Mal acabei de nascer, os meus pais foram obrigados a juntar papel à minha existência: a “cédula pessoal”. Nela inscreveram o meu nome, o deles e registaram o dia em que vim a este mundo. Ainda a guardo “para memória futura”, embora “esteja fora de moda”. Já não se usa. Não me acompanhará até ao fim dos meus dias porque, entretanto, deu lugar ao “bilhete de identidade”, que também já passou à história e faz parte daqueles papeis inúteis que guardo zelosamente numa gaveta e que um dia alguém mandará para o lixo. Ora, recentemente, também este abdicou a favor do “cartão de cidadão”. Sim esse mesmo que, inicialmente, esteve para se chamar “cartão único”, cujo símbolo abreviado seria (CU). No entanto, o nome viria a ser alterado para cartão de cidadão (CC) pelo desconforto que seria ir ao banco ou a uma repartição pública qualquer e ouvir dizer: “mostre-me o seu CU”. Presumo que ficaríamos muito indecisos sobre qual deles mostrar… E o papel continuou a seguir-me no registo e assento de batismo, onde o meu nome ficou gravado, para o caso de vir a esquecer. A partir daí, nunca mais deixei de ter o papel nas suas múltiplas formas ligado à minha vida, numa parceria comprometida e muito empenhada. Basta ver os quilos e quilos que tenho espalhados pelos quatro cantos da casa, como “acumulador de lixo” que sou. Não posso deixar de dizer que uma boa parte do que tenho já devia ter ido para o “Papelão”, pois nem sequer dá para usar na casa de banho. Seria tão útil noutro tempo …
Na escola primária (no papel agora diz-se “básica”), aumentei o meu relacionamento com o papel, por ter de andar com cadernos de uma e duas linhas, sebentas e livros às costas, dentro de uma saca de pano feita pela minha mãe, numa grande proximidade. Fora da escola, não lhes dava “confiança” nem o uso necessário. E nem sequer lhes fazia companhia. Tinha até uma certa alergia ao “papel” … Aproveitava o papel do jornal “O Comércio do Porto” que o meu pai comprava ao domingo, cortado aos bocados, para “serviço de limpeza” …
À medida que fui avançando nos estudos, maior era a carga de papel que eu carregava às costas, porque maiores eram os livros, cadernos e apontamentos, para além de mais numerosos. E vieram os testes, as cartas, as revistas e os livros. E até o papel higiénico (em substituição dos jornais), num aumento crescente desse “casamento” invisível do papel comigo, nas suas variadíssimas formas. Tornei-me dependente deste material, tal como a maioria das pessoas, que se foi infiltrando na minha vida de forma continuada e cada dia mais intensa, como na vida de todos nós. Mais ainda, tem sido em papeis mais ou menos elaborados, que tenho recebido certificações, diplomas, atestados, cartões de identificação e outras inutilidades semelhantes que nós teimamos em multiplicar como se fossem importantes.
Ao entrar na vida profissional passei a fazer parte da legião de consumidores de papel em tantas e tantas finalidades, que seria impossível descrevê-las na totalidade. Das simples instruções aos relatórios, dos folhetos publicitários aos cadernos de encomenda, dos bilhetes e manuais aos inquéritos, quantas vezes de forma quase obsessiva, indiferentes ao que é necessário “destruir” para se poder produzir o papel. Durante muitos anos foi através do papel, em carta ou postal, que as pessoas comunicavam entre si para tratar de negócios e em cartas amorosas, longas e ternas. E vejo uma pequena fração desse uso e abuso nos montes de livros que se arrumam cá por casa, a par das numerosas pastas, revistas, registos médicos, bancários, fiscais e contabilísticos, para além das caixas e gavetas de todo o tipo de recibos da água à eletricidade, do calçado à roupa, do supermercado ao combustível e tantos outros.
Mas a tecnologia, mais do que as lutas em defesa do meio ambiente e dos recursos naturais, deu o pontapé de saída com vista à redução do consumo de papel através daquilo que se chama a “desmaterialização dos processos administrativos”, fazendo substituir o registo em papel por registos informáticos a partir de moderníssimos computadores com capacidade de armazenagem incrível, que permitem “guardar” grande quantidade de dados em pouco espaço que, se fosse em papel, exigiria grandes áreas de arquivos, muito mais caras e de consulta muitíssimo mais difícil. Essa tecnologia vem eliminando de variadas formas a utilização de papel, desde as agendas agora substituídas pelos telemóveis, os livros impressos trocados pelo formato digital, os projetos de construção tanto na sua apresentação às entidades licenciadoras, concursos e tudo o mais. Até as enciclopédias, de que tenho cá em casa uma de vinte e tal volumes que me ocupa a fiada do meio de uma grande estante e está “novinha em folha”, já deixaram de ser vendidas porta a porta por vendedores aguerridos porque o acesso à internet permite fazer todo o tipo de consultas sem que tenha de se investir “uma pipa de massa” e ter uma estante ocupada, se bem que continua a ser “um bom elemento decorativo” na sala (é para isso que muitas servem). Com a chegada dos “livros digitais”, que dizem ser o futuro, qual será o futuro dos livros de papel? Será que é mais um alívio para o consumo de papel, como o é nos jornais “on line”?
Ainda não acompanho os meus filhos na dispensa do papel em coisas triviais. Quando precisam de registar a marca de um produto ou tipo de embalagem, “sacam” do telemóvel, tiram uma fotografia e enviam-na de imediato por mail para a loja com a encomenda respetiva, sem perda de tempo nem consumo de um bocadinho de papel sequer. Já eu, que estou formatado noutro registo, tenho de agarrar na agenda ou num bocado de papel e tomar nota do produto, referência, quando não de dados sobre a cor da embalagem. Na realidade eles são mais práticos, mais eficientes e muito mais ecológicos nisto de poupar o recurso natural de que se faz o papel.
“O papel passou à história”? Não, nada disso. O papel é importante nas nossas vidas e continuará a ser, embora seja preciso reduzir o seu consumo. Apesar da tecnologia dar uma excelente ajuda, ainda há um longo caminho a percorrer …