos de um organismo público que tutela a região norte. E liderou esse organismo até ao dia em que, involuntariamente, a boca lhe fugiu para a verdade. Quando questionado se, na admissão de pessoas para esse organismo não dava preferência maior a uns do que a outros, respondeu: “No caso de ter de escolher entre alguém que é do meu partido e outra pessoa que não é, escolho sempre… o do meu partido”. E, pelas pressões sofridas por parte da oposição, povo e, sobretudo, da imprensa, ao governo não restou outra saída senão indicar-lhe… a porta de saída. 

Uma afirmação destas é “politicamente incorreta”? É. Mas todos o fazem, todos os partidos dão prioridade aos seus correligionários e simpatizantes por mais incompetentes e estúpidos que sejam, mas ninguém o pode dizer em público, muito menos reconhecê-lo. Daí que, quem milita no partido político que no momento está no poder deixa de ser igual aos outros. Passa a ser, nas palavras de George Orwell,  “mais igual do que os outros”. Com mais “direitos”, com “via verde” para chegar à fala com governantes nos mais variados níveis. E tem acesso exclusivo aos “tachos” através da “porta do cavalo” …

São tantas e tão variadas as provas de que não somos tratados como iguais, que faz fé o que se pratica e não o que a Lei diz. E no dia a dia acontece isso tantas vezes, que nem sequer reparamos que também damos o nosso “contributo” para essa realidade. 

Se um pelintra saca alguma coisa dum supermercado, ainda que seja por fome, dizemos que é ladrão. Mas, no caso dum gestor, político, banqueiro ou outro “gabiru” “meter a mão no prato” e gamar alguns milhões, é um “gajo esperto”, “inteligente” e “fino”. Nessas escandaleiras que a imprensa divulgou e o país pagou, a todos aqueles que “desviaram” milhões, o que são eles de facto? E já alguém lhes disse com todas as letras que são LADRÕES? Claro que não. Até em coisas simples em que, sem nos darmos conta, tratamos as pessoas de forma desigual. Diria mesmo que discriminamos. E não faz sentido. Se alguém humilde vai a nossa casa, come do que há, sem haver lugar a “almoço melhorado” nem a atenções especiais. No entanto, se é o “senhor fulano de tal”, o almoço é reforçado com aperitivos, entradas e já não será um prato qualquer, mas algo mais requintado, mais elaborado. E até se abre a garrafa de vinho de marca destinada a momentos especiais. O estômago dessa pessoa simples é diferente do estômago do “senhor fulano de tal”? 

Porque vulgarizamos um e reverenciamos o outro, se ambos são pessoas, iguais nos seus direitos? Ou será que não é bem assim e não são mesmo iguais? O curioso é que até fazemos isso com os próprios animais, de que é exemplo o João. Ofereceram-lhe um cão “rafeiro” e ele deu-lhe “vida de cão”. Comia o que havia e só quando havia. E, se tivesse de comprar ração, era da mais barata porque era cão vulgar. Mais tarde vieram a oferecer-lhe um “mastim inglês” com “pedigree”, que é como quem diz, com o certificado de pureza racial (como os nazis desejavam para si). Então, para esse cão, passou a adquirir uma ração especial e até alguns suplementos alimentares, porque era … “um cão de raça”. Coitado do “rafeiro”, que foi tido como animal de segunda classe, quando não de terceira. Porém, o “mastim inglês”, foi tratado com honras de “senhor fulano de tal”, com outros direitos e, provavelmente, com menos deveres. Que raio de igualdade …

É um facto que somos todos diferentes: altos, baixos, feios, bonitos, gordos, magros, louros, morenos, alegres, tristes, inteligentes, menos inteligentes e por aí adiante, goste-se ou não se goste, por mais que isso não seja “politicamente correto”. Mas há algo que, só por si, é mais que suficiente para justificar a minha descrença na teoria da igualdade. Diz respeito à diferença entre gente bem ou mal educada, pessoas que respeitam os outros e pessoas que não os respeitam, pessoas que têm direitos e deveres e pessoas que só acham que têm direitos. E não falo em instrução, mas em educação. Havendo vários níveis de educação, quando não existem as coisas mais básicas, mais elementares numa pessoa, é difícil, senão impossível, tê-las por iguais e, como tal, conviver com elas. Ser bem educado não é uma questão de etiqueta ou maneirismo, mas de que as pessoas sejam capazes de viver segundo as regras mais elementares e essenciais da sociedade, desde o tipo de linguagem usada entre elas, a forma como se usa e respeita os espaços comuns a todos nós. Ser educado é respeitar os outros e os seus legítimos direitos porque a nossa liberdade acaba onde começa a deles. Mas, quantas vezes não damos de caras com alguém que invade o nosso espaço e ofende os nossos princípios? Será que esses devem ser respeitados e tratados como nossos iguais, se nem sequer aceitam os princípios do respeito comum? Será que aí, alguém continua a defender que “somos todos iguais”? Em teoria, sim. Mas só em teoria. Senão, não passa de uma “Teoria da Treta” …

