Lembrar de quem nos diz muito …

Na pressa dos dias ficamos demasiado focados no (muito ou pouco) que temos para fazer e esquecemo-nos de muitas pessoas que fazem parte da nossa vida, amigos de longa data que deixamos escondidos pelo tempo que lhes não damos. E, longe ou perto, ausentes ou presentes, estando em contacto com regularidade ou muito esporadicamente, são parte de nós. Às vezes questiono-me como é possível deixar passar semanas, meses e até anos sem dizer um “Olá” sequer a familiares, amigos de infância, da escola, do liceu, da faculdade, do serviço militar, da comissão de serviço no ultramar, do trabalho ou mesmo do ginásio, alguns a viver na mesma rua ou localidade, mas que parecem tão “distantes”. Ocupados no corpo e na mente, deixamos que o tempo corra, voe e se nos escape das mãos ao ponto de ficarmos surpreendidos e muito admirados de como foi possível passar tanto tempo sem vermos este ou aquele de quem gostamos. Nesta estúpida corrida em que transformei a minha vida, lembrei-me há dias de um amigo com quem partilhei muito da minha adolescência e boa parte da vida de adulto. E, com quatro dias de atraso, telefonei-lhe para lhe dar os parabéns pelo seu aniversário, para lá dos oitenta anos. Não o vejo há alguns meses e por isso foi bom ouvi-lo. No entanto, apanhei um choque que me deixou triste e preocupado por sentir que ele começou a desistir de lutar para se conservar entre nós. É tramado ouvir alguém dizer que já “não ando cá a fazer nada” e que sente de forma avassaladora e terrível a solidão, apesar de ter mulher e filhos. Mas “não tem companhia”, diz ele. E as suas limitações físicas mais o deixam dependente e condicionado na mobilidade como refém solitário da disponibilidade, da vontade e querer dos que lhe estão por perto. Ou, pelo contrário, bem longe, apesar de ser “curta a distância que os separa. Aproveitei para falarmos desse “ontem” que já tem décadas, das festas e patuscadas, das alegrias e tristezas, dos convívios e ausências, dos sucessos e falhanços. Partilhamos memórias porque estamos naquela idade onde se vive muito de recordações, das histórias de vida. Sem querer, voltamos ao passado que vivemos juntos, olhando as aventuras da nossa juventude e falando das músicas desse tempo. Perguntamos pelos filhos e manifestamos as preocupações sobre eles que carregaremos sempre e de que não conseguimos libertar-nos.

Disse-me que, pior do que sentir-se doente, é estar com o sentimento de que já entrou num plano inclinado de onde não lhe parece ter escapatória, até porque nem forças tem para sair. Está a desistir de tudo, a começar de si mesmo, ele que adorava viver a vida, aproveitar cada momento como se fosse o último. Parece que já nada o motiva, que já não tem uma única razão para se levantar pela manhã. E nem o tempo triste e sombrio tem ajudado …

Não sei se é por estarmos no inverno, a estação do ano mais “inimiga” das pessoas de idade pela “ceifa” que faz em consequência do frio, das doenças da época ou da tristeza dos dias sem luz e sem companhia, mas é verdade que me falaram vários amigos “velhos” a quem a vida levou por outros “trilhos” e que se vão cruzando com o meu de vez em quando. E o filho de um desses “velhos amigos” fez-me chegar através de terceira pessoa uma daquelas mensagens que mexem connosco e não nos deixam indiferentes: o pai estava de cama muito doente e não parava de falar em mim, contando-lhe histórias com mais de seis décadas e manifestando o enorme desejo de me voltar a ver antes que o tempo lhe seja roubado e já não haja tempo para nos encontrarmos. Saber uma coisa destas provocou um misto de emoções e comoveu-me, especialmente porque se trata de alguém que é um pedaço da minha história e foi meu “professor” nessas pequenas coisas que a escola não ensina. 

Não demorei a ir visitá-lo no seu leito de doença e foi particularmente emotivo o reencontro, onde não faltou algum brilho de olhos húmidos. Naquela tarde deixei-me ali ficar sentado numa cadeira junto à cabeceira da cama onde passa os dias desde que veio do hospital, perdido no passado, ouvindo-o muito mais do que falando, porque ele estava muito entusiasmado e até orgulhoso de me ter ali. O momento era dele e não lho podia roubar. Precisava de desabafar e recordar as nossas vivências de crianças e adolescentes, aqueles tempos de pobreza e miséria porque foram muito duros. E, na verdade, tem nesse passado a difícil experiência de sobreviver. Porque, muito mais que viver, sobrevivia-se. Como eu e meu irmão tivemos a felicidade de termos um pouco mais, partilhávamos com ele e outros esse pouco que, nas palavras dele, era muito.

Falou muito, como se fosse uma necessidade. Recordou alguns dos seus trabalhos de “latoeiro”, a sua profissão de então e para a qual tinha jeito natural acima da média, que lhe permitia moldar a chapa como queria. E dos preços incríveis para os diversos tipos de vasilhas que fabricava na sua pequena oficina, dos regadores aos baldes, dos almudes aos cântaros e muitas outras. Mas, sobretudo, evocou esses tempos de miséria onde conseguir alguma coisa para comer era uma conquista, fosse o que fosse. E, para ajudar a suprir essa carência alimentar básica, na época da fruta recorria-se às cerejeiras, macieiras, castanheiros, pereiras e outras que bordejavam os campos feitas “tutores” das “videiras de enforcado” a par dos lodos e plátanos. Com ele aprendi que as melhores cerejas eram nas Cepas, as maçãs “Verdeal” só existiam na Quinta da Aldeia, os diospiros no Souto e os figos em casa da minha avó. Pensando bem, enquanto as aves comiam a fruta da extremidade dos ramos, nós éramos “as outras” que aproveitavam só aquelas onde podíamos chegar. Falou das incursões ao vinho doce da Quinta de Talhos “sugado” diretamente do lagar através de uma cana da Índia comprida que ele se deu ao trabalho de furar para usar como tubo de sucção. E recordou o grupo acantonado na mata por detrás da adega, “chupando” à vez através da gateira por cima do lagar … Lembrou ainda, sem compreender, como o meu irmão António tirou uma fotografia ao nosso grupo, usando para o efeito uma simples lata de óleo de litro com um furo no fundo, que abria e fechava imprimindo a película colocada previamente dentro da lata. Falou muito do passado, animado pela presença de alguém que vivera com ele muitos desses momentos, tendo de parar quando as dores eram mais fortes, até manifestar sinais de cansaço. 

Saí de lá com a convicção de que a visita ao meu amigo foi muitíssimo importante para ele por várias razões, mas especialmente por “validar” os relatos que costumava fazer aos seus sobre os tempos difíceis que passou, diria mesmo que a raiar a sobrevivência, e em que não é fácil acreditar, sobretudo por quem teve sempre comida na mesa à discrição, usufruiu dos comodismos e consumismos deste tempo e nunca passou fome nem privações …    

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