“A vida é hoje. Não deixes para depois”

Sem sequer o imaginar, a jornalista da RTP Sandra Felgueiras já me tramou com uma parte do seu trabalho no último programa “Sexta às 9”. E porquê? Porque andei eu a escrever uma crónica durante esta semana a propósito do uso ou não de máscaras de proteção por toda a gente quando sai à rua a exemplo do que fazem os orientais e ela, ao tratar do mesmo assunto, com outros dados que não aqueles a que eu tenho acesso, retirou-me o “protagonismo que tanta falta me faz para a minha vaidade pessoal e o meu Ego”. Paciência, tenho de arranjar outra conversa para esta crónica semanal, senão a direção do TVS corre comigo sem “direito a indemnização. Agora, o artigo já pecaria por tardio, correndo mesmo o risco de ser acusado de copiar algumas informações que ali deu. 

Não sendo médico nem sequer especialista em questões de saúde, ao ler e ouvir diversas opiniões, estatísticas e dados cronológicos da evolução do novo vírus no mundo e usando o senso comum, nesse esboço defendia o uso de máscara por todos nós sempre que vamos à rua porque, boa ou má, certificada ou de fabrico caseiro, tem de reduzir drasticamente o contágio. Se eu usar e o outro com quem falo usar também, há uma dupla proteção por mais fraco que seja o tecido. Já o tinha lido, mas a jornalista desenvolveu bem a comparação entre a República Checa e Portugal, países com a mesma população. Lá, o primeiro infetado surgiu a um de Março, enquanto aqui apareceu no dia seguinte. E se nas duas primeiras semanas a evolução da doença foi em tudo semelhante nos dois países, a partir do momento em que lá foi decretado o uso obrigatório de máscara, o aumento de mortos e infetados disparou em Portugal enquanto por lá foi subindo lentamente, ao ponto de hoje, com pouco mais de uma semana, a perda de vidas na República Checa ser quatro vezes menos do que em Portugal com esta doença. 

Mas estes dados já vinham da China e outros países orientais onde, até por razões culturais, o uso de máscara é normal nestas e outras situações semelhantes, pois as perdas de vidas por milhão de habitantes são muito inferiores ao que se passa no ocidente, onde teimamos em andar na rua ou às compras sem proteção, como se fôssemos imunes ao vírus. Verdade é que até Trump e Bolsonaro já se converteram à realidade, embora à custa de muitas mortes talvez desnecessárias. Por cá, apesar da mudança do discurso oficial, ainda andamos “a ver no que param as modas” … 

Já que me “mataram” o tema que tinha para esta edição, substituo-o pela morte do “depois” provocada por uma razão qualquer, agora até pelo Covid-19. Todos aqueles que andaram a atirar para “depois” uma viagem, encontro de colegas de curso, reunião de amigos, ida à Festa do Fumeiro, das Fogaceiras, dos Tabuleiros ou qualquer festa emblemática que há muito tempo gostariam de fazer mais longe ou mais perto, mas se foi deixando para o “depois”, agora não sabem quando, como, nem sequer se o vão poder fazer. Isso e muitas outras coisas que teimamos em “postergar”, isto é, deixar para depois. Sobre tal, nada melhor (e mais fácil para mim) do que transcrever um texto de autor anónimo que acho encantador.   

“O tempo não pode ser segurado: a vida é uma tarefa a ser feita e que levamos para casa

Quando vemos, já são 6 horas da tarde

Quando vemos, já é sexta-feira

Quando vemos, já terminou o mês

Quando vemos, já terminou um ano

Quando vemos, já passaram 50 ou 60 anos

Quando vemos, nos damos conta de ter perdido um amigo

Quando vemos, o amor da nossa vida parte e nos damos conta que é  tarde para voltar atrás …

Não pares de fazer alguma coisa que te dá prazer por falta de tempo

Não pares de ter alguém a teu lado ou de ter prazer na solidão

Porque os teus filhos subitamente não serão mais teus e deverás 

 fazer alguma coisa com o tempo que sobrar

Tenta eliminar o “depois” …

Depois te ligo …

Depois eu faço …

Depois eu falo …

Depois eu mudo …

Penso nisso depois …

Deixamos tudo para depois, como se o depois fosse melhor, por que não entendes que: 

Depois, o café esfria …

Depois, a prioridade muda …

Depois, o encanto se perde …

Depois, o cedo se transforma em tarde …

Depois, a melancolia passa …

Depois, as coisas mudam …

Depois, os filhos crescem …

Depois, a gente envelhece …

Depois, as promessas são esquecidas …

Depois, o dia vira noite …

Depois, a vida acaba …

Não deixes nada para depois, porque na espera do depois se podem perder os melhores momentos, as melhores experiências, os melhores amigos, os melhores amores …

Lembra-te que depois pode ser tarde

O dia é hoje, não estamos mais na idade em que é permitido

postergar.

Talvez tenhas tempo para ler, compartilhar ou talvez deixes para depois …”

Nada na vida é dado por adquirido…

Devo ter medo. Devemos ter muito medo, porque o mundo à nossa volta está inseguro, perigoso, eventualmente letal. Nalguns países, descontrolado, a caminho do caos. Se folhearmos jornais dos últimos dias, em Itália e Espanha a secção de óbitos tem mais de uma dúzia de páginas. E tudo por causa do novo “coronavírus” que, no dizer de quem sabe, nem sequer é um organismo vivo, mas “uma molécula de proteína coberta por uma camada protetora de gordura”. Invisível a olho nu? Certamente, mas só é “invisível” para quem não quer vê-lo, tal é a velocidade de propagação e a dimensão das consequências. Um vírus, um simples vírus anónimo, desconhecido e microscópico. Já nos tirou muito, mas pode tirar-nos muito mais. Para começar, já nos tirou a segurança, a certeza de um amanhã tranquilo e saudável. Tirou-nos salários, rendimentos, trabalho, além da possibilidade de exprimirmos os afetos através dum abraço, dum beijo, duma carícia ou de um simples cumprimento. Colocou-nos à distância dos outros, alegadamente para não o espalharmos por aí, mas sem certezas pois não o vemos e nem sabemos se o temos ou o tem aquele com quem falamos. É um jogo de “cabra-cega”, jogado às escuras e de olhos bem vendados. Devemos ter medo? Claro, sem entrar em pânico, tomando as cautelas que todas as entidades sanitárias aconselham. Com rigor, o máximo rigor. Disso depende a sua evolução e a segurança, nossa e dos outros, porque todos estamos no mesmo barco.

Pode-se dizer que esta pandemia é democrática, já que nos nivelou a todos, porque todos estamos expostos ao contágio. Ricos ou pobres, famosos ou anónimos, altos ou baixos, homens ou mulheres, pretos ou brancos, justos ou pecadores, intelectuais ou ignorantes. Ele não exclui ninguém, independentemente da classe, gênero, religião ou raça. Mas não é tão linear quanto isso, pois certamente estará mais protegido aquele que se meteu no seu avião privado e voou para uma ilha isolada onde há poucas possibilidades de contágio, do que aquele morador duma barraca nas favelas de Rio de Janeiro ou da África do Sul. Veja-se o caso do rei da Tailândia: só está em “isolamento” num hotel de luxo na Alemanha, com 20 concubinas …

Também se pode dizer que o novo coronavírus fez de nós exilados na nossa própria casa, obrigando-nos a regressar ao convívio da família. E devemos tirar partido disso, dando aos nossos o tempo que não concedíamos antes da sua chegada. Será que vamos aproveitar ou cansamo-nos depressa uns dos outros? Será que isto nos vai servir de lição para o futuro?

