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Importância e vaidade. Até na morte…

É comum dizer-se que nascemos nus e morremos nus. Afinal, nada levamos desta vida. E não fará a menor diferença se formos ricos ou pobres, famosos ou anónimos, conhecidos ou desconhecidos porque a morte é o grande nivelador. Num cemitério, todos os corpos são semelhantes, um estado transitório para se tornarem pó. Nada do que pensamos ter adquirido na vida passa através do portal da morte. Do lado de lá, estaremos totalmente nus, eventualmente embrulhados numa mortalha, num fato, num vestido, que importa? E estaremos sós, despidos de tudo o que pensávamos ser nosso…

Se é estúpida a exibição da vaidade e da importância em vida, muito maior o é na morte. Mas, basta entrar num cemitério, num qualquer dos nossos cemitérios, para vermos a vaidade exacerbada em jazigos de pedras trabalhadas em capela ou pirâmide, sejam de granito ou mármore. E até parece que estes tempos “fáceis” que estamos a viver são mais propícios a tais exibicionismos pois a “corrida” para ter o melhor jazigo está mais ativa que nunca. Alguém dizia “o meu jazigo tem que ser maior do que o dele, não vou ficar atrás”. E é isso que as indústrias de mármores e granitos querem porque essa “competição” na busca do “melhor que o meu vizinho” é um estímulo ao negócio, um acréscimo à faturação. Tais empresas beneficiam muito com a vaidade posta no jazigo e na sepultura. Na moda estão os granitos importados do Brasil, da África do Sul e até de Angola, mais nas cores cinza e preta. O mármore, já há muito caiu em desuso. E, claro, convém não esquecer os adornos como cruzes, lampiões, floreiras, livros, lápides e outros. Alguns muito caros, tão caros que se tornam um convite para a ladroagem…

No jazigo de um cemitério concelhio, a inscrição está em letras gordas para efeitos de “imortalidade”: “JAZIGO PERPÉTUO DE MARIA (permitam-me guardar o resto do nome) E MARIDO”. Só ela teve direito ao nome próprio. Só ela é importante. O “marido” é um acessório, um adereço sem nome, um anónimo, um “ramo de flores” para adornar-lhe o jazigo. É algo para que o mundo dos vindouros saiba que ela não ficou para tia, nem morreu virgem e seca como um carapau. Mas, o mais curioso, é que naquele jazigo só está enterrado ele, o anónimo “marido”. Porque ela, continua por aí “vivinha da Silva”, não sei se pronta a enterrar mais algum… E, nesse caso, ainda vai ter de alterar o epitáfio para MARIDOS…

Há toda uma indústria à volta do negócio da morte, utilizada por aqueles que, através destes sinais exteriores, querem exprimir os seus sentimentos pelos que já partiram, embora para muitos não seja mais do que uma “montra de vaidades”. E os nossos cemitérios e a nossa mentalidade, ajustam-se a isso. Por isso, preferia ser enterrado num cemitério como os americanos, autênticos parques relvados onde cada campa tem uma simples cruz e uma lápide, nivelando todos pela mesma bitola, pela mesma importância. Porque todos estão despidos de “teres e haveres”, tal como vieram ao mundo. E saberia que uma parte de mim continuaria a viver nas folhas, no alto de uma árvore ou rente ao chão onde sempre tive os pés, na relva.

Por cá, compete-se no arranjo da sepultura. Onde muitos honram os seus com flores colhidas no jardim de casa, quando não oferecidas pelos vizinhos, outros gastam autênticas fortunas em arranjos caríssimos para “mostrar” como é, quem é o maior. Quando não podem, para “não ficarem atrás”, roubam flores e adereços de outras campas. E tantas vezes nem sequer pensam no morto, que não passa de um motivo para se exibirem, num lugar de silêncios onde todos deveriam ser humildes…

Também tenho visto alguns jazigos mandados construir em vida pelos seus donos e futuros ocupantes onde, em letras garrafais, ao seu nome acrescentaram títulos profissionais, funções e cargos que desempenharam, numa falta de modéstia que atinge o ridículo. E o povo, que até tinha consideração por eles enquanto cidadãos, faz disso motivo de gozo e chacota. É que as honrarias que alguém atribui a si próprio e faz lavrar na pedra para a posteridade, só poem a nu a pobreza de espírito e a imbecilidade. Cabe à sociedade e não a cada um em relação a si próprio, de fazer jus “àqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”.  

