O valor duma simples bola de trapos

Precisei de falar com um amigo e, sabendo que estava a assistir ao treino de futebol do seu filho ainda muito novo, fui lá procurá-lo. Achei interessante ver parte do treino e, em especial, o entusiasmo com que alguns pais vivem tão intensamente a evolução do seu rebento e o sonho lindo de uma carreira a dar chutos na bola. Mas, quando vi aqueles sacos cheios de bolas não pude deixar de sentir uma ponta de inveja porque, quando eu era criança, não havia sacos de bolas de futebol, não havia sequer bola de futebol. O que nós tínhamos para jogar era … uma bola de trapos E para isso, algum de nós tinha de conseguir arranjar lá por casa uma meia velha. As melhores meias para fazer a bola de trapos eram as “de vidro”, porque conseguia-se que a bola fosse maior. Mas, na sua falta, qualquer uma servia, sendo cheia com trapos velhos ou mesmo folhas de jornal amarrotadas, que se comprimiam o mais possível enquanto se lhe dava uma forma arredondada. 

Jogávamos a bola nos caminhos de terra (eram todos) com mais ou menos buracos, sendo as balizas delimitadas por duas pedras. Não havia treinador nem lugar a táticas e as fintas eram difíceis, até porque jogar com uma bola de trapos dava para o que dava. Como era “tudo ao molho e fé em Deus”, valia mais o pontapé para a frente e direto à baliza, se possível, defendida pelo miúdo descalço e de calças rotas, na tentativa de marcar golo. E lembro-me que se jogava com entusiasmo e alegria natural. O resultado era menos preocupante do que o raspanete da mãe quando chegasse a casa por ir todo sujo, quando não com mais um rasgão nas calças. Não havia bolas de “couro” p’rá malta. Eram inacessíveis.

Só para se ter uma ideia, assisti a jogos do Lousada no velho campo junto à feira, em que só havia uma bola de cada equipa. Se durante o jogo um chuto mais forte e torto a atirasse para o campo de milho para lá da vedação, havia sempre alguém do lado de fora para ir atrás dela. Houve ocasiões em que o jogo teve de ficar parado, à espera que a bola fosse devolvida ao terreno de jogo … por não haver outra.

Nós, miúdos, quando recebíamos alguns tostões como nos funerais por integrar a “cruzada”, íamos logo investi-los a comprar rebuçados de fraca qualidade, mas que traziam a embrulhá-los fotografias de jogadores de futebol, ídolos do nosso tempo, parte da coleção de cromos que se colava numa caderneta, com a vã esperança de a poder completar e ganhar aquela linda bola de futebol, tida como feita em cabedal, mas que muitas vezes mais parecia do tipo cartão prensado. Havia sempre um cromo único de um jogador que o fabricante desse negócio colocava bem no fundo da caixa para se venderem os rebuçados até ao fim, pois caso contrário, mal alguém completasse a caderneta e levasse a bola, acabava-se o negócio. O miúdo que a ganhasse era o felizardo, muito invejado por todos os outros que queriam muito poder dizer que “jogaram com uma bola de couro”. Ficavam pendentes dele para começar ou acabar um jogo. É que ele era o “dono da bola”. Bastava que a sua equipa estivesse a perder ou não o deixassem marcar o penalti, agarrava na bola meio amuado, dava o jogo por terminado e caminhava para casa …

Já adolescente, joguei pela equipa lá da terra, o Macieira, contra outras freguesias dos arredores. Os jogos e treinos eram realizados no terreno do adro de S. Gonçalo e a bola, já em couro, cosida à mão e com câmara de ar, de vez em quando furava ou rompia-se pelos pontos da cosedura. Um dia um dos remates foi forte e direitinho … a uma lança da grade que havia na capela e a bola “morreu” de repente. Quando isso acontecia, acabava o jogo por não haver bola substituta …

Ao ver que hoje bolas de cabedal não são problema, nem em qualidade nem em quantidade e ao olhar para essa infância distante, fico dividido: Se ter inveja pelo muito que hoje há comparado com o nada de “ontem” ou ficar feliz pelo entusiasmo, alegria, gosto e entrega ao jogo pelo jogo desse “ontem” – porque era só um jogo de bola que estava em causa – sem ilusões do vedetismo que hoje se persegue e que, quase sempre, termina em frustração dos miúdos, quando não bem mais dos próprios pais. 

Na minha infância as brincadeiras de miúdos eram na rua, saudáveis e alegres, de forma despreocupada e segura. A grande preocupação dos pais era arranjar-nos forma de nos instruirmos e evoluir na educação e ensino. Ao contrário, hoje a preocupação é conseguir tirá-los de casa, afastá-los dos jogos informáticos e do computador para brincarem ao ar livre. O que será mais saudável? 

Nos dois últimos dias perdi dois amigos, quando recordo com nostalgia e emoção esses jogos usando uma simples “bola de trapos” num qualquer caminho da aldeia. De um deles que jogava descalço, levei caneladas “quanto baste”, apesar de eu estar “munido” de botas ou “chancas”. Mas a alegria, entusiasmo e vida desses convívios, com ou sem “caneladas”, marcando ou sofrendo mais golos e apesar da “bola de trapos” nem sempre aguentar inteira até ao fim, ficaram como boas recordações, memórias que um deles fez questão de relembrar e partilhar comigo poucos dias antes de “partir”, porque são “pedaços de felicidade” que dão cor à vida … e que nos unem. 

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