“Encontrei o seu cão …”

Tenho uma empresa, uma empregada e um escritório, onde se atendem clientes, fazem negócios e desenham projetos. Por mais estranho que pareça, também ali se promove a adoção de animais abandonados e até se dá abrigo a um ou outro. Por isso, passa lá gente sensível à causa, que ajuda a fazer este mundo um pouco melhor. Gente boa, discreta, humilde, atenta, que tantas vezes vai além do possível só para salvar um animal. Há histórias lindas de fazer chorar, lições de vida que ficam no anonimato, dedicação aos que não podem nem sabem reivindicar, não têm voz, apesar de terem direitos. Simples e preocupados, dos que passam na rua e veem o que a maioria não enxerga, e fica quando os outros têm pressa, que procura uma solução quando o normal é ignorar.

Se eu fosse aquele cão rafeiro que foi levado para o escritório pela Teresa, provavelmente contaria algo como isto: “… e então, cansado, ferido por dentro e por fora, com sede e fome, desisti de mim. Fiz um buraco na terra e lá me deitei enroscado para esperar o fim, como sempre o fazem os animais abandonados. Quando ouvi passos e vozes humanas, já não abri os olhos. Nem tinha forças, nem acreditava. Mas você parou, tocou-me e chamou por mim. Quis rosnar, arreganhar os dentes, porque só me enxotaram, mas você disse: “agora está tudo bem”. Cortou a corda que trazia ao pescoço, com que me amarraram à árvore e que eu roera. E pegou-me ao colo como se fosse um bebé. Deixei-me ir. Estava cansado de lutar. Deu-me banho, remédio, cuidou minhas feridas e mazelas, deu-me água e comida, sem um grito, um pontapé. E um espaço, um lugar, uma companhia. Quando já não acreditava, tirou-me da rua, lutou por mim. Não passou sem me ver e sentiu a minha solidão”. Sempre que olhava esse cão, não deixava de ter vergonha pelas nossas pequenas e grandes misérias … 

Como alguém partilhou comigo um lindo texto de autora anónima com o título “Encontrei o seu cão”, não posso deixar de o fazer também aqui. É um bom complemento ao tema em questão.