Se antes a maioria das sepulturas eram em terra, hoje muitas são um buraco cimentado, porque há quem não suporte a ideia de ficar coberto de terra com medo de “abafar” e de vir a “ser comido pelos bichos”. Se já somos comidos em vida por todo o tipo de “bichos”, porque não depois de mortos? Verdade é que não se conhece um único morto que tenha vindo queixar-se do peso da terra, do ataque da bicharada ou do frio que passa nas noites de invernia. Num cemitério implantado em zona húmida, tais sepulturas enchem-se de água com frequência, “afogando” o caixão e, com ele, o seu ocupante. Será que ficar “afogado” é melhor do que “abafado” com terra? E que diferença faz? É que os mortos já não têm oportunidade de conquistarem ninguém, de “catrapiscarem” o olho a quem lhe está próximo. Os vivos, sejam viúvos ou viúvas, sim. Aliás, o cemitério é o lugar ideal para se encontrarem, para se conhecerem e, quiçá, se poderem “amparar” mutuamente nos momentos de saudade e maior tristeza… e nos outros.

Não é de agora esta moda que está a ganhar novo fôlego, de pessoas mandarem construir mausoléus soberbos para si próprios, querendo com essa exibição de poder económico comprar a “imortalidade, com monumentos fúnebres que a vaidade levanta à vaidade. Devem até acreditar que, com tais “adereços”, S. Pedro vai escancarar-lhes as portas do Céu quando os vir chegar. Só que se esquecem das palavras do Senhor e que fazem Lei lá no Céu: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”…

Um preço que temos de pagar…

Neste enorme tabuleiro de xadrez que é o mundo nós, cidadãos comuns, não passamos de peões para ser “comidos” em qualquer movimento das “peças” que dominam o “tabuleiro”. Somos a “carne para canhão” que alimenta guerras mas não faz parte da história. Não passamos de cobaias usadas nas mais diversas experiências, de produtos que vão desde medicamentos a alimentares, de pesticidas a cosméticos, de domésticos a industriais, sem estarmos conscientes das consequências do seu uso.

Como noutros tempos e com outros produtos químicos, a imprensa tem-nos “vendido” a teoria de que agora é o “glifosato” o alvo a abater, considerado pela OMS como “uma substância com potencial cancerígeno”. E levantam-se vozes de quem esteve calado durante quarenta anos a assistir à utilização deste herbicida, até agora tido como um milagre para a agricultura no combate a ervas perenes, aquelas que são mais difíceis de eliminar, acreditando piamente na ausência de perigo para a saúde pública proclamada pela Monsanto, a multinacional que criou o produto e teve o exclusivo da sua comercialização enquanto a patente foi válida. Sejamos francos e acabemos com a hipocrisia e a ilusão de que a utilização da maioria destes e outros produtos químicos não tem um preço a pagar, porque tem, e às vezes é demasiado grande para nós seres humanos. Mas isso é secundário perante os grandes interesses.

