Se somasse todos os minutos que passei na vida em frente ao espelho a cuidar da “caixa dos pirolitos”, diariamente, correspondia a cerca de cem dias seguidos. Ora, estar 100 dias a olhar esta cara que é a minha para nunca ter descoberto que “sou descendente de judeus”, das duas uma: ou estive sempre a dormir ou sou um descendente degenerado, que perdeu os traços característicos desse povo, como o nariz grande e curvo, testa alta, olhos redondos e escuros, além das clássicas boca e orelhas judaicas.
Dizem os estudiosos que nos meus antepassados há judeus. E já agora, não se surpreenda porque o mesmo acontece consigo, tal como a grande maioria dos portugueses. Surpreendido? Também eu. Se calhar, talvez mal informado. Se o seu sobrenome é Almeida, Cardoso, Carvalho, Teixeira, Castro, Marques, Fonseca, Melo, Nunes, Pereira, Rodrigues e muitos outros de uma extensa lista, pode crer: “Tem costela de judeu”. O meu Machado no sobrenome também faz parte da lista, tal como o Lousada. Reza a história que a Península Ibérica no ano de 1.400 foi o centro do judaísmo no mundo. Quando perto do final desse século os judeus espanhóis tiveram de fugir da Inquisição no país para salvarem “a pele”, entraram cá em Portugal cerca de 100.000 que, ao juntarem-se aos outros 100.000 judeus que cá estavam instalados há muitos anos, passaram a constituir vinte por cento da população. É por essa razão que os historiadores dos “judeus sefardistas”, nome pelo qual são conhecidos os judeus com origem na Península Ibérica, dizem que a maioria dos portugueses tem raízes judaicas, e percebe-se porquê. Eu e você incluídos.
Vale a pena ler a história dos judeus sefardistas que aqui viveram e de quem, eventualmente, somos descendentes. Porque também aqui em Portugal a intolerância religiosa os obrigou a fugir por medo da Inquisição ou a converterem-se ao cristianismo (e chamados cristãos novos), numa altura em que encarnavam o mais alto nível cultural, estético e moral da Europa. Não deixa de ser curioso que, apesar de perseguidos, de queimados e mortos aos milhares como foi o caso do massacre de Lisboa em 1506, Portugal e Espanha permaneceram e permanecem ainda no imaginário das famílias dos seus descendentes mais de 500 anos depois, como Terra da Esperança e Prometida. Para muitos desses judeus, que nasceram e viveram as suas vidas fora e nunca puseram os pés em Portugal, o fim da história e o seu é cá, não em Jerusalém. Os descendentes daqueles que fugiram e se encontram espalhados pelo mundo, ainda hoje possuem chaves medievais das casas dos seus antepassados que viveram em Portugal, apesar das casas já não existirem. Após as muitas perseguições de que foram alvo, a cultura sefardista continuou ao longo de séculos conservando orações em português. Vendo bem, foram humilhações, perseguições, expulsões, conversões forçadas e massacres a mais para um povo só. Mesmo assim, sobreviveram a egípcios, babilónicos, romanos, persas, soviéticos, gregos, alemães, enfim, a todo o mundo e a saga continua.
Mas, se for verdade que tenho uma parcela de judeu, também posso estar feliz por “fazer parte do povo escolhido por Deus”. Até porque, Jesus e os doze Apóstolos eram judeus, tal como Abraão e os muitos cientistas, historiadores e outros ilustres cidadãos do mundo que, em elevado número, ganharam o Prémio Nobel. Terá sido por acaso ou sinal de que são mesmo “um povo escolhido”, ao menos pelo júri que o atribui?
Se eu for judeu – e vou procurar uma empresas certificada que ateste isso em documento oficial, ainda que tenha de meter uma cunha ou dar um dinheirito por fora – passarei a pertencer ao povo de Albert Einstein a Ralph Lauren e Calvin Klein, de Anne Frank aos criadores do Google Larry Page e Sergey Brin, de Karl Marx, um dos homens mais influentes da humanidade, ao criador da Marvel e dos “heróis” Homem-Aranha e os Vingadores. Mesmo que não tenha sangue 100% judeu, pode ser o suficiente para ser um psicólogo como Sigmund Freud, talvez um criador como Levi Strauss (calças Levis), maestro como Leonard Bernstein ou filósofo como Milton Friedman, todos eles judeus retintos. E se tivesse o tal nariz grande e curvo, diria que era igual ao da Bárbara Streisand, do Dustin Hoffman, Harrison Ford, Jessica Parker e tantas outras estrelas de cinema, podendo vir a ser escolhido pelo tamanho da “penca” para fazer uma “fita qualquer”.
A verdade é que, podendo ter ou não algum sangue judeu, para além do tal “nariz adunco ou aquilino”, falta-me mais alguma coisa porque o sucesso, seja nos negócios, na criatividade, na investigação ou nas artes, não se alcança sem uma boa preparação e muito trabalho. E não é por acaso que são o país com a maior média de universitários por habitante no mundo e que produz em média maior número de documentos científicos.
Mas tudo isto para dizer que não sei se em mim corre sangue judeu, apesar de haver fortes probabilidades dado que eles chegaram a ser um quinto da população portuguesa, portanto, muitos de nós. E isso incomoda-me? De jeito nenhum, pois não é essa possibilidade que faz de mim um judeu. Tendo sido educado com a palavra “judeu” a ter uma certa carga negativa – e as razões dessa “sina” foram mudando ao longo dos tempos – aquilo que tenho lido sobre esse povo errante, sofrido e resiliente leva-me a ter por ele um enorme respeito. Diria até, certa admiração porque, apesar dos muitos condicionamentos, geraram entre os seus sem número de pessoas ilustres, muitíssimo acima de qualquer outro país em termos proporcionais, que deram um enorme contributo para o desenvolvimento económico, social, tecnológico e cultural da Humanidade e a quem se deve muito do nosso bem estar.
Por isso, fica-me a curiosidade: “Será que também sou judeu”?