“Hoje encontrei seu cão. Não, ele não foi adotado por ninguém. Aqui por perto a maioria das pessoas já tem vários cães e quem não tem nenhum não quer um cão. Eu sei que você esperava que ele encontrasse um bom lar quando o deixou aqui, mas ele não encontrou. Quando o vi pela primeira vez ele estava bem longe da casa mais próxima, sozinho, com sede, magro e mancando por causa de um machucado na pata.
Eu queria tanto ser você no momento em que parei na frente dele! Então poderia ver sua cauda abanando e seus olhos brilhando ao pular em teus braços, pois ele sabia que você o encontraria, sabia que você não o esqueceria. Poderia ver o perdão nos olhos dele por todo sofrimento e dor que passara na interminável jornada à tua procura. Mas eu não era você. E apesar de minhas tentativas de convencê-lo a se aproximar, os olhos dele viam um estranho. Ele não confiava em mim. Ele não se aproximava.
Então ele se virou e seguiu seu caminho, pois tinha certeza de que o caminho o levaria a você. Ele não entendia porque você não o estava procurando. Ele só sabia que você não estava lá, sabia que precisa de te encontrar e que isso era mais importante do que comida, água ou o estranho que lhe poderia dar essas coisas.
Percebi que seria inútil tentar persuadi-lo ou segui-lo. Nem o nome dele, eu sabia! Fui para casa, enchi um balde com água, coloquei comida numa vasilha e voltei para o lugar em que o encontrara. Não havia nem sinal dele, mas deixei a água e a comida debaixo da árvore onde ele estivera descansando ao abrigo do sol. Veja bem, ele não é um cão selvagem. Ao domesticá-lo, você tirou dele o instinto de sobrevivência nas ruas. Ele só sabe que precisa caminhar o dia todo. Ele não sabe que o sol e o calor podem custar-lhe a vida. Ele só sabe que precisa de te encontrar.
Aguardei na esperança de que voltasse a buscar abrigo sob a árvore, na esperança de que a água e a comida fizessem com que confiasse em mim; assim poderia levá-lo para casa, cuidar do machucado da sua pata, dar-lhe um canto fresco para se deitar e ajudá-lo a entender que você não faria mais parte vida dele. Ele não voltou naquela manhã e a água e a comida permaneceram intocadas. Fiquei preocupada. Você deve saber que poucas pessoas tentariam ajudar teu cão. Algumas o enxotariam, outras chamariam a carrocinha que lhe daria o destino que você talvez achasse que o libertaria de todo o sofrimento pelo qual porventura estivesse passando.
Voltei ao mesmo lugar antes do anoitecer e não o encontrei. Na manhã seguinte, retornei e vi que a água e a comida continuavam intactas. Ah, se você estivesse aqui para chamá-lo pelo nome, tua voz lhe é tão familiar!
Comecei a caminhar na direção que ele havia tomado antes, mas sem muita esperança de encontrá-lo. Ele estava tão desesperado para te encontrar, que seria capaz de caminhar muito quilómetro em 24 horas.
Horas mais tarde e a uma boa distância do lugar onde o vira pela primeira vez, finalmente, encontrei o seu cão. A sede já não o atormentava, sua fome fora saciada, suas dores haviam passado, o machucado da pata não o atormentaria mais. Seu cão estava morto. Livrara-se do sofrimento. Ajoelhei-me ao lado dele e amaldiçoei você por não estar ali antes para que eu pudesse ter visto brilho naqueles olhos vazios, nem que só por um instante. Rezei, pedindo que sua jornada o tivesse levado ao lugar que imagino você esperava que ele encontrasse. Se você soubesse por quanta coisa ele passou para chegar lá… E sofri, sofri muito, pois sei que se ele acordasse agora e se eu fosse você, os olhos dele brilhariam ao vê-lo e ele abanaria o rabo perdoando-o por tê-lo abandonado”.

Receia que enjoem a “marmelada”…

A vida de há sessenta anos atrás era feita de privações, fome, frio, trabalho duro, quando havia. E necessidades. Havia muito pouco para ganhar, quase nada para distribuir, algum fruto para proteger. Havia fome de tudo, porque havia falta de tudo. Se faltava a broa (era o pão dos pobres, pois não havia “massa” para “moletes” nem sêmea), que era o mais elementar dos alimentos, muito mais difícil era ter acesso ao peixe, à carne, ao queijo, à manteiga e até à marmelada. Por falar em marmelada, em regra, fazia-se pouca por estas bandas, mesmo daquela em que está a pensar. Os marmeleiros, dispersos nas bordas dos campos e quase sempre junto aos regos de água, eram cultura marginal. Diria até que deles se aproveitavam mais as varas direitas e fortes para fazer os “paus de marmeleiro”, usados nas disputas do “jogo do pau” e para “aquecer” as costas dos incautos nas rixas de feira, como resultado de umas canecas de vinho a mais. Mas eram poucas as pessoas que faziam marmelada de marmelo para consumir em casa, até porque o açúcar (amarelo) era pouco para necessidades mais primárias. O meu tio vendia na loja marmelada em pequenas caixas de madeira, acessível só a alguns e, mesmo assim, às fatias. E, sendo natural que ainda esteja a pensar na “outra marmelada”, esses “marmelos” só se pressentiam pelo volume, de tão embrulhados em roupa. Nunca andavam à mostra. “Não faltava mais nada”, diriam as gentes dessa época. Nem dava para chegar perto, nem estavam assim à “mão de semear”. Eram mais sonhados que acariciados. E se a dona estivesse à conversa com um candidato a “cozinheiro ajudante” para fazer essa “doçura”, tal só acontecia à distância de três metros e com uma janela a separá-los, sendo certo e sabido que na janela ao lado e bem atenta às jogadas, estava a progenitora da moçoila, feita polícia de serviço. Não havia baldas. Nem sequer a “proprietária dos ditos”, por formação e educação, estava para aí virada. Até nas feiras de ano. Os lavradores iam com a família toda. Ele, mal chegava, ia direito à feira do gado para “apreçar” uma junta de bois de trabalho, enquanto a mulher e filhas percorriam os tendeiros para comprar um lenço da cabeça ou umas arrecadas no ourives. 