O DDT foi um dos pesticidas mais vendidos no mundo, ajudou a salvar milhões de pessoas e até serviu para nos matar os piolhos quando eu era criança. Até ao dia em que a bióloga americana Rachel Carson denunciou a poluição e os perigos do pesticida, no seu livro Primavera Silenciosa, ponto de partida para a criação dos movimentos de defesa do meio ambiente. Na sua luta, só anos depois da sua morte a poderosa indústria química americana foi vencida e o produto retirado do mercado. Mas outros vieram para o substituir como sendo melhores, mais inofensivos para tudo e todos, novas gerações de produtos e, não tenhamos ilusões, o tempo acabou e vai acabar por denunciar os perigos do seu uso. E a ganância é tal que, sempre que um produto como o DDT é retirado do mercado, os seus utilizadores compram-no “às carradas” para o armazenarem e poderem utilizar muito para além da sua proibição, indiferentes às consequências da sua aplicação em produtos agrícolas e nos efeitos para o ser humano. Vi isso quando foi proibida a comercialização do “aldrin”, um inseticida para combater especialmente o “alfinete” que ataca batatas, cenouras e outras culturas. Quando se soube que ia ser retirado do mercado, os agricultores que o costumavam usar acorreram aos locais de venda e compraram todo o produto que havia, esconderam-no e utilizaram-no ao longo de vários anos e enquanto tiveram, indiferentes às razões da proibição. E se fosse só com esse…

Hoje os produtos químicos entram na nossa vida (e na nossa boca) com uma intensidade e frequência tal, que nem nos passa pela cabeça a dimensão do problema. E, quem deveria estar vigilante, cala-se ou demite-se da suas funções e só quando acontece um caso mediatizado é que acordam (e nos fazem acordar). Por alguma razão se diz que “o ignorante vive feliz”. E nós somos e vivemos como tal… Senão, vejamos: Os médicos dizem que o peixe é bom para a nossa saúde e por isso o recomendam. E nós comemos… Só não sabemos é que muito dele, especialmente o de aquacultura, pode ser bom para nos arranjar problemas de saúde por conter doses elevadas de químicos perigosos, quer pelas águas onde são criados quer, especialmente, pelas rações com que são alimentados. Na Suécia, as peixarias informam os clientes quando o peixe é proveniente do mar Báltico, alertando-os de que só o devem comer uma a duas vezes por mês pelos riscos que representam para a saúde. Eles sabem como aquele mar é poluído, até com materiais radioativos da famigerada central nuclear de Chernobyl. E isso talvez explique a razão pela qual grande parte do peixe capturado nesse mar seja destinado à indústria de farinhas… para alimentar peixes de aquacultura… que nós comemos sempre que temos dinheiro para o comprar…. E vai dar tudo ao mesmo…

De vez em quando a comunicação social dá realce a um “produto perigoso”, como é o caso do “glifosato”, “vendo a árvore mas esquecendo a floresta” de outros produtos, tanto ou mais perigosos, que diariamente são utilizados na produção daquilo que consumimos. O drama, é que estamos “entalados” por um lado, pela grande força das multinacionais que controlam a produção e comércio de pesticidas e outros produtos e cuja influência sobre técnicos, políticos e países é mais que conhecida e, por outro, pela noção que, sem o controle químico das pragas e doenças, metade da população mundial poderá morrer à fome por falta de alimentos. Daí que, há quem opte pelo “mal menor”… o que para alguns, poucos, se torna num “bem maior”, o “preço a pagar”. E, quem paga, somos nós, os “carneiros”, não os “pastores”…

Tempos de “larica”, tempos de excessos…

Às vezes digo que “hoje se sofre mais por comer demais do que antigamente se sofria por comer de menos”. Também devo referir que, apesar de ter atravessado os tempos difíceis de outrora, tive a felicidade de não ter chegado a situações de carência tão graves como a maioria dos meus contemporâneos, alimentados quase exclusivamente com malgas de caldo mal “adubado” e um pedaço de broa, quando havia. Mesmo assim, se hoje contar aos meus filhos as situações de carência que vivi, pura e simplesmente não acreditam. Ainda há poucos dias alguém que também passou por esses tempos recordava como é que uma sardinha dava para três pessoas… quando havia sardinhas!!! E o quanto gostava de fatias de carne gorda com quatro ou cinco centímetros de altura, em cima de um naco de broa… Também eu…

A carência generalizada de comida e o facto de muitos alimentos serem escassos e só acessíveis a uns quantos, criavam recalcamentos, desejos insatisfeitos, que se mantinham e marcaram a vida de cada um de nós. Por alguma razão inconsciente, a maioria daqueles que aprecia mais a carne junto dos ossos, que pede as costelas do cabrito ou do leitão e gosta de “ossos de assuã”, viveu situações em que a carne era rara e, quando havia, normalmente era das partes do animal em que o osso e a gordura tinham relevância. Por isso, tudo era aproveitado, comiam-se os “rojões do redenho”, os ossos ficavam limpos e nem o “tutano” escapava.