Esta terrível pandemia fez-nos descobrir o melhor e o pior que há no ser humano. Ao sermos confrontados com ela, tanto encontramos a solidariedade de quem partilha o que tem com os outros como damos de caras com o egoísmo de quem só pensa em si, açambarcando e ignorando as necessidades de quem lhe está próximo. E tanto vemos atitudes de generosidade e dedicação aos mais frágeis, como o fazem as senhoras que cuidam dos idosos nos dois Lares da Misericórdia de Lousada, em períodos contínuos de sete dias, noite e dia dentro das instalações com os idosos, sacrificando as famílias e as suas vidas, como vemos os “bem instalados” que não querem, nem se sujeitam a estender a mão a quem precisa, especialmente nos dias que correm, ainda que seja somente para o ajudar a levantar-se.  E tanto vemos os profissionais de saúde numa luta constante e aturada até à exaustão, alvos privilegiados do mal que combatem por nem sempre estarem devidamente protegidos, como topamos negligentes a “fazer turismo em dia de sol”, sem respeitar instruções das autoridades no combate à pandemia. Não devo deixar de citar o contraste entre fornecedores da Instituição a que estou ligado, em que uns ofereceram o que lhes foi possível dos produtos de proteção, enquanto outros apareceram … com propostas vergonhosas de tão especulativas e oportunistas. Uns abutres. Da solidariedade ao egoísmo, da dedicação à indiferença, da generosidade à maldade, do trabalho ao absentismo, são múltiplos os exemplos que nos sensibilizam e fazem acreditar na humanidade, tal como existem os que chocam e nos tornam descrentes. 

Uma das grandes lições que temos obrigação de tirar desta crise que nos afeta a todos e de consequências sanitárias e económicas ainda não mensuráveis, é que “nesta vida, nunca podemos dar nada como adquirido”. Se pensarmos que há pouco mais de um mês fazíamos a vida normal, trabalhando e produzindo riqueza, planeando com a família sobre qual o destino para as próximas férias, eventualmente numa viagem há muito sonhada, programando a conclusão de um negócio, a abertura de mais uma loja, andando por aí livremente sem restrições e sem limitações, podendo “ir à bola”, ao shopping ou ao cinema, jantar com os amigos ou viajar livremente em qualquer meio de transporte, com a certeza de que o amanhã seria risonho, que sentimento nos domina volvidos que são pouco mais de trinta dias e o que poderemos esperar dum amanhã que é uma grande incógnita e em que a maior parte do que estava dado como certo já não o é? 

De repente, deixamos de poder falar de liberdade quando estamos confinados a quatro paredes por tempo indefinido, condicionados a saídas esporádicas e breves; deixamos de poder falar de segurança já que até temos medo da proximidade dos outros, medo de perder o trabalho, medo da doença; deixamos de poder projetar o futuro que estará condicionado, quando não hipotecado por muitas incógnitas; deixamos de poder fazer a vida normal, porque tudo à nossa volta perdeu a normalidade. Refugiados em casa como meros prisioneiros, temos medo do vírus como se de um fantasma se trate, sem saber por onde anda, quando chega, se nos vai assaltar e o que nos vai roubar: é a carteira? O emprego? A saúde? Ou a vida? De repente, perdemos as certezas e só ganhamos dúvidas e medos. Enfim, “não podemos dar nada por adquirido”, pois tudo o que existe na nossa vida pode deixar de existir de um momento para o outro. O sinal que tudo é transitório e nada é nosso … embora haja sempre um amanhã.

Fique em casa e cuidado com o bolso

Fiquei em casa, cumprindo uma regra fundamental no combate ao “inimigo invisível” que nos ataca a todos. Aqui, na Europa, no mundo. Mas confesso que demorei um pouco mais do que devia a interiorizar que tinha de o fazer. Por mim, pela família e pelos outros. Porque só com o empenho de todos somos capazes de sair desta, mais depressa e com “menos baixas”. Sejamos francos: começamos por não levar isto a sério, por não acreditar que este vírus é um assunto grave e por pensarmos estar imunes e ser um problema “dos outros”. “Temos a nossa vida e não podemos parar”, pensamos. Até porque esse (mau) exemplo “veio de cima”, tal como veio de vários lideres mundiais que negaram as evidências. Só quando a “sua casa lhes começou a arder” acordaram para a realidade. Alguns até aconselharam os seus povos a enfrascarem-se com whisky e vodka para que o “bicho não pegue” e só agora estão a tomar (alguma) consciência desta dura realidade.

A viver na China como treinador adjunto de futebol no Shangai SIPG, Luís Miguel criticou o que se fez na Europa, em especial Portugal, e aconselhou os portugueses a mudarem alguns comportamentos. O técnico português afirma que a Europa não está a levar este vírus com a devida seriedade, tal como fizeram os chineses, “os únicos no mundo que estão a conseguir controlar a epidemia: “A China está a conseguir controlar bem o vírus, que é mortífero, porque tem muito respeito e disciplina. Tiveram muita paciência, fecharam-se em casa, a economia parou … mas ficaram em casa. Dói-me ver o que se passa na Europa. Tivemos três meses para aprender com a China, mas nós desvalorizamos o “inimigo”. Vê-se o que se passa na Itália, Espanha, Irão. Fiquei aterrorizado quando me desloquei para a China. No aeroporto de Lisboa ninguém estava protegido, não houve controle de temperatura. Zero. Aqui está tudo de quarentena. Há disciplina. Aconselho: parem, fiquem em casa com a família. Só uma pessoa deve ir às compras. Quando voltar, desinfete os sapatos, ponha a roupa para lavar e tome banho. Parem as caminhadas, as corridas fora de casa. É preciso muita disciplina, paciência e respeito por este vírus”. 

Será que percebemos bem esta mensagem e que a estamos a praticar em pleno? Ou achamos (e eu incluo-me no grupo) que não tem mal nenhum fazer uma caminhada ou corrida lá fora, que não é preciso esse rigor de ir só uma pessoa à rua e à chegada ter de desinfetar o calçado, deitar a roupa para lavar e tomar banho?

Sejamos realistas: não é fácil aceitar que temos de parar, deixando o negócio, a atividade, o lazer, os deveres lá de fora, em suma, a vida, com todas as consequências económicas e financeiras atuais e futuras que virão depois, quando não já. Está visto que esta batalha é ganha só com a “ausência”, o que só por si é um ato heroico, se bem que os verdadeiros heróis sejam os que lutam 24 horas por dia para nos salvarem. Mas será que vale a pena pôr em risco a saúde, quando não a nossa vida – e a dos outros que amamos e nos rodeiam – porque o futuro fica comprometido? Mas não está ele desde já comprometido? O nosso e de (quase) todos?

E digo “quase todos” e não “todos” porque, como em tudo na vida, há sempre quem se aproveite da situação, sem escrúpulos ou vergonha, para ter ganhos indevidos, especulando com os bens necessários ao combate contra o vírus, já para não falar de outros. Falo no caso dos produtos de prevenção contra a propagação do novo coronavírus – equipamentos de proteção individual e dispositivos médicos, como máscaras, luvas e fatos, e produtos biocidas como o álcool, gel e desinfetantes. Mais que nunca, a não serem gratuitos, deviam estar acessíveis a preços normais. Mas, apesar das notícias dizerem que as “entidades públicas responsáveis” não encontraram sinais de abusos de preços depois de “visitar alguns estabelecimentos”, todos sabemos que a realidade nada tem a ver com essa “ficção”. E, se precisamos de nos defender do maldito vírus que vai virar as nossas vidas de pernas para o ar, em momento tão difícil, infelizmente também temos de nos defender dessa cambada de especuladores e oportunistas que não respeitam nada nem ninguém. 

