“Não tenho nada para calçar” …

Ao passar em frente à loja não pude deixar de ler o cartaz colocado na montra: “Todo o calçado a 1 Euro o par”. Durante a tarde o cartaz não me saiu da cabeça, não propriamente pelo preço insignificante que o mesmo pedia a quem quisesse levar um par de sapatos ou botas, mas porque o meu pensamento recuou no tempo e fez-me voltar à minha infância e à escola primária de Macieira. É que a quase totalidade dos meus colegas ia para a escola com os pés descalços, porque a família não tinha condições económicas para lhes comprar calçado e nesses tempos de miséria e privações, não havia saldos, promoções e outras formas de “despachar” artigos a qualquer preço, porque não existia indústria. Tudo era manual, nomeadamente o fabrico de calçado. Na minha aldeia era o senhor Pereira da Coutada (o lugar onde morava) quem fazia os sapatos e botas manualmente. Sempre o conheci como sapateiro e, apesar de ter um feitio especial, passei bastante tempo sentado junto dele a vê-lo cortar e coser o cabedal ajustado à fôrma até fazer surgir algo que se ajustasse ao pé. Gostava do cheiro a cera com que ele me deixava encerar o fio “norte” que usava para cozer o calçado, usando para o efeito a “sovela” e uma “cerda” de porco na ponta do fio. Numa ocasião, o meu pai aproveitou um pneu que tinha rebentado e levou-lho para dele tirar as solas com que depois fez um belíssimo par de botas para mim e outro ao meu irmão António.

À escala temporal, calçado a 1 Euro não era possível. Num tempo em que não se produzia riqueza, não havia riqueza para distribuir e nem sequer comprar bens de consumo tão essenciais como o calçado. Bem antes disso estava a comida, mais prioritária como se compreenderá. Depois, ainda vinha a roupa. E o calçado era dispensável, porque não se considerava prioritário. A maior parte do pessoal andava descalça, desde as crianças, aos adultos e velhos, que nunca eram muito velhos. E, apesar disso, nenhum deles dizia: “Não tenho nada para calçar”!!! Quem estivesse ligado à agricultura, usava socos. Eu tive “chancas”, com base de madeira. Quando jogava a bola (feita com meias velhas cheias de trapos) com os colegas de escola num qualquer caminho de terra, apesar de usar as minhas “chancas” e eles jogarem descalços, quem apanhava caneladas era eu. Andavam descalços todo o ano, de inverno e verão, ao sol e à chuva, com frio ou calor, de tal forma que a sola do pé parecia mais grossa que a sola dos sapatos. Só ao domingo, para ir à missa, havia calçado. Em 1926 saíra uma lei a proibir andar descalço nas cidades e resultou, pois mais de vinte anos depois era difícil ver alguém sem calçado numa cidade como o Porto. No meio rural como o nosso, tal não acontecia. Só em 1956 é que nova lei veio alargar a todo o território nacional, embora tivesse custado muito a pessoas habituadas a não usarem calçado. Poucos meses depois de sair a lei e com as autoridades a tentarem que fosse cumprida, deu-se por cá uma cena caricata. Uma mulher ia descalça por um caminho de terra até este se cruzar com a estrada nacional, continuando do outro lado. Quando ia a atravessá-la, foi surpreendida por dois elementos da GNR, que lhe disseram estar a infringir a lei por andar descalça e, por isso, teria de pagar multa de dois escudos e cinquenta centavos. Na sua ignorância e boa dose de “santa inocencia”, respondeu-lhes: “Desculpem-me, eu só vou atravessar deste lado para aquele e não rompo nada a estrada” …  

Nesse tempo, andar descalço era normal. Diria até que muita gente tinha dificuldade em andar calçada, pois era frequente vermos quem caminhasse descalço com as botas ou sapatos de atilhos amarrados e penduradas num pau que carregavam às costas. E fazia-se tudo sem calçado: tanto se ia descalço para a escola, como à “benda” ou à água; lavrava-se e sachava-se milho e batatas com os pés na terra, como se vindimava ou cortava erva. E até se ia ao monte “cortar mato” com os pés nus e sem nada calçado, apesar do mato (tojo) ser bravo e cheio de picos. Como se andava descalço, com facilidade se furava o pé, com pregos ou “estrepes”. O “calçado” mais comum dos homens eram os socos e nas mulheres as socas. Alguns homens usavam “solipas”, uma espécie de sandália com base de madeira a servir de sola, senda a tábua lisa com o feitio do pé e uma tira de cabedal a atravessar onde se enfiava os dedos. Já as “chancas”, um calçado grosseiro com base de madeira e cano de cabedal, eram mais usadas por crianças. Sendo o calçado utilizado somente por aqueles que tinham alguma condição económica, mesmo assim privilegiavam-se as botas, muitas vezes com sola de pneus usados para não serem tão caras. Já estudava no colégio quando o meu tio Peixoto me ofereceu um par de sapatos, sendo um muito diferente do outro. A verdade é que os usei sempre até ao fim, sem qualquer problema ou preconceito, porque eram … sapatos. E isso é que era importante …

Mas os tempos mudaram. Inicialmente, devagar, mas a partir de uma certa altura, de forma acelerada, à medida que a indústria evoluiu e se foi desenvolvendo, criando riqueza, produzindo produtos cada vez mais baratos, que passaram a ser acessíveis à maioria da população. E entre esses produtos estava e continua a estar o calçado, com uma gama de modelos e tipos impressionante que nos meus tempos de juventude jamais imaginaria. Daí que hoje a capacidade produtiva das empresas é quase infinita e a única dificuldade é somente a do escoamento dos produtos, tal é a concorrência. E assim há os sapatos de luxo, os modelos exclusivos e com assinatura, os convites àqueles clientes que as lojas têm referenciados como “importantes” (“tenho um par lindo e único que condiz com o seu vestido …”), as promoções, saldos, rebaixas, “stock-off”, “outlets” e toda uma série de invenções que o marketing e a publicidade criaram para “impingir” produto e mais produto, muito para além das nossas necessidades reais. E por isso temos as casas atafulhadas com todo o género de calçado, muito dele que nem sequer chegou a ser “estriado” ou só foi usado uma vez, para andarmos quase sempre com o mesmo. Mas o curioso é que há para aí muito boa gente que, quando abre a porta do quarto e olha as dúzias e dúzias de pares bem alinhados, como soldados à espera de serem convocados para o serviço, ainda tem “lata” para mostrar uma cara de “desgraçado”(a) e murmurar ou gritar: “Não tenho nada para calçar”, como também dizem “não tenho nada que vestir” perante um roupeiro enorme atafulhado de “trapos” até à porta … Uma terrível ofensa para aqueles que não tinham mesmo!!! Deveria ser possível recambiá-los por uns tempos a essa época do “pé descalço” para receberem um “tratamento” de humildade e talvez passassem a agradecer e valorizar tudo o que têm a mais em vez de derramarem “lágrimas de crocodilo”, num insulto vergonhoso aos que realmente precisam … 

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