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Negócio: O alimento que sai de um esgoto natural …

Ora, depois de ter tido uma estufa para produzir cravos em sociedade informal, negócio que foi salvo pela revolução do 25 de Abril e pela “febre de cravos vermelhos” ao fazer escoar num ápice uma produção “encalhada” e depois de ter uma exploração de coelhos também ela em sociedade informal de três amigos, que nos fizeram atravessar a Espanha à procura de progenitores, mas garanto que nunca os “tirei da cartola”, decidi agora tornar-me produtor de ovos, abraçando uma nova atividade para dar o contributo ao crescimento da economia e do PIB nacional. É verdade, esta ideia dos ovos entrou-me na cabeça depois de ver o preço a que já chegou a dúzia no supermercado e ao acreditar que a guerra na Ucrânia está aí para durar. Ora, quando a minha exploração de galinhas poedeiras estiver em plena produção, pelos meus cálculos cada ovo já deve valer 1 euro ou mais. É verdade que este é um negócio de trampa porque os ovos saem pelo mesmo buraco por onde saem as fezes e a urina da galinha. 

Ou seja, é um alimento que vem a este mundo através de um “esgoto natural”. Mas é o que é e eu quero fazer a diferença ao produzir os verdadeiros “ovos do campo, biológicos”, pois as minhas galinhas vão esgravatar na terra, comer o que a natureza lhes der, ser livres e felizes. Mas não quero ter ovos de aviário conseguidos à base de rações com muitos ingredientes que fazem mal à saúde e onde até o corante entra para o amarelo da gema ser mais vivo. Nada disso. Quando muito, poderão comer alguns grãos de milho, diria poucos para não aumentar ainda mais a importação de cereais que vêm quase todos de fora. E vai ser tudo à moda antiga pois até vou recorrer ao velho costume de lhes meter o dedo no cu para saber se têm ovo ou não para “botar” … 

O meu plano de negócio diz-me que o investimento é bom, a começar pelo pavilhão para as galinhas se abrigarem e “botarem” ovos, se bem que, como andam ao ar livre, podem “botá-los” em qualquer sítio da “propriedade” pois, se a vontade chegar longe do abrigo, só têm de se aninhar num canto e pôr, como fazíamos em criança quando no meio do monte precisávamos de nos “aliviar” …

Confesso que estou a cometer uma ilegalidade: não submeti o projeto a licenciamento para não atrasar a construção do “pavilhão” por mais 2 a 3 anos com as burocracias do costume. E assim, as obras já estão bastante adiantadas: paredes ao alto, chapa lateral e caixilharias. Só falta colocar a cobertura e pouco mais. Quanto à “propriedade” está a ficar quase toda vedada para que as galinhas andem por ali sem risco de se perder ou serem comidas pelas raposas e texugos. Vou ter de estar de olho nos ovos, porque podem ser largados em qualquer sítio, para precaver que as aves de rapina e os cucos os comam.

Em qualquer indústria, mais importante que produzir é ter uma boa rede de escoamento do produto. Não me adianta nada produzir ovos, muitos ovos, e ficar com eles acumulados em casa. Não vou chocá-los nem sequer vou fazer omeletes. É por isso que já tenho cinco clientes assegurados que me garantem o consumo da produção quase na sua totalidade. Só não sei se pagam bem! Aliás, para estar seguro de que todos os ovos terão saída, parte da produção destina-se à indústria de pastelaria para poder dormir tranquilo: se não me pagarem com dinheiro, vão ter de me pagar em bolos …                                                                                               Como não podia deixar de ser, nos tempos que correm, este projeto tem uma vertente ecológica, pois pretende vir a aproveitar os restos de legumes e frutas que, doutra forma, vão parar ao caixote do lixo. Com tal medida reduzo a quantidade de lixo dando utilidade a parte dos resíduos orgânicos e, ao mesmo tempo, diminuo a quantidade de milho a comprar para alimentar as aves. Além disso, já fiz plantação de maracujás e chuchus que estão a usar as vedações como suporte para se estenderem à vontade e produzir fruta deliciosa até porque serão fertilizados com “guano” natural, resultado do aproveitamento dos excrementos das aves ricos em nitrogénio, o que me trará um rendimento suplementar, especialmente nos maracujás pois o preço está bem apetitoso … para quem vende. E até os frutos caídos serão aproveitados na íntegra ao alimentarem diretamente as galinhas.