Para que se compreenda a dimensão dos “roubos” e o tamanho da pouca vergonha, vou só fornecer alguns números: até há pouco tempo compravam-se “máscaras cirúrgicas” às empresas fornecedoras a “4” cêntimos. Repito para que se perceba bem: 4 CÊNTIMOS. E, de repente, como por magia, o mesmo artigo no mesmo fornecedor passou a custar … 60 CÊNTIMOS. Cada uma. O que é isto senão um assalto sem arma, um roubo à descarada? E a falta de vergonha é tal que outro fornecedor teve o desplante de nos dizer que guardou uns milhares delas para nós, por consideração. E a que preço? Um euro e meio. CENTO E CINQUENTA CÊNTIMOS. Mais de trinta e cinco vezes. Que grande consideração!!! E há uma empresa na região que as fabrica em grandes quantidades, mas nenhuma para cá. Vão todas para fora. Dizem-me que a 5,00 € cada!!! Cento e vinte e cinco vezes mais caras … e não há requisição civil. Não estamos num “estado de emergência”? A especulação nestas máscaras acontece também com as máscaras “bico de pato”, gel de álcool, desinfetantes, álcool e tantos outros. As batas impermeáveis, que nada têm a ver com o vírus, subiram quase vinte vezes. E aqueles “pés cirúrgicos” que se enfiam nos pés, saltaram de 5 cêntimos para 2,00 €.

Nem no tempo da II Guerra Mundial os bens essenciais inflacionaram tanto em tão pouco tempo, o que só vem comprovar que estamos noutra Guerra, com consequências sanitárias e económicas incalculáveis. E é neste clima que os especuladores, qual “abutres” a aproveitar-se da necessidade e do sofrimento alheio, “medram a olhos vistos, sem que ninguém os ponha onde deveriam estar”. Como penso “que podemos esperar sentados”, tenhamos consciência que “estão mexendo no nosso bolso” de forma brutal, escandalosa, a raiar o obsceno, sem ter quem nos defenda …

Com máscara ou sem máscara, vou continuar por casa, tentando ser “chinês em quarentena” ou, pelo menos, a saber copiá-lo, para meu bem e daqueles que me são próximos. Estou a aproveitar para pôr as minhas coisas em ordem, fazer jardinagem, cuidar da pequena horta, ler, fazer passatempos e separar algum do muito “lixo” que tenho cá em casa para aliviar a carga. Para não ficar aborrecido, espero não ir contar quantos grãos tem um pacote de arroz e questionar porque é que o outro pacote, que pesa o mesmo, tem mais 6 ou 7 grãos …

E não preciso de estudar para, quando me disserem que a doença é respiratória, não correr disparatadamente por aí a comprar papel higiénico às carradas… 

“Discriminados”. Ouça, fique em casa

Há dois mil anos existia uma doença terrível que, nessa altura, não tinha cura: A lepra. Quando alguém tinha sintomas da doença, dirigia-se ao Templo e era o sacerdote a confirmar se era “leproso” ou não. Em caso afirmativo, era privado do convívio com as outras pessoas, tinha de viver num lugar isolado e informar os outros que sofria de lepra. Os leprosos deviam morar fora dos muros das cidades. Como a doença era incurável e contagiosa, os lideres religiosos judaicos criaram regras que dificultavam muito a vida dos doentes. Uma delas impunha a distância mínima entre um leproso e uma pessoa sadia em 2 metros, mas que, com vento, passava para 45 metros. Os leprosos acabavam por ter de viver em cavernas isolados da sociedade e, se quisessem contactar alguém, teriam de tocar o sino para se fazer anunciar, manter a distância de segurança e dar conta que ia passar um imundo, um contaminado pela lepra, arriscando ser corridos à pedrada pelo líder religioso. As regras a que os leprosos estavam sujeitos eram minuciosas. Não podiam entrar em casas, hospedarias e igrejas, nem tocar em objetos usados por todos, como corrimões de escadas, sem usar luvas. Tinham de usar uma veste especial e levar sinetas a anunciar a sua presença. Em suma, eram discriminados pela sociedade. A sua situação era humilhante e durante grande parte da História foram vítimas desse “estigma social”. 

Ora, não estando infetado por uma das bactérias que provoca a lepra – tanto quanto sei – nem tendo sido declarado pelo “sacerdote do Templo” como “leproso”, apesar de também não estar infetado com o covid-19, senti-me a modos que um “novo leproso” nos últimos dias só pelo facto de viver em Lousada. E, como eu, todos os que moram cá e em Felgueiras, estejam ou não infetados com o coronavírus. Será que vamos ter de avisar que chegamos ou até que vamos passar, para terem tempo de se afastarem e manter uma distância de segurança? Percebo que o medo do desconhecido cria o pânico e este conduz a comportamentos absurdos, até porque nenhuma autoridade impôs e nem sequer aconselhou a quarentena. Faz algum sentido que, numa paróquia de concelho vizinho, no limite com o nosso, se diga a uma criança “não vais fazer o Pai Nosso porque frequentas uma escola que está no concelho de Lousada”? Faz algum sentido que uma jovem que estuda num colégio privado de um outro concelho, quando lá chegou em transporte do colégio, tenha sido informada para recolher as suas coisas de imediato e regressar a casa como se fosse “leprosa”, sem lhe assegurarem transporte, sem dinheiro e sem respeito, entregue a si mesma, só porque … Estiveram bem os presidentes das câmaras de Lousada e Felgueiras ao denunciar as “pressões sofridas por alunos nas Universidades para não frequentarem as salas de aulas e demais espaços delas, alegadamente devido ao vírus, medidas consideradas discriminatórias, ilegais e lesivas das pessoas.

Claro que a forma como a informação passou e a imprensa explorou, ajudou a que esta “onda discriminatória” ganhasse velocidade, qual tsunami. Senti isso nalguns telefonemas que recebi de mais ou menos longe a perguntarem-me se estava bem e não tinha nenhum sintoma, como se por morar aqui fosse sinónimo de “infeção automática”; em encontros desmarcados à última hora porque “não me parece ser o momento oportuno”, “adoeceu-me o adjunto e já não posso sair” ou outra desculpa mais ou menos esfarrapada.

Entretanto, o vírus está a espalhar-se a um ritmo crescente a partir de várias origens, aumentando o número de infetados e já com um morto na estatística, o que tem levado as autoridades a tomar mais medidas, novas medidas, sendo que a atividade do país é reduzida. Instituições, empresas, estabelecimentos comerciais, desportivos, recreativos e muitos outros encerram ou quase. E o conselho geral das autoridades é um só: “Fique em casa”. Porque é preciso conter a disseminação do vírus. É que, ao estar com alguém, não sabemos se estamos ou não a correr riscos. Começamos a ter noção dos contactos cruzados, que A esteve com B e este com C que se soube agora estar infetado. A cabeleireira encerrou o salão ao saber que uma cliente esteve em contacto com familiares de outra a quem foi diagnosticada a infeção. E uma esteticista telefonou a todas as clientes cancelando as marcações, ao tomar conhecimento que a mãe fora confirmada como mais um caso. E quem se encontrou com alguém nesta situação pergunta-se: “Será que também já estou”? 

Por isso, custe o que custar, faça tudo o que puder para ficar em casa, ainda que isso não seja fácil. E como o humor continua a ser uma das formas de combater o medo, transcrevo a mensagem enviada por um amigo metido em casa, de autor desconhecido:

“Primeiro dia de isolamento- Isto do covid até tem as suas vantagens: não vou para o escritório aturar o pascácio do chefe e posso dormir até mais tarde. Vou aproveitar para ler aqueles livros que comprei na feira do livro em 1988 quando namorava com a minha mulher e a levei lá. E ver se desligo um bocado da net e do facebook e fortaleço laços com a patroa e os miúdos.