As pessoas só se podiam “desforrar” das privações e da fome nos casamentos, compensando-as com excessos, com o “comer à tripa forra”. Aí, sim, soltava-se o apetite (o que não era difícil), alargava-se o cinto, “enchia-se o bandulho” e comia-se até não poder mais. Num almoço de casamento, a canja de galinha “abria as hostilidades”. E seguiam-se os pratos tradicionais como cozido à portuguesa e os assados, conforme a carteira do noivo, num desfilar de comida a que os olhos dos comensais não estavam habituados. Então, enchia-se o prato e “atacava-se” a comida para aplacar o “roncar” do estômago e saciar o apetite. Como resultado, com a pança cheia, quase a rebentar, era só vê-los sentados ou deitados, de roupa desapertada já quase sem se poderem mexer, tal como as cobras ao sol que acabaram de engolir um animal maior que elas. Alguns, com o desejo ainda não saciado, resguardavam-se num canto do quintal para meterem dois dedos na garganta, “lançarem a carga ao mar” para ganharem novo “espaço de armazenagem” e assim poderem voltar ao “campo de batalha”. Cheguei a ver um homem de meia idade a chorar convulsivamente, porque “não conseguia comer mais”… É provável que o que ele já não “devia” era beber mais…

As carências alimentares que atravessamos após a segunda guerra mundial deixaram marcas em toda a gente, de uma ou de outra maneira, condicionando a nossa forma de encarar a comida, de a valorizar, de evitar e ficar chocado com o desperdício a que assistimos nos tempos de euforia e que ainda se vai vendo por aí. E havia alimentos aos quais não se teve acesso e que deixaram desejos reprimidos. Lembro-me de um: O meu primeiro emprego depois de regressar do serviço militar levou-me para o Porto. Como não havia meios nem condição económica para ir e vir todos os dias, arranjei lugar num enorme quarto de quatro camas, uma a cada canto. No meio da divisão, um balde para “serviços noturnos”. Ficava junto à rua dos Caldeireiros onde já dormia um amigo e conterrâneo que trabalhava na cidade há alguns anos. Um dia fez-me uma proposta: “Ontem trouxe lá de cima um garrafão de vinho “morangueiro” (vinho americano). Se quiser alinhar, eu dou o vinho e você compra uma bola de queijo. É que eu tenho um desejo enorme de comer queijo à vontade, porque nunca o pude fazer. O máximo que comi foram duas fatias”. Aquela confissão simples de um desejo recalcado tocou-me de tal maneira que lhe disse logo que sim. Foi assim que, com uma bola de queijo (de mais de um quilo) e um garrafão de morangueiro, fomos parar ao jardim da Cordoaria ali perto(que no futuro seria conhecido como um lugar onde se viriam a passear outros “queijos” à procura de quem os “comesse”…) e sentamo-nos num banco a dar conta da “encomenda”. Depressa fiquei farto até porque, para além do queijo e vinho, não havia qualquer outro acompanhamento. Mas ele insistiu, insistiu, na tentativa de “dar cabo” daquela inquietação alimentar (e da bola de queijo…) que o consumia, até desistir, triste por não conseguir comer mais, se bem que as sobras fossem poucas.

