Vivemos a correr e não tomamos consciência sequer do quanto esta vida é transitória, “uma passagem para a outra margem”. Por isso, já nem damos tempo ao tempo, perdemos a paciência porque temos pressa e esquecemos a “arte de esperar”. Queremos tudo para ontem e, qualquer contrariedade, grande ou pequena, “é o fim do mundo”. Ficamos tristes com pequenas coisas e acabamos por perder tempo com o nada. Por nada. E não damos o abraço que desejamos e que o olhar do outro pede. Não nos aproximamos o quanto baste para não expor a nossa fragilidade emocional e nem sequer fazemos aquele carinho que tanto nos apetece, porque não estamos acostumados e nos sentimos retraídos. Nem dizemos vezes suficientes “gosto de ti”, porque achamos sempre que o outro sabe quanto isso é verdade. Mas reclamamos muito do que não temos, do que não é suficiente, do que chegou tarde, do que os outros têm a mais e nós não temos. Também consumimo-nos fazendo cobranças dos amigos, da família, dos que nos são alguma coisa ou coisa nenhuma, enfim, da vida. E, por fim, até de nós. Fazemos comparações, demasiadas comparações com outros, mas só com quem tem mais para nos podermos lamentar, achando injusto. Mas nunca nos comparamos com quem tem menos que nós, porque com esses deixamos de ter argumentos para reclamar.
A Luísa tinha muita vida e alegria de viver, saúde e relações, trabalho e preocupações. E perdeu (quase) tudo de um momento para o outro ao ficar presa a uma cadeira de rodas e a um mundo psíquico que é só seu e ao qual não temos acesso. A sua saúde virou-se por completo e deixou-a dependente da ajuda dos outros, do levantar ao deitar, para se vestir, cuidar, movimentar e tudo o mais. Mas, apesar da ausência e desorientação no espaço e no tempo, manifesta de onde em onde o seu sentido de humor oportuno e incisivo, como aconteceu depois da minha caminhada matinal com a Becas. Ao passar pelo barbeiro aqui perto de casa, vi que ele estava disponível. Por isso, disse à Luísa logo que cheguei cá: “Vou cortar o cabelo”. E ela, numa reação instantânea que lhe é tão característica e atrás dum sorriso irónico, questionou-me: “Que cabelo”?
Mas o que é extraordinário e mais me impressiona e sensibiliza é que, no seu maior ou menor mutismo a que a falta de saúde a remete e na dificuldade que em certos momentos tem em expressar por palavras o que lhe vai na mente e no coração, há uma coisa de que raramente se esquece: “Agradecer”. Quando a ajudamos a levantar, agradece. Se a formos vestir, volta a agradecer. Se a ajudarmos a cuidar de si, claro que agradece. Se lhe servimos a refeição, lhe chegamos alguma coisa, a levamos de um lado para o outro ou o que quer que se lhe faça, a Luísa não deixa de manifestar a sua gratidão e da sua boca ouvimos muitas vezes ao dia um “muito obrigado”, independentemente de ser da família ou de alguma das pessoas que aqui trabalha. Mas não se fica pelo agradecimento. Não lhe é suficiente. E por isso, manifesta os seus sentimentos por cada um de nós, individualmente e com muita frequência, com um abraço, um beijo e, mais vezes ainda, com “gosto muito de ti”. Apesar dos seus diversos condicionamentos, a Luísa usa o coração para expressar em palavras de gratidão os sentimentos que nutre por nós, sem filtros, sem constrangimentos e sem inibições. E o quanto somos importantes para ela e por fazermos parte da sua vida, pelo abraço, pelo carinho, pela ajuda, pela atenção, pela companhia, pelo apoio, pela companhia. Até chega a expressar, com alegria e boa disposição, o “obrigado por existires, senão tinhas de ser inventado”.
A doença remete-a muitas vezes ao silêncio, parecendo estar ausente e fechada no seu mundo, como na noite em que no canal 1 da RTP decorria um programa do “Prós e Contras” dedicado à questão da redução do IVA que o governo propôs no orçamento de estado para uma parte dos espetáculos culturais assentando a discussão se essa redução devia ser também alargada aos espetáculos de tauromaquia, sob o tema de “Touradas – Cultura ou Tortura”. A Luísa quis assistir ao debate que acompanhou desde o princípio com muita atenção, até porque a discussão estava muito acalorada entre os dois lados em confronto. Quando o programa foi interrompido pela apresentadora e nos mandou para intervalo, impingindo a publicidade do costume, ela deu uma gargalhada e disse com ar de gozo: “Está visto que não vão chegar a conclusão nenhuma porque o maior interessado nesta discussão, nem está lá”. Como estava meio distraído, com um olho na televisão e outro no computador, acabei por fazer aquela pergunta inocente: “Quem”? E ela respondeu, como se já estivesse à espera da pergunta: “O Touro”.
Por norma, somos mal agradecidos pela vida que temos e que foi feita (quase) sempre por nós. Até no seio da família reclamamos do copo fora do sítio, das botas sujas, dos pelos que o cão larga, da luz acesa e de milhentas ninharias, as pequenas chatices que fazemos questão de transformar em problemas. Só quando temos problemas de verdade como as doenças é que esses nadas com que andamos entretidos são esquecidos para focarmos o olhar no que importa. Deixamos pouco por reclamar e muito por agradecer, de tal forma que W. Shakespeare dizia: “Aprendi que deveríamos ser gratos a Deus por não nos dar tudo o que lhe pedimos”.
Ora, não sei se pela doença, se pela sua índole, a Luísa agradece por todas as pequenas coisas e lembra-nos do quanto gosta de nós. Sempre. Estou longe de estar ao seu nível. Já para não falar no humor subtil. Já perto do Natal, o país foi assolado pela tempestade “Elsa”, com vento e chuva forte que provocou muitas inundações. Enquanto a minha cunhada lamentava a situação dos casos mais dramáticos, a Luísa tinha os olhos postos na televisão onde se sucediam imagens atrás de imagens, com inundações em prédios, ruas que até pareciam rios e rios saídos fora de margens que mais pareciam lagos. Depois de ver aqueles cenários de tragédia em que havia água por todo o lado como se fosse um mal geral, sem mais nem menos a Luísa comentou: “Estou a ver que tenho de comprar umas barbatanas” …