Segundo dia de isolamento- O meu apartamento até é bem fixe e acolhedor. Tenho uma família 5 estrelas: a minha mulher é meiga e os putos são porreiros. A vizinhança é do melhor.

Terceiro dia de isolamento- Os miúdos acordam muito cedo. A minha mulher ressona. Gostei muito do pequeno almoço feito por ela, mas não percebi muito bem o que ela quis dizer que isto não é nenhum hotel. Os vizinhos são um pouco estranhos.

Quarto dia de isolamento- Os sacanas dos putos já levaram duas galhetas cada um. São dois terroristas. A gaja também já começou a desconversar. Fui lá abaixo pôr o lixo, alguém desinfetou o elevador com lixívia. Carreguei nos botões com os cotos.

Quinto dia de isolamento- Matem-me. Prefiro apanhar o vírus do que estar neste inferno. Acabou o álcool, o suicídio parece-me a melhor solução. A bruxa não me larga. Desconfio que os miúdos não sejam meus. Os vizinhos de cima não me dispensaram um rolo de papel higiénico. Forretas.

Décimo dia de isolamento- A privação de álcool e tabaco provoca-me alucinações. A minha mulher e eu estamos muito melhor desde que ela se barricou no quarto. Dei os putos para a adoção. Os vizinhos são uns filhos” …

Caso sério, que importa desanuviar…

“Estamos feitos ao bife”, diria um amigo meu que já não anda por cá. É que já ninguém fala da Operação Marquês, do Sócrates, do Salgado e companhia. Nada. Já ninguém fala do Benfica ter caído ao segundo lugar do campeonato. Nada. Também ninguém fala da novela sobre o novo aeroporto de Lisboa, agora a não poder “aterrar” no Montijo. Nada. Ninguém fala dos dez milhões de euros que o Varandas pagou por uma “cria de treinador” de futebol. Nada. Ninguém agora fala dos impostos altos, da vida cara, das loucuras do Trump, nem da Cristina e do Cláudio e da telenovela que os une ou separa. Nem tão pouco das “lindas canções” que a RTP nos ofereceu no Festival da Canção. Nada. Porque o que está a dar, é só o “coronavírus”. Basta ver os telejornais das televisões nacionais (não sei como são as outras).  Começam logo a abrir com as notícias mais impactantes sobre a epidemia e depois passam metade do tempo a venderem-nos o “coronavírus” como se nos fosse “limpar o sarampo” a todos, para não falar na contabilidade sobre casos suspeitos daqui à China, para além dos infetados curados e outros mais. “Já são dois os infetados”, “já são cinco”, “atingiram a dezena”. A imprensa vibra e mais parece um relato de futebol. Das duas uma: ou apanhamos o vírus (ou será ele que nos apanha?) ou apanhamos uma depressão. Não há meio termo. Dizia uma mãe num desabafo após um período de isolamento que a deixou desesperada: “Depois de uma semana fechada em casa com os meus filhos por causa das medidas impostas pelo governo, se eles não morrerem com o coronavírus, sou eu mesma que os mato” …

É um vírus muito contagioso? É. Tão perigoso para a saúde como uma gripe? Mais contagioso e, provavelmente, é mais letal. Temos de ter cuidados? Temos, mas não precisamos de alarmismo. O alarmismo leva-nos a comportamentos irrefletidos e estúpidos que não ajudam. Em nada. De um edifício de acesso público onde existem embalagens de produto para desinfetar as mãos têm desaparecido muitas delas. Será normal ou está tudo louco? É verdade que já temos infetados, é espectável que o número aumente muito ou um pouco menos e que pode haver mortos. O que é natural, como doença que pode agudizar. Vai chegar a nossa casa? Acredito bem que sim. Há essa possibilidade, mesmo que tome todas as medidas de prevenção aconselhadas pelas autoridades (e as outras que vizinhos e familiares defendem …). Mas corre menos riscos se adotar medidas preventivas. Claro, sabendo sempre que um dia destes tocam à porta e quando for atender “ouvirá” o coronavírus dizer: “Cheguei!!!  

Isto está a ficar muito estranho. Basta sair à rua, ver os sinais. Vamos cumprimentar alguém e puxa-se a mão atrás dizendo que “agora não se pode”. Vai-se dar um beijo e as cabeças ficam a vinte centímetros, não mais perto. Se possível, “não pode ser”. Pode-se dizer sem errar que é uma doença “anti-social”. Não se pode beijar, trocar um aperto de mão, fazer um afago, muito menos abraçar. Até a ministra pede para nos contermos nesses cumprimentos e manifestações diárias de sociabilidade e afeto. Por isso, mantenha a distância. Use fita métrica.

O humor é uma forma do ser humano vencer o medo. É um consolo de último recurso a que nos podemos agarrar. Porque todos temos medos, especialmente do que se não conhece, mesmo que não demos sinais nem o queiramos reconhecer. E o coronavírus é desconhecido. Por isso o ser humano tem usado humor para “combater” este medo manifestando-se por todo o mundo das mais variadíssimas formas, brincando com uma coisa séria, que se pode enfrentar com humor. Basta ver o que circula nas redes sociais e a criatividade imensa que nos faz sorrir. Satirizam as máscaras de proteção preconizando o uso de preservativos, seja só para a cabeça ou mesmo para o corpo todo;     

utilizam o simples garrafão de plástico da água recortado por forma a que a cabeça se encaixe dentro, com ventilação pelo gargalo; o copo de plástico seguro no focinho de um cão ou peças de roupa interior de senhora adaptadas como máscara numa crítica saudável à falta de material no mercado, esgotadas pelo açambarcamento.

Os chineses primeiro e agora os italianos fazem parte dos “bonecos”.  Um deles diz: “Meu Deus, com esta história do coronavírus os pobres não têm um dia de descanso. Sempre que veem um chinês a virar a esquina, põem-se logo a correr em sentido contrário” … Houve um que fez circular nas redes sociais algo como: “aluga-se chinês, que dá direito a quinze dias de férias em quarentena” … Ou então, há quem sugira que os turistas italianos e chineses devem ser aconselhados a visitar o Palácio de S. Bento, pois “é um belo edifício que vale a pena conhecer. E até quem ponha o vírus a “falar”, como no caso: Quando perguntaram ao coronavírus qual é uma das suas grandes paixões, respondeu: “Dar a volta ao mundo” …

Confesso que, de vez em quando, dou comigo a empurrar as portas com o ombro ou a puxar pela manga da camisola para me agarrar ao puxador, quando não usando outro estratagema qualquer para evitar pôr as mãos em contacto com algo que pode ser um transmissor do “bicho” por contágio. Paranoia ou precaução? A verdade é que é real em todos nós, com manifestações muito variadas. Para isso, o melhor texto é de um autor anónimo, que transcrevo:

“Hoje, no trabalho, empurrei a porta do WC com o joelho, acendi a luz com o ombro, levantei o tampo da sanita com o pé, acionei o botão do autoclismo com o cotovelo, abri e fechei a torneira da água com o antebraço, sequei as mãos sem tocar no secador, puxei a porta com a biqueira do sapato e atravessei os corredores sem tocar em nada. Uma hora depois, na pausa do café, avisado por uma colega bastante alarmada, reparei que me esquecera de arrumar o “instrumento” e de fechar a braguilha!…”.