Ora, hoje mesmo noticiaram que em Portugal já somos dois milhões de obesos, muitos deles crianças. Com a notícia, desfiaram também um rosário de doenças associadas ao excesso de comida e de calorias, muitas delas a provocar desfechos fatais. E recomendaram regimes alimentares e exercício, pois os “estragos” da fartura saem caros ao país e a cada um, provocando muita dor e sofrimento. Vivi numa sociedade de carência alimentar real porque, apesar de mal distribuídos, a realidade é que não havia alimentos para todos. Pouco a pouco, essa realidade foi-se alterando para outra de excessos e desequilíbrios (e desperdícios), com outro tipo de problemas como confirmam as estatísticas. Daí as chamadas “doenças da fartura”. Afinal, a pergunta prevalece: Não será que hoje se sofre mais por comer demais…??? No meu caso, não tenho dúvidas…

Os buracos na “caixa” do “milho”

Encontrei na “loja” duma casa de lavoura uma daquelas caixas grandes onde os agricultores, senhorios e algumas pessoas com posses guardavam outrora o milho. Feita em madeira de pinho velho, resistia ao “caruncho” e a todo o tipo de bicharada, pelo que era excelente para guardar cereal. Ali se ia buscar milho para dar de comer às galinhas e uma ou duas “rasas” para o moleiro de Moinhos, no fundo da freguesia junto ao rio Sousa, moer e transformar em farinha a troco da “maquia”. Também se tirava algum grão para juntar à “lavagem”, os restos que sobravam da confecção na cozinha e com que se alimentava o porco. A dona da casa geria o consumo de milho por forma a durar o ano inteiro, porque a colheita e a renda só aconteciam uma vez por ano. As caixas eram como cofres, onde o milho estava conservado e em segurança. Como a madeira era rija, não apodrecia e, regra geral, resistia bem aos ataques dos roedores e outros inimigos. Os ratos que enfestavam as “lojas” das casas, como sabiam que ali dentro havia comida, tentavam abrir buracos na madeira mas, quase sempre, em vão.

O milho era a base da nossa alimentação e estava sempre presente à mesa na broa cozida em casa. Todos os dias se comia broa e caldo. Dia sim, dia sim. Daí a sua importância para nós, gente desse tempo.

Com o passar dos anos as caixas onde se guardava o milho foram desaparecendo. Por um lado, porque a área de cultivo de milho grão na região foi diminuindo até quase desaparecer e, por outro, com a proliferação das padarias. Os próprios caseiros das quintas, que têm as suas rendas expressas em “carros de milho”, deixaram de ter grão para pagar a renda ao senhorio. E assim, os tradicionais “carros de milho” passaram a ser substituídos por dinheiro. A (quase) extinção do cultivo de milho na região para a produção de grão, fez com que as caixas desaparecessem e a sua madeira fosse aproveitada para fazer móveis ou tapar buracos.

Enquanto estas caixas iam passando à história, começaram a surgir como cogumelos outras “caixas”, algumas chamadas de “bancos” (talvez porque uns quantos ali “alaparam o cu” e por lá ficaram sentados, a “engordar”), onde se guardava outro “milho”, fruto do trabalho de um sem número de “pintainhos”, crédulos de que tais “caixas” eram seguras… Acreditavam mesmo que podiam dormir descansados e que o seu “milho” não corria perigo. E dormiram… Mas, tal como nas antigas caixas onde se guardava o outro milho, apareceu também o “gorgulho” que atacou o “grão” pelo lado de dentro e ainda os “ratos”, outro tipo de ratos, em pragas cada vez maiores e mais insaciáveis, que não deram um minuto de descanso à “madeira” pelo lado de fora. Começaram por abrir “buraquinhos” que rapidamente passaram a “buracões”, por onde entraram os “roedores esfomeados”, atacando o “milho” sem dó nem piedade. E enquanto os “pintainhos” andavam pelo campo a “esgravatar” à procura de “grãos”, conseguidos com muito esforço (porque são raros em tempos de crise), os “ratos” apanhavam grandes “barrigadas de milho” e deitavam-se ao sol besuntados com o seu “óleo”, para se protegerem dos raios solares, normalmente em praias lindas de areia branca e em lugares chamados de “paraísos”. Como o tamanho dos buracos nas “caixas” era grande, apareceram também os “porcos” saídos não se sabe de onde, orientados pelos “passarões” do costume. E, ao verem tanta “comida” à descrição, ali “à mão de semear”, atacaram “à focinhada” os montes de “milho”, comendo, cuspindo, roubando e estragando como se não tivesse dono, como se não houvesse amanhã. Foi assim que algumas “caixas” que todos consideravam seguras caíram, com mais buracos que um passador. Nos “caixotes de lixo” da informação ainda se conseguem ver restos de madeira com marcas gravadas a ferro em brasa, onde ainda são legíveis as letras BPN, BPP, BES e BANIF…