Para me dedicar a este ramo de atividade tive de estudar bem qual a raça de galinhas poedeiras que mais interesse tinha para mim. Colhi informações dos técnicos mais credenciados e cheguei à conclusão que deveria escolher uma raça com origem nos Estados Unidos, com o nome de Rhode Island Red, pois está bem adaptada e pode pôr 250 ovos por ano ou mais. É muito ovo para uma só galinha. Ainda pensei na Pedrês Portuguesa, até porque o povo diz que “a Pedrês vale por três”. Mas lembrei-me que o mesmo povo também diz que “Santos da terra não fazem milagres”. Depois de rejeitar as raças asiáticas pois acho que “devem ter os olhos em bico” e seriam demasiados “bicos” para comer, e pôr de lado as raças inglesas por terem a mania que pertencem à monarquia, escolhi a raça americana porque pode ser que com isso me ajude a realizar o “sonho americano”.                                   Já aprendi que, no espaço que está reservado às galinhas, não posso ter cebolas, abacates, citrinos, cascas de batata nem feijão seco, pois as minhas “inquilinas” não podem comer nada disso. Ora, sendo elas consideradas “trabalhadoras”, se bem que só recebendo a título de pagamento, “cama, mesa e cuidados de saúde”, tenho de dar atenção a toda a “hotelaria” para que se sintam bem instaladas, sem stress ou agitação. Só assim poderão produzir em pleno e com qualidade. É que eu quero que os clientes se sintam muito satisfeitos com a qualidade dos ovos, a começar por mim como cliente número um e pelos meus filhos na qualidade de clientes dois e três. Já decidi que não compro um jeep para percorrer toda a propriedade vedada, com 20 hectares, digo, com 20 metros quadrados, tendo ao fundo aquilo a que o povo chama “galinheiro” embora eu, pomposamente, chamo de “pavilhão”, onde se vai abrigar um numeroso grupo de … 6 galinhas.                                                                                                  Como compreenderão, já não vou poder aceitar mais clientes para os ovos, embora esteja a equacionar fornecer um ou outro interessado em bolos, se a “mestre pasteleira” da família não desistir por cansaço. Terei a porta aberta para receber frutas e legumes, evitando que vão parar ao lixo e talvez venha a abrir uma escola para ensinar “como construir um galinheiro”. Ou, se preferir, um “pavilhão para galinhas poedeiras”. Sempre dá outro estatuto …