O preocupante é que nos andaram a dizer que estávamos preparados e, afinal, não estávamos, apesar do tempo que o vírus nos “concedeu”. Mas, talvez nos valha a nossa capacidade de improviso … ou O Senhor dos Aflitos … 

O valor duma simples bola de trapos

Precisei de falar com um amigo e, sabendo que estava a assistir ao treino de futebol do seu filho ainda muito novo, fui lá procurá-lo. Achei interessante ver parte do treino e, em especial, o entusiasmo com que alguns pais vivem tão intensamente a evolução do seu rebento e o sonho lindo de uma carreira a dar chutos na bola. Mas, quando vi aqueles sacos cheios de bolas não pude deixar de sentir uma ponta de inveja porque, quando eu era criança, não havia sacos de bolas de futebol, não havia sequer bola de futebol. O que nós tínhamos para jogar era … uma bola de trapos E para isso, algum de nós tinha de conseguir arranjar lá por casa uma meia velha. As melhores meias para fazer a bola de trapos eram as “de vidro”, porque conseguia-se que a bola fosse maior. Mas, na sua falta, qualquer uma servia, sendo cheia com trapos velhos ou mesmo folhas de jornal amarrotadas, que se comprimiam o mais possível enquanto se lhe dava uma forma arredondada. 

Jogávamos a bola nos caminhos de terra (eram todos) com mais ou menos buracos, sendo as balizas delimitadas por duas pedras. Não havia treinador nem lugar a táticas e as fintas eram difíceis, até porque jogar com uma bola de trapos dava para o que dava. Como era “tudo ao molho e fé em Deus”, valia mais o pontapé para a frente e direto à baliza, se possível, defendida pelo miúdo descalço e de calças rotas, na tentativa de marcar golo. E lembro-me que se jogava com entusiasmo e alegria natural. O resultado era menos preocupante do que o raspanete da mãe quando chegasse a casa por ir todo sujo, quando não com mais um rasgão nas calças. Não havia bolas de “couro” p’rá malta. Eram inacessíveis.

Só para se ter uma ideia, assisti a jogos do Lousada no velho campo junto à feira, em que só havia uma bola de cada equipa. Se durante o jogo um chuto mais forte e torto a atirasse para o campo de milho para lá da vedação, havia sempre alguém do lado de fora para ir atrás dela. Houve ocasiões em que o jogo teve de ficar parado, à espera que a bola fosse devolvida ao terreno de jogo … por não haver outra.

Nós, miúdos, quando recebíamos alguns tostões como nos funerais por integrar a “cruzada”, íamos logo investi-los a comprar rebuçados de fraca qualidade, mas que traziam a embrulhá-los fotografias de jogadores de futebol, ídolos do nosso tempo, parte da coleção de cromos que se colava numa caderneta, com a vã esperança de a poder completar e ganhar aquela linda bola de futebol, tida como feita em cabedal, mas que muitas vezes mais parecia do tipo cartão prensado. Havia sempre um cromo único de um jogador que o fabricante desse negócio colocava bem no fundo da caixa para se venderem os rebuçados até ao fim, pois caso contrário, mal alguém completasse a caderneta e levasse a bola, acabava-se o negócio. O miúdo que a ganhasse era o felizardo, muito invejado por todos os outros que queriam muito poder dizer que “jogaram com uma bola de couro”. Ficavam pendentes dele para começar ou acabar um jogo. É que ele era o “dono da bola”. Bastava que a sua equipa estivesse a perder ou não o deixassem marcar o penalti, agarrava na bola meio amuado, dava o jogo por terminado e caminhava para casa …

Já adolescente, joguei pela equipa lá da terra, o Macieira, contra outras freguesias dos arredores. Os jogos e treinos eram realizados no terreno do adro de S. Gonçalo e a bola, já em couro, cosida à mão e com câmara de ar, de vez em quando furava ou rompia-se pelos pontos da cosedura. Um dia um dos remates foi forte e direitinho … a uma lança da grade que havia na capela e a bola “morreu” de repente. Quando isso acontecia, acabava o jogo por não haver bola substituta …

Ao ver que hoje bolas de cabedal não são problema, nem em qualidade nem em quantidade e ao olhar para essa infância distante, fico dividido: Se ter inveja pelo muito que hoje há comparado com o nada de “ontem” ou ficar feliz pelo entusiasmo, alegria, gosto e entrega ao jogo pelo jogo desse “ontem” – porque era só um jogo de bola que estava em causa – sem ilusões do vedetismo que hoje se persegue e que, quase sempre, termina em frustração dos miúdos, quando não bem mais dos próprios pais. 

Na minha infância as brincadeiras de miúdos eram na rua, saudáveis e alegres, de forma despreocupada e segura. A grande preocupação dos pais era arranjar-nos forma de nos instruirmos e evoluir na educação e ensino. Ao contrário, hoje a preocupação é conseguir tirá-los de casa, afastá-los dos jogos informáticos e do computador para brincarem ao ar livre. O que será mais saudável? 

Nos dois últimos dias perdi dois amigos, quando recordo com nostalgia e emoção esses jogos usando uma simples “bola de trapos” num qualquer caminho da aldeia. De um deles que jogava descalço, levei caneladas “quanto baste”, apesar de eu estar “munido” de botas ou “chancas”. Mas a alegria, entusiasmo e vida desses convívios, com ou sem “caneladas”, marcando ou sofrendo mais golos e apesar da “bola de trapos” nem sempre aguentar inteira até ao fim, ficaram como boas recordações, memórias que um deles fez questão de relembrar e partilhar comigo poucos dias antes de “partir”, porque são “pedaços de felicidade” que dão cor à vida … e que nos unem. 

“Obrigado”. “Gosto de ti”. É tão fácil!

Vivemos a correr e não tomamos consciência sequer do quanto esta vida é transitória, “uma passagem para a outra margem”. Por isso, já nem damos tempo ao tempo, perdemos a paciência porque temos pressa e esquecemos a “arte de esperar”. Queremos tudo para ontem e, qualquer contrariedade, grande ou pequena, “é o fim do mundo”. Ficamos tristes com pequenas coisas e acabamos por perder tempo com o nada. Por nada. E não damos o abraço que desejamos e que o olhar do outro pede. Não nos aproximamos o quanto baste para não expor a nossa fragilidade emocional e nem sequer fazemos aquele carinho que tanto nos apetece, porque não estamos acostumados e nos sentimos retraídos. Nem dizemos vezes suficientes “gosto de ti”, porque achamos sempre que o outro sabe quanto isso é verdade. Mas reclamamos muito do que não temos, do que não é suficiente, do que chegou tarde, do que os outros têm a mais e nós não temos. Também consumimo-nos fazendo cobranças dos amigos, da família, dos que nos são alguma coisa ou coisa nenhuma, enfim, da vida. E, por fim, até de nós. Fazemos comparações, demasiadas comparações com outros, mas só com quem tem mais para nos podermos lamentar, achando injusto. Mas nunca nos comparamos com quem tem menos que nós, porque com esses deixamos de ter argumentos para reclamar.

A Luísa tinha muita vida e alegria de viver, saúde e relações, trabalho e preocupações. E perdeu (quase) tudo de um momento para o outro ao ficar presa a uma cadeira de rodas e a um mundo psíquico que é só seu e ao qual não temos acesso. A sua saúde virou-se por completo e deixou-a dependente da ajuda dos outros, do levantar ao deitar, para se vestir, cuidar, movimentar e tudo o mais. Mas, apesar da ausência e desorientação no espaço e no tempo, manifesta de onde em onde o seu sentido de humor oportuno e incisivo, como aconteceu depois da minha caminhada matinal com a Becas. Ao passar pelo barbeiro aqui perto de casa, vi que ele estava disponível. Por isso, disse à Luísa logo que cheguei cá: “Vou cortar o cabelo”. E ela, numa reação instantânea que lhe é tão característica e atrás dum sorriso irónico, questionou-me: “Que cabelo”? 

