“Discriminados”. Ouça, fique em casa

Há dois mil anos existia uma doença terrível que, nessa altura, não tinha cura: A lepra. Quando alguém tinha sintomas da doença, dirigia-se ao Templo e era o sacerdote a confirmar se era “leproso” ou não. Em caso afirmativo, era privado do convívio com as outras pessoas, tinha de viver num lugar isolado e informar os outros que sofria de lepra. Os leprosos deviam morar fora dos muros das cidades. Como a doença era incurável e contagiosa, os lideres religiosos judaicos criaram regras que dificultavam muito a vida dos doentes. Uma delas impunha a distância mínima entre um leproso e uma pessoa sadia em 2 metros, mas que, com vento, passava para 45 metros. Os leprosos acabavam por ter de viver em cavernas isolados da sociedade e, se quisessem contactar alguém, teriam de tocar o sino para se fazer anunciar, manter a distância de segurança e dar conta que ia passar um imundo, um contaminado pela lepra, arriscando ser corridos à pedrada pelo líder religioso. As regras a que os leprosos estavam sujeitos eram minuciosas. Não podiam entrar em casas, hospedarias e igrejas, nem tocar em objetos usados por todos, como corrimões de escadas, sem usar luvas. Tinham de usar uma veste especial e levar sinetas a anunciar a sua presença. Em suma, eram discriminados pela sociedade. A sua situação era humilhante e durante grande parte da História foram vítimas desse “estigma social”. 

Ora, não estando infetado por uma das bactérias que provoca a lepra – tanto quanto sei – nem tendo sido declarado pelo “sacerdote do Templo” como “leproso”, apesar de também não estar infetado com o covid-19, senti-me a modos que um “novo leproso” nos últimos dias só pelo facto de viver em Lousada. E, como eu, todos os que moram cá e em Felgueiras, estejam ou não infetados com o coronavírus. Será que vamos ter de avisar que chegamos ou até que vamos passar, para terem tempo de se afastarem e manter uma distância de segurança? Percebo que o medo do desconhecido cria o pânico e este conduz a comportamentos absurdos, até porque nenhuma autoridade impôs e nem sequer aconselhou a quarentena. Faz algum sentido que, numa paróquia de concelho vizinho, no limite com o nosso, se diga a uma criança “não vais fazer o Pai Nosso porque frequentas uma escola que está no concelho de Lousada”? Faz algum sentido que uma jovem que estuda num colégio privado de um outro concelho, quando lá chegou em transporte do colégio, tenha sido informada para recolher as suas coisas de imediato e regressar a casa como se fosse “leprosa”, sem lhe assegurarem transporte, sem dinheiro e sem respeito, entregue a si mesma, só porque … Estiveram bem os presidentes das câmaras de Lousada e Felgueiras ao denunciar as “pressões sofridas por alunos nas Universidades para não frequentarem as salas de aulas e demais espaços delas, alegadamente devido ao vírus, medidas consideradas discriminatórias, ilegais e lesivas das pessoas.

Claro que a forma como a informação passou e a imprensa explorou, ajudou a que esta “onda discriminatória” ganhasse velocidade, qual tsunami. Senti isso nalguns telefonemas que recebi de mais ou menos longe a perguntarem-me se estava bem e não tinha nenhum sintoma, como se por morar aqui fosse sinónimo de “infeção automática”; em encontros desmarcados à última hora porque “não me parece ser o momento oportuno”, “adoeceu-me o adjunto e já não posso sair” ou outra desculpa mais ou menos esfarrapada.

Entretanto, o vírus está a espalhar-se a um ritmo crescente a partir de várias origens, aumentando o número de infetados e já com um morto na estatística, o que tem levado as autoridades a tomar mais medidas, novas medidas, sendo que a atividade do país é reduzida. Instituições, empresas, estabelecimentos comerciais, desportivos, recreativos e muitos outros encerram ou quase. E o conselho geral das autoridades é um só: “Fique em casa”. Porque é preciso conter a disseminação do vírus. É que, ao estar com alguém, não sabemos se estamos ou não a correr riscos. Começamos a ter noção dos contactos cruzados, que A esteve com B e este com C que se soube agora estar infetado. A cabeleireira encerrou o salão ao saber que uma cliente esteve em contacto com familiares de outra a quem foi diagnosticada a infeção. E uma esteticista telefonou a todas as clientes cancelando as marcações, ao tomar conhecimento que a mãe fora confirmada como mais um caso. E quem se encontrou com alguém nesta situação pergunta-se: “Será que também já estou”? 

Por isso, custe o que custar, faça tudo o que puder para ficar em casa, ainda que isso não seja fácil. E como o humor continua a ser uma das formas de combater o medo, transcrevo a mensagem enviada por um amigo metido em casa, de autor desconhecido:

“Primeiro dia de isolamento- Isto do covid até tem as suas vantagens: não vou para o escritório aturar o pascácio do chefe e posso dormir até mais tarde. Vou aproveitar para ler aqueles livros que comprei na feira do livro em 1988 quando namorava com a minha mulher e a levei lá. E ver se desligo um bocado da net e do facebook e fortaleço laços com a patroa e os miúdos.

Segundo dia de isolamento- O meu apartamento até é bem fixe e acolhedor. Tenho uma família 5 estrelas: a minha mulher é meiga e os putos são porreiros. A vizinhança é do melhor.

Terceiro dia de isolamento- Os miúdos acordam muito cedo. A minha mulher ressona. Gostei muito do pequeno almoço feito por ela, mas não percebi muito bem o que ela quis dizer que isto não é nenhum hotel. Os vizinhos são um pouco estranhos.

Quarto dia de isolamento- Os sacanas dos putos já levaram duas galhetas cada um. São dois terroristas. A gaja também já começou a desconversar. Fui lá abaixo pôr o lixo, alguém desinfetou o elevador com lixívia. Carreguei nos botões com os cotos.

Quinto dia de isolamento- Matem-me. Prefiro apanhar o vírus do que estar neste inferno. Acabou o álcool, o suicídio parece-me a melhor solução. A bruxa não me larga. Desconfio que os miúdos não sejam meus. Os vizinhos de cima não me dispensaram um rolo de papel higiénico. Forretas.

Décimo dia de isolamento- A privação de álcool e tabaco provoca-me alucinações. A minha mulher e eu estamos muito melhor desde que ela se barricou no quarto. Dei os putos para a adoção. Os vizinhos são uns filhos” …

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