Já há alguns anos que se fala também da existência de “buracos” na maior “caixa de milho” do país, conhecida entre nós como a “Caixa Geral”, local onde a maioria dos “pintainhos” guarda o seu “grão”, porque era tida como a caixa forte cá do “galinheiro”. E foi lá que, “grão a grão”, muitos foram “deixar à guarda” o produto do seu suor, confiantes na segurança do lugar. Seria impensável alguém imaginar que a “Caixa” pudesse vir a ter “buracos”, muito menos “rombos”… Mas, as notícias que têm saído como quem não quer a coisa, talvez para “apalpar o pulso”, visam preparar-nos psicologicamente para quando da oficialização de que ali há mesmo “buraco”. Será só uma questão de tempo até a notícia ser confirmada. Na verdade, só nos falta saber “qual o tamanho do rombo”. E isso quer dizer também que vão impor aos “pintainhos” (há quem diga que já foram há muito tempo promovidos a “patos”…) uma “entrega adicional de milho a fundo perdido”, para tapar aquele que pode ser o “grande buraco” e que, entendidos no assunto, consideram ser um “enorme buraco negro”… Ah, tal como noutros casos, nenhum dos “ratos” que deram cabo do “milho” foi, nem será apanhado. Por isso, será de todo impensável que se venham a apanhar os “porcos” e os “passarões”, mesmo que sejam vistos por aí com o focinho e o bico cheios de “milho”… Até porque, se não tiverem outra desculpa, poderão sempre dizer que não é seu, é de um amigo… Como dizem para aí, “porque será que eu não tenho um amigo assim”?

E venham os “cavalheiros de domingo”…

Atribui-se a Honoré Balzac (e não a Émile M. Saint-Hilaire) a autoria de um livro publicado à quase dois séculos no Brasil no qual, em dez lições, se explicava “A arte de pagar suas dívidas, e satisfazer seus credores, sem desembolsar um tostão”. Aliás, Balzac sabia do que falava pois as dívidas perseguiram-no até à morte… Numa linguagem jocosa, para o autor “os credores são produtores de riqueza e os devedores, meros consumidores”. Ali se aconselha uma atitude socialista em que, “ficar a dever a pessoas que têm demais, será uma espécie de compensar as misérias e redistribuir a riqueza, contribuindo assim, de forma decisiva, para o restabelecimento do equilíbrio social e diminuição das desigualdades”. Recomenda como “qualidades morais” essenciais ao devedor, “sangue frio, boa memória dos credores, paciência de enfermeiro e constante presença de espírito”, mas que precisam de ser acompanhadas de atributos físicos como “olhos vivos e penetrantes, pés ligeiros, saúde de ferro e punhos de aço” pois, quem não possuir integralmente todas estas qualidades, está equivocado ao “financiar-se” com este esquema e será melhor não ter dívidas nem credores”. Um bom aviso, à época… Mas as coisas mudaram, diria mesmo, inverteram-se. Hoje os caloteiros não têm nada a ver com os de então e já não precisam nem das “qualidades morais” preconizadas nem dos tais “atributos físicos” como “olho vivo e pé ligeiro” da época de Balzac. Para quê? Agora quem deve ter essas características são os credores, que tantas vezes têm vergonha, quando não medo, de pedir o que é seu e que lhes é devido. Confrontados com a arrogância e a “lata” dos caloteiros, daqueles que assumiram dívidas e se comprometeram mas faltaram ao prometido, chegam a recear “dar de caras” com eles e até mudam de passeio quando veem algum e… têm tempo de o fazer.