Mas o que é extraordinário e mais me impressiona e sensibiliza é que, no seu maior ou menor mutismo a que a falta de saúde a remete e na dificuldade que em certos momentos tem em expressar por palavras o que lhe vai na mente e no coração, há uma coisa de que raramente se esquece: “Agradecer”. Quando a ajudamos a levantar, agradece. Se a formos vestir, volta a agradecer. Se a ajudarmos a cuidar de si, claro que agradece. Se lhe servimos a refeição, lhe chegamos alguma coisa, a levamos de um lado para o outro ou o que quer que se lhe faça, a Luísa não deixa de manifestar a sua gratidão e da sua boca ouvimos muitas vezes ao dia um “muito obrigado”, independentemente de ser da família ou de alguma das pessoas que aqui trabalha. Mas não se fica pelo agradecimento. Não lhe é suficiente. E por isso, manifesta os seus sentimentos por cada um de nós, individualmente e com muita frequência, com um abraço, um beijo e, mais vezes ainda, com “gosto muito de ti”. Apesar dos seus diversos condicionamentos, a Luísa usa o coração para expressar em palavras de gratidão os sentimentos que nutre por nós, sem filtros, sem constrangimentos e sem inibições. E o quanto somos importantes para ela e por fazermos parte da sua vida, pelo abraço, pelo carinho, pela ajuda, pela atenção, pela companhia, pelo apoio, pela companhia. Até chega a expressar, com alegria e boa disposição, o “obrigado por existires, senão tinhas de ser inventado”.

A doença remete-a muitas vezes ao silêncio, parecendo estar ausente e fechada no seu mundo, como na noite em que no canal 1 da RTP decorria um programa do “Prós e Contras” dedicado à questão da redução do IVA que o governo propôs no orçamento de estado para uma parte dos espetáculos culturais assentando a discussão se essa redução devia ser também alargada aos espetáculos de tauromaquia, sob o tema de “Touradas – Cultura ou Tortura”. A Luísa quis assistir ao debate que acompanhou desde o princípio com muita atenção, até porque a discussão estava muito acalorada entre os dois lados em confronto. Quando o programa foi interrompido pela apresentadora e nos mandou para intervalo, impingindo a publicidade do costume, ela deu uma gargalhada e disse com ar de gozo: “Está visto que não vão chegar a conclusão nenhuma porque o maior interessado nesta discussão, nem está lá”. Como estava meio distraído, com um olho na televisão e outro no computador, acabei por fazer aquela pergunta inocente: “Quem”? E ela respondeu, como se já estivesse à espera da pergunta: “O Touro”.

Por norma, somos mal agradecidos pela vida que temos e que foi feita (quase) sempre por nós. Até no seio da família reclamamos do copo fora do sítio, das botas sujas, dos pelos que o cão larga, da luz acesa e de milhentas ninharias, as pequenas chatices que fazemos questão de transformar em problemas. Só quando temos problemas de verdade como as doenças é que esses nadas com que andamos entretidos são esquecidos para focarmos o olhar no que importa. Deixamos pouco por reclamar e muito por agradecer, de tal forma que W. Shakespeare dizia: “Aprendi que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo o que lhe pedimos”. 

Ora, não sei se pela doença, se pela sua índole, a Luísa agradece por todas as pequenas coisas e lembra-nos do quanto gosta de nós. Sempre. Estou longe de estar ao seu nível. Já para não falar no humor subtil. Já perto do Natal, o país foi assolado pela tempestade “Elsa”, com vento e chuva forte que provocou muitas inundações. Enquanto a minha cunhada lamentava a situação dos casos mais dramáticos, a Luísa tinha os olhos postos na televisão onde se sucediam imagens atrás de imagens, com inundações em prédios, ruas que até pareciam rios e rios saídos fora de margens que mais pareciam lagos. Depois de ver aqueles cenários de tragédia em que havia água por todo o lado como se fosse um mal geral, sem mais nem menos a Luísa comentou: “Estou a ver que tenho de comprar umas barbatanas” …

Não gosto de moda, nem de “apertos”…

“Parece impossível. Ainda usas esses calções velhos e rotos? Não tens vergonha”? É isto que ouço de vez em quando cá por casa sempre que me veem com os calções azul marinho, bastante puídos na parte dos “glúteos” (aquilo a que vulgarmente chamamos de “rabo”, “nádegas” ou “cu”), de tal forma que já começaram a romper. 

“Não vês que tem um buraco e parece mal”? Como sou dos que têm dificuldades em me separar de uma peça de roupa que uso regularmente e com que me sinto confortável, respondo: “O buraco é para deixar entrar o ar. É uma “área de serviço” que precisa de ser bem arejada. Também serve para se “esgueirarem” os gases que saem do “tubo de escape”. Já estou na fase da vida em que a capacidade de “produção de metano” está no máximo e não pode ser retida. Tem de sair por algum lado” … aliás, se estão na moda as calças rotas, algumas com tantos rasgões e tão grandes em que pergunto a mim mesmo se “as calças serão feitas de pano com buracos ou de buracos com pouco pano”. Ora, porque é que os meus calções não podem ser tidos como estando na moda, até porque não há grandes diferenças entre calças e calções, a não ser no tamanho das “pernas”? Assim, já não teria de ser chamado à atenção e, pelo contrário, talvez mesmo elogiado por “andar na moda”. É tudo uma questão de conceitos …  

Enfim, o que acontece com estes calções, repete-se ainda naquele par de sapatilhas – para quem não sabe o que são, devo esclarecer que há também quem as trate por “ténis” … – rotas de lado e com um grande buraco na sola que mais parece um olho de elefante; ou com o par de sapatos “vela” a que me habituei porque calçam tão bem, que tenho a sensação de andar descalços. Entre eles, que nunca os sinto quando caminho, e uns novos que me apertam os calos e fazem sofrer o dia todo, está bom de ver qual é a minha opção. A minha e a de muitos outros como eu, que trocam a apresentação pela comodidade. E nas calças de ganga, na camisa e no blusão tão coçado. É verdade, tenho mais roupa no armário, mas repito quase sempre as mesmas peças. “Coisa de homens”, dizem elas com ar crítico. “Mania de mulheres”, pensamos nós, já que não o podemos dizer … Admiro-me com a capacidade de sacrifício de muita gente, especialmente das mulheres, ao “aguentarem forte e feio” as dores nos pés com aqueles sapatos novos e com “ponta em bico”, que apertam de tal forma os dedos dos pés, que chegam a “encavalitar” porque o espaço não é suficiente para todos, num sofrimento continuado, e mesmo assim ficam com eles calçados até ao fim do casamento ou qualquer outra cerimónia, em nome do visual que eles lhe conferem. É obra. Cá por mim, prefiro usar sapatos velhos a ter de me submeter a tal sacrifício. Era o que faltava. Não há nada como andar calçado com a sensação de estar descalço …