As filhas iam à frente, coradas das papas que comiam antes de sair de casa, todas aperaltadas e com o cordão de ouro sobre “eles”. À vista, só o cordão. E os “marmelos”? Nem vê-los. Só os volumes, bem embrulhados. Nada mais. Atrás, mas suficientemente perto para as controlar, ia a mãe, armada em guarda-costas. Os moços, de colete e chapéu, metiam conversa, mas não havia “avanços” para chegar “ao pé”. Só no dia a dia, em especial durante os trabalhos, surgiam as oportunidades. No campo, a segar erva, o “controle” era bem menos apertado. E aí, podia acontecer. 

Num desses dias, um garoto chegou a casa esbaforido e a gritar: “Oh mãe, o João das Quintãs estava a fazer “porcarias” com a nossa Mila “antr’omilho”. Houve consequências. A Mila não saiu de casa durante um mês. O João levou uma “coça” do pai com a correia dos bois e, apesar de ser jovem, teve de casar com a Mila, “sem tugir nem mugir”. E a criança nasceu “antes do tempo”. É que, “marmelada” a sério, só podia ser feita depois do “papel assinado” e mesmo assim, em bom recato. Em público, nem pensar. Já a Maria teve pior sorte. Também “engordou”. Quando os pais souberam da “maroteira”, puseram-na fora de casa, porque era “uma vergonha”, a desonra da família …

Hoje, na região, ainda se faz marmelada com marmelos que pendem do marmeleiro, se bem que a maior parte seja industrializada. Toda a gente sabe que é mais fácil “produzi-la” no supermercado. Dos outros “marmelos”, outrora quase “clandestinos”, já não há a preocupação de os manter fora dos olhares indiscretos dos mirones como segredo bem guardado. Pelo contrário, as modas mandam que sejam expostos (e bem), usados como arma de ataque e conquista, íman para atrair quem dê uma mão (ou duas) para fabricar o tal “produto”. São artigo para provocar a “concorrência”, com visual muitas vezes trabalhado “cirurgicamente”. Deve dizer-se que passaram a merecer um cuidado especial das donas, sendo sujeitos a tratamentos para melhorarem o “aspeto” e a “atitude”, devendo ser firmes e de “cabeça levantada”, às vezes “desafiantes” e “provocadores”. É que estão sujeitos todos os dias a serem “observados” e “avaliados”. Criou-se toda uma indústria de “suportes” especiais, diversificados, conforme as “necessidades” específicas de cada par, em tamanho, aproximação ou afastamento, maior ou menor elevação, para mostrar verdades ou criar ilusões e enganos. No mínimo, num “espírito humanitário” para “levantar os caídos” ou “dar vida aos mortos” … E a “marmelada” deixou de ser feita às escondidas, em recato, longe da vista e dos olhares gulosos dos “consumidores”. Saiu à rua, invadiu os espaços privados e até os públicos, “trabalhada” sem restrições, limites e inibições de local, tempo, presenças e preconceitos, como um direito de liberdade. Nem se sabe bem se às vezes é para “consumo próprio”, “exibicionismo” ou só “para inglês ver” …

Em termos gastronómicos, sempre ouvi dizer que, comer marmelada com queijo, sabe a casar. E ainda hoje há quem peça para sobremesa “um dueto” ou “Romeu e Julieta”, essa mistura de doce e amargo que dá gosto à vida.

Dizia-me um amigo que os seus filhos adolescentes, já andam fartos de bolos e doces e até já enjoaram a marmelada. Por isso, ao ver as facilidades que hoje têm para fazer da “outra marmelada”, podendo variar de “fruta” sempre que querem, ele anda muito preocupado e manifestou-me os seus receios. Tem um medo terrível que eles um dia destes também “enjoem” esse tipo de “marmelada” e queiram variar e experimentar “outras sobremesas”, menos ortodoxas e mais alternativas, mas para as quais ele não está nada mentalizado …