Nas relações entre pessoas e sociedades sempre existiram situações de credor/devedor, tidas como normais. Outrora, estavam sujeitas a um código de valores que impunha confiança, honestidade, seriedade e palavra de honra. E (quase) ninguém queria faltar à palavra nem perder a honra. Estou a lembrar-me dos pedreiros da minha infância, os “empreiteiros” de então, a quem se entregava a tarefa de construir uma casa. No inverno, quando o tempo estava mau, não podiam trabalhar e, consequentemente, nada ganhavam. Por isso, mandavam a mulher à loja, como a do meu tio Peixoto, para comprar “fiado” os bens essenciais à sobrevivência da família. O merceeiro “assentava” a dívida num livro estreito e comprido, sendo o tamanho da dívida tanto maior quanto maior fosse a duração da invernia. A esta distância de tempo o que me ficou foi que, mal retomavam o trabalho e recebiam algum dinheiro, procediam ao pagamento religiosamente porque a honra estava acima de tudo.

No século XVII a Inglaterra tinha leis rígidas e severas para os indivíduos que não pagassem as suas dívidas, correndo sérios riscos de serem presos e julgados. Se merecessem condenação e os credores assim o exigissem, arriscavam-se a “bater com os costados na prisão”, podendo ser presos em qualquer dia da semana, excepto ao domingo por ser o dia do Senhor. Por esta razão, os caloteiros “encartados”, viviam os seis dias da semana escondidos e, dessa forma, evitavam ser presos mas, ao domingo, apareciam descaradamente em público como qualquer cavalheiro respeitável, sendo chamados de “cavalheiros de domingo”. Nesse dia andavam em liberdade pelas ruas, cafés, cervejarias e espaços públicos, misturavam-se com a multidão sem receio da polícia, sem temerem qualquer ameaça dos tribunais. O domingo era o salvo conduto, o bilhete que lhes assegurava a liberdade, para se passearem como “senhores respeitáveis” ataviados segundo a moda da época, de cabeleira ao vento, bofes de renda e espada à cinta, gozando esses curtos momentos em que eram senhores de si, de fazer o que lhes apetecesse. Dizia-se desses “cavalheiros de domingo” que eram “um sétimo de cavalheiro”…

Ora, vivemos um tempo em que há muitos caloteiros encartados, autênticos profissionais do “não pagar” que fazem disso a sua profissão, consumindo “à grande e à francesa” e acumulando riquezas “à conta” dos outros ou do estado (que somos todos nós) sem que a justiça lhes chegue. Escondidos em empresas que usam e abusam de esquemas, dos “buracos “ da lei e da inépcia de quem de direito, provocam falências “convenientes” depois de esconderem o património em nome de familiares e amigos ou em sociedades anónimas (e o nome diz tudo), levando à falência gente honesta a quem enganaram. Individualmente aproveitam-se da boa fé que (ainda) existe em muito boa gente e a quem depois se recusam pagar o que devem, mesmo tendo condições de o fazer. Entretanto, passeiam-se todos os dias da semana em grandes carros registados em nome de uma sociedade anónima, “cabeleira ao vento e bofes que nada têm de renda”. E são tantos!!!… Aliás, são demasiados. A confiança cai, a economia ressente-se, todos perdemos. Por isso, venha quem recupere essas antigas leis inglesas, com urgência, para retirar da rua a “praga” de caloteiros que, se não for banida, acabará por nos “engolir”. Assim, aumentará a confiança e o ar ficará mais respirável durante a semana… E ao domingo? Ao domingo saberemos que os caloteiros podem andar por aí feitos “gente honesta”, apanhar banhos de sol, quem sabe, “ir à missa” pedir perdão…