Não sou um cliente de modas, muito menos fiel seguidor e escravo delas. No vestir e no calçar a minha prioridade vai para o confortável. E isso quer dizer “largo”, bem “à vontade”, por forma a não me sentir apertado em qualquer parte do corpo, da cabeça aos pés. É que, se há coisa que detesto é sentir-me “apertado”, seja a que título for. Não sei como é possível alguém “enfiar-se” numa daquelas calças tão justas, tão justas, que até se notam as “pregas da pele”. Devem fazer cá uma ginástica em cima da cama, com as pernas ao alto e a puxar bem para conseguir fazer entrar um corpo XL numas calças tamanho S. Tal só é possível pela elasticidade do tecido, que se sujeita a tudo. Se gosto de ver? Claro que sim … mas só nas mulheres. Especialmente naquelas em que as “ondulações do corpo merecem ser realçadas, pois é nelas que a palavra anatomia faz todo o sentido e (às vezes) dá gosto ver …  A moda é um dos instrumentos principais que a indústria usa para nos fazer consumir mais e mais. Por isso tem de mudar todos os anos por forma a “sermos obrigados” a trocar de roupa, calçado e muitas outras coisas com regularidade, mesmo que os artigos que possuímos ainda estejam novos. Para os “manipuladores” das nossas vidas (e do nosso bolso, porque tudo tem a ver com isso), de um dia para o outro tudo deixa de ser novo, apesar dos nossos olhos verem o contrário. Mudam rapidamente de estatuto e viram “desatualizados”. E nessas mudanças impostas pela ditadura da moda, umas veze as roupas alargam e outras apertam. Ora, como não me dou lá muito bem com os “apertos”, aproveito e vou usando as que me agradam (apesar de largas) e fico à espera, até porque, mais dia menos dia voltam a estar na moda … “Diz-se que na moda, só é novo o que já está esquecido” …

Sei que os que me estão próximos preocupam-se com o meu visual. E, como defendem o “estar na moda”, quando uso as calças mais largas nos ditos “glúteos” me vêm logo com uma crítica (intencionalmente boa), de algo como: “Já te viste ao espelho? Olha bem para as calças que trazes e diz-me lá se achas que é roupa que se use? Das duas uma: ou te falta rabo ou sobram calças” …

A indústria da moda mantem uma fórmula que combina consumo desenfreado com exploração de mão de obra. A roupa não fala, mas pode transmitir informações (certas ou erradas) de que quem a veste é alguém atualizado, com dinheiro, e dando a ideia de prestígio e até ascensão social. A moda tornou uma grande parte das pessoas suas escravas, fieis seguidoras, que se sentem infelizes se não puderem usar o que os estilistas ditaram como moda para aquela estação. E a moda não se fica pela roupa, pois estende-se ao calçado, acessórios, penteados, cortes de cabelo, relógios, telemóveis, óculos, automóveis e até casas para além de uma infinidade de produtos e serviços que crescem em número e variedade a cada minuto que passa. Mas o grande perigo da moda é o consumo exagerado e sem necessidade, puro consumismo por vaidade, quando não transformado em doença.

É que vivemos numa época em que o importante nem sempre é ter dinheiro, mas parecer rico …

Cuidado com o cão …

O primeiro cão que tive cá em casa foi um “Serra da Estrela”, grande e bonito, com um “vozeirão” que metia medo. Foi-me oferecido pela minha cunhada que vive junto à serra que lhe deu o nome a quando do nascimento do meu filho mais velho. Veio como cachorro pequeno e cresceu, cresceu, transformando-se num “canzarrão” peludo de que as visitas tinham medo. Ainda pensei colocar à entrada uma daquelas placas a avisar que tinha um cão, mas a verdade é que o bicho parecia mais um carneiro do que o canino guardador da casa de tão meigo e manso que era, apesar de, ao ouvir um ruído estranho lá ao fundo da rua, correr ao portão e ladrar feito trovão, o que poderia ser muito intimidador para quem ouvisse, mas não conhecesse. Pensando bem, desisti de a colocar porque seria enganar quem chegasse. 

No entanto, não posso deixar de me aperceber das placas colocadas por aí abaixo em paredes e portões de entrada de muitas casas, com o típico aviso: “Cuidado com o cão”. Encontro uma grande variedade de placas que tanto podem ser metálicas como compostas de um ou vários azulejos, mais ou menos artísticos, cravados no muro exterior junto à porteira ou portão, com letras vulgares ou rebuscadas e, quase sempre, tendo a pintura duma cabeça de cão, por norma com ar ameaçador. Sou um curioso deste tipo de avisos e até acho piada nalguns casos em tanto conheço os donos como os cães pois “a cara não bate com a careta”. É que os avisos são excessivos, ameaças falsas. Apesar do ar ameaçador da cabeça do cão utilizado para, de forma explícita, intimidar quem quer que se aproxime com boas ou más intenções, a mensagem pode ser real ou não passar de um enorme “bluff”. Por norma, a intenção é alertar para o facto de se ter um animal perigoso em casa, daqueles que, no mínimo, nos podem “agarrar pelos fundilhos das calças”. No entanto há quem se aproveite do cão e o “intitule” de perigoso para intimidar os intrusos quando, afinal, o cão que lá vive é igual à minha cadela Diana que só ladrava de “alegria”. A existir nessas casas algum “animal perigoso”, terá de ser outro e, para que faça sentido, há quem ache que a frase deve ser trocada por: “Cuidado com o dono do cão”. Recentemente, vi num desses avisos um acrescento pintado à mão, que me fez pensar ter sido escrito por alguém que, provavelmente, já teria sido ali “mordido” e que dizia: “Cuidado com a mulher do dono do cão” …

É verdade que, muitas vezes, quando entramos numa casa com o tal aviso pregado no muro da entrada onde o cão tem um ar ameaçador, acabamos por ser confrontados com um animal que mais parece um carneiro manso ou um gato que passa a vida a ronronar. Se ousarmos perguntar ao dono do bicho porque razão tem aquela placa no muro de entrada, ele vai pedir-nos para não dizermos nada a ninguém para não denunciarmos o embuste e ficar a “ameaça” de um cão perigoso, pois, como diz o ditado, “o medo guarda a vinha”. E basta constar que o animal é perigoso …

Mas há mais razões para se colocar o aviso. Ao entrar numa loja, o homem vê um cartaz pendurado na porta onde se lê: “Cuidado com o cão”. Enquanto faz as compras, olha para um lado e para o outro com receio, tentando precaver-se se o animal aparecer perto de si. Foi já quase a sair da loja que, para sua surpresa, encontrou um cão muito pequeno. Ao vê-lo, aproximou-se da senhora que estava na caixa e perguntou-lhe: “Este é o cachorro com que tenho de ter cuidado”? “Exatamente”, respondeu a empregada. “Mas não me parece que seja perigoso”, quis saber o cliente. “Na realidade, não é”, retorquiu a senhora. “Então, porque é que está ali o cartaz à entrada a dizer para termos cuidado com o cão?”, quis ele saber. E soube: “Porque antes, toda a gente o pisava” …

Os avisos entendem-se como preventivos para quem vai entrar numa propriedade onde o animal anda à solta, mas de nada servem para quem passa na rua, a não ser que, mal veja o cartaz à distância, “dê de frosques” que é como quem diz “se ponha a milhas”. E os que não têm cartaz? Há dias ao fazer a minha caminhada matinal atrás da Becas, ao passar junto de um grupo de vivendas, um cão de porte grande que estava na varanda do primeiro andar de uma das casas pregou-nos um susto ao atirar-se por cima da grade de varanda estatelando-se no passeio, para se levantar, atravessar o jardim e com outro salto passar o muro da rua. Num ápice, atacou e dominou a Becas. Estive tentado em dar-lhe um pontapé, mas acabei por o agarrar na parte de cima do pescoço e arrastar de cima dela, até aparecer um rapaz aflito para o levar. Qual deveria ser o cartaz desta casa?

Também já encontrei alguns em que o dono soube pôr uma pitada de humor para aligeirar o teor da mensagem. Pendurado no portão de ferro da entrada de uma quinta podia ler-se, numa letra irregular, o seguinte: “Cão – Cuidado. É proibida a entrada a doentes do coração, bêbados e cagões”. Naquela propriedade só podiam entrar “homens de barba rija”, que não ficassem com as calças molhadas ao primeiro sinal do cão … 

Se tivesse um desses locais onde se “encharca” gente com álcool, teria um letreiro igual a este: “Aqui não entra bêbedo … só sai. – Bar do Quim Latas”. Se tivesse um degrau perigoso, optaria por colocar um aviso igual àquele a que achei mais graça até hoje: “Cuidado com o degrau. O Joaquim quebrou o pé e o Manel t´á Manco”. Mas, como tenho uma cadela que se chama Becas, a colocar algum aviso no muro junto à entrada, seria assim: “Cuidado, com a Becas. Se ela fugir, você assusta. Deitando-se, coce-a. Se correr e ladrar, está feliz. De qualquer maneira, por favor, não a morda” …

Lembrar de quem nos diz muito …

Na pressa dos dias ficamos demasiado focados no (muito ou pouco) que temos para fazer e esquecemo-nos de muitas pessoas que fazem parte da nossa vida, amigos de longa data que deixamos escondidos pelo tempo que lhes não damos. E, longe ou perto, ausentes ou presentes, estando em contacto com regularidade ou muito esporadicamente, são parte de nós. Às vezes questiono-me como é possível deixar passar semanas, meses e até anos sem dizer um “Olá” sequer a familiares, amigos de infância, da escola, do liceu, da faculdade, do serviço militar, da comissão de serviço no ultramar, do trabalho ou mesmo do ginásio, alguns a viver na mesma rua ou localidade, mas que parecem tão “distantes”. Ocupados no corpo e na mente, deixamos que o tempo corra, voe e se nos escape das mãos ao ponto de ficarmos surpreendidos e muito admirados de como foi possível passar tanto tempo sem vermos este ou aquele de quem gostamos. Nesta estúpida corrida em que transformei a minha vida, lembrei-me há dias de um amigo com quem partilhei muito da minha adolescência e boa parte da vida de adulto. E, com quatro dias de atraso, telefonei-lhe para lhe dar os parabéns pelo seu aniversário, para lá dos oitenta anos. Não o vejo há alguns meses e por isso foi bom ouvi-lo. No entanto, apanhei um choque que me deixou triste e preocupado por sentir que ele começou a desistir de lutar para se conservar entre nós. É tramado ouvir alguém dizer que já “não ando cá a fazer nada” e que sente de forma avassaladora e terrível a solidão, apesar de ter mulher e filhos. Mas “não tem companhia”, diz ele. E as suas limitações físicas mais o deixam dependente e condicionado na mobilidade como refém solitário da disponibilidade, da vontade e querer dos que lhe estão por perto. Ou, pelo contrário, bem longe, apesar de ser “curta a distância que os separa. Aproveitei para falarmos desse “ontem” que já tem décadas, das festas e patuscadas, das alegrias e tristezas, dos convívios e ausências, dos sucessos e falhanços. Partilhamos memórias porque estamos naquela idade onde se vive muito de recordações, das histórias de vida. Sem querer, voltamos ao passado que vivemos juntos, olhando as aventuras da nossa juventude e falando das músicas desse tempo. Perguntamos pelos filhos e manifestamos as preocupações sobre eles que carregaremos sempre e de que não conseguimos libertar-nos.

Disse-me que, pior do que sentir-se doente, é estar com o sentimento de que já entrou num plano inclinado de onde não lhe parece ter escapatória, até porque nem forças tem para sair. Está a desistir de tudo, a começar de si mesmo, ele que adorava viver a vida, aproveitar cada momento como se fosse o último. Parece que já nada o motiva, que já não tem uma única razão para se levantar pela manhã. E nem o tempo triste e sombrio tem ajudado …

Não sei se é por estarmos no inverno, a estação do ano mais “inimiga” das pessoas de idade pela “ceifa” que faz em consequência do frio, das doenças da época ou da tristeza dos dias sem luz e sem companhia, mas é verdade que me falaram vários amigos “velhos” a quem a vida levou por outros “trilhos” e que se vão cruzando com o meu de vez em quando. E o filho de um desses “velhos amigos” fez-me chegar através de terceira pessoa uma daquelas mensagens que mexem connosco e não nos deixam indiferentes: o pai estava de cama muito doente e não parava de falar em mim, contando-lhe histórias com mais de seis décadas e manifestando o enorme desejo de me voltar a ver antes que o tempo lhe seja roubado e já não haja tempo para nos encontrarmos. Saber uma coisa destas provocou um misto de emoções e comoveu-me, especialmente porque se trata de alguém que é um pedaço da minha história e foi meu “professor” nessas pequenas coisas que a escola não ensina. 

Não demorei a ir visitá-lo no seu leito de doença e foi particularmente emotivo o reencontro, onde não faltou algum brilho de olhos húmidos. Naquela tarde deixei-me ali ficar sentado numa cadeira junto à cabeceira da cama onde passa os dias desde que veio do hospital, perdido no passado, ouvindo-o muito mais do que falando, porque ele estava muito entusiasmado e até orgulhoso de me ter ali. O momento era dele e não lho podia roubar. Precisava de desabafar e recordar as nossas vivências de crianças e adolescentes, aqueles tempos de pobreza e miséria porque foram muito duros. E, na verdade, tem nesse passado a difícil experiência de sobreviver. Porque, muito mais que viver, sobrevivia-se. Como eu e meu irmão tivemos a felicidade de termos um pouco mais, partilhávamos com ele e outros esse pouco que, nas palavras dele, era muito.

Falou muito, como se fosse uma necessidade. Recordou alguns dos seus trabalhos de “latoeiro”, a sua profissão de então e para a qual tinha jeito natural acima da média, que lhe permitia moldar a chapa como queria. E dos preços incríveis para os diversos tipos de vasilhas que fabricava na sua pequena oficina, dos regadores aos baldes, dos almudes aos cântaros e muitas outras. Mas, sobretudo, evocou esses tempos de miséria onde conseguir alguma coisa para comer era uma conquista, fosse o que fosse. E, para ajudar a suprir essa carência alimentar básica, na época da fruta recorria-se às cerejeiras, macieiras, castanheiros, pereiras e outras que bordejavam os campos feitas “tutores” das “videiras de enforcado” a par dos lodos e plátanos. Com ele aprendi que as melhores cerejas eram nas Cepas, as maçãs “Verdeal” só existiam na Quinta da Aldeia, os diospiros no Souto e os figos em casa da minha avó. Pensando bem, enquanto as aves comiam a fruta da extremidade dos ramos, nós éramos “as outras” que aproveitavam só aquelas onde podíamos chegar. Falou das incursões ao vinho doce da Quinta de Talhos “sugado” diretamente do lagar através de uma cana da Índia comprida que ele se deu ao trabalho de furar para usar como tubo de sucção. E recordou o grupo acantonado na mata por detrás da adega, “chupando” à vez através da gateira por cima do lagar … Lembrou ainda, sem compreender, como o meu irmão António tirou uma fotografia ao nosso grupo, usando para o efeito uma simples lata de óleo de litro com um furo no fundo, que abria e fechava imprimindo a película colocada previamente dentro da lata. Falou muito do passado, animado pela presença de alguém que vivera com ele muitos desses momentos, tendo de parar quando as dores eram mais fortes, até manifestar sinais de cansaço. 

Saí de lá com a convicção de que a visita ao meu amigo foi muitíssimo importante para ele por várias razões, mas especialmente por “validar” os relatos que costumava fazer aos seus sobre os tempos difíceis que passou, diria mesmo que a raiar a sobrevivência, e em que não é fácil acreditar, sobretudo por quem teve sempre comida na mesa à discrição, usufruiu dos comodismos e consumismos deste tempo e nunca passou fome nem privações …