Crónica para o diretor do jornal …

Hoje, mal soube a notícia, disse a mim mesmo que esta crónica seria dedicada a ti. Mas, confesso, estou sem jeito para escrever o que quer que seja, faltam-me as palavras e nem sei bem por onde começar. E o problema está em mim, pois não se pode escrever sobre alguém de que, pessoalmente, se conhece pouco, a não ser do resultado do seu trabalho.                                                                                                                   Devo dizer que és o culpado de eu ter voltado a escrever “coisas” para um jornal, depois de me ter aventurado a percorrer esse caminho já lá ia um bom par de anos. No teu jeito bem tranquilo, não me fizeste um convite formal, mas disseste:                                                                            “O senhor podia voltar a escrever para o jornal, se quisesse”. A conversa foi de curta duração, mas deixaste-me a pensar no assunto e, dias depois, acabei por te telefonar a dizer que “acedia à tua sugestão (que nem sequer chegou a ser um pedido) e ia ver se escrevia qualquer coisa. Já lá vão mais de dez anos, já respondi à tua sugestão com cerca de 500 crónicas que, como são mais longas do que é habitual, funcionam como soporífero para os leitores que se aventuram a ler para além do título, correndo o risco de adormecer a meio.                                                                                                                             E sei disso porque alguns amigos (que gostam das notícias tipo telegrama), já me têm manifestado esse “defeito”. Mas a verdade é que durante estes mais de dez anos nunca me disseste para escrever artigos mais ou menos curtos, nem para abordar ou não um ou outro tema. Deste-me rédea solta de tal forma, que isso me levou a explorar alguns assuntos que, no dizer de um amigo meu, “não estão de acordo com a minha condição”. Mas é preciso ir para além do “politicamente correto” de vez em quando, agitar as águas e as consciências, brincar com a minha condição humana e os meus defeitos, que são os mesmos de muito boa gente que não gosta de se ver ao espelho …                                                                                Ia-me esquecendo que me enviaste muitas mensagens ao longo destes anos todos, uma realidade muito incómoda … para ti. Porque foram sempre a perguntar a mesma coisa: “ainda vai enviar o artigo para o jornal desta semana”? É que nem sempre tive tempo ou a inspiração para escrever atempadamente a crónica semanal quando passou a ser habitual e daí o teres de “me lembrar” que estava a ser precisa para preencher esse espaço no jornal. E fizeste-me trabalhar muitas vezes fora de horas para cumprir contigo um contrato que não assinamos nunca e sem quaisquer cláusulas de direitos e obrigações. E hoje aqui, confesso-te que o fiz muitas vezes a pensar que não podia trair a tua confiança, pela enorme responsabilidade que é exigida ao diretor de um jornal regional e pelas dificuldades de sustentabilidade com que se deve defrontar para o manter de pé, especialmente neste tempo surreal das redes sociais.                                                                        Também nunca me perguntaste quanto terias de me pagar por cada crónica que eu escrevi, mas é verdade que nunca me apresentaste a conta do que teria de pagar pela publicação de cada uma, se calhar por cada linha. Nunca houve necessidade dessa contabilidade do deve e haver e as únicas coisas que recebi (e não serão de pouca monta), foram as borlas em um ou dois jantares do jornal para os quais me convidaste e as amáveis palavras, tuas e da tua mãe, como estímulo, para compensar o trabalho de matraquear nas teclas do computador.                                                                                 Encontramo-nos na rua por mero acaso há três ou quatro meses e eu ainda quase não abrira a boca quando me deixaste sem reação. Nesse teu tom tranquilo habitual informaste-me que não terias mais do que três meses de vida, como quem diz que vai ficar nu por falta de roupa ou conhece o prazo de validade da sua “pilha”. E tinhas razão. Como disse, a surpresa da notícia fez com que não te desse os parabéns, que dou agora por, com erros e acertos, avanços e recuos, ter “carregado” e levado a bom porto a herança da família “Afonso” que é este Jornal. E, deixa-me que te diga, é tarefa em que eu não me aventuraria. Assim, ao conseguires “levar a carta a Garcia” e o mesmo é dizer “cumprir a missão eficazmente, por mais difícil ou impossível que possa parecer”, tens todo o meu apreço, o meu abraço e a minha homenagem.                                                                                                          Para concluir, apesar de querer andar por cá mais uns anitos a tentar bater a idade de minha mãe, faço-te um pedido: Ao instalares-te nessa “nova morada” e depois de assumires as funções de direção do Jornal  do Purgatório onde estás para o processo temporário de purificação em que a alma é preparada para entrar no Reino dos Céus, reserva-me desde já um espaço nesse Jornal para as minhas crónicas, já que cada uma deve contar um ponto para a remissão dos meus pecados, que não são assim tão poucos. Mas não te preocupes se para os remir por completo tiver de escrever muitos milhares de crónicas, para as quais já tenho muito material – só o dossier TAP é um poço sem fundo que nunca mais acaba de nos surpreender – e, em abono da verdade, tempo não me faltará, pois terei “todo o tempo do mundo” …                  E até um dia destes, meu caro Sérgio Afonso, Diretor do TVS.         

100 anos é muito tempo …

Cem quilómetros é muita estrada, cem sóis seria um mundo de luz e cem tiros na “mouche”, muito acerto. Já cem anos é muito “caminho” e muito tempo de vida, um sucesso de longevidade só ao alcance de alguns. A estatística regista que em Portugal há pouco mais de 5.000 pessoas com mais de cem anos de idade, ficando o resto ao longo da viagem, com as doenças crónicas que nos são habituais. Diz o ditado chinês, com cerca de 3.000 anos, que o segredo da longevidade está em “comer pela metade, exercitar em dobro e sorrir o triplo”. Nesse sentido, há estudos a referir que o nosso estilo de vida determina em 90% o nosso potencial para viver mais ou menos tempo.                     Mas há muita confusão sobre qual o melhor estilo de vida. Desde as dietas incríveis aos especialistas televisivos que dizem saber tudo, aos produtos milagrosos vendidos pela internet, há de tudo por todo o lado. A maioria não passa de uma grande mentira. O certo é que não estamos programados para viver tanto tempo e não há “milagreiros” que nos valham, a não ser estilos de vida comprovadamente bons. É o caso da região da Barbagia, na ilha da Sardenha, em Itália, onde estão os homens com 10 vezes mais centenários do mundo que nos países desenvolvidos e com qualidade de vida. O segredo? Além da muita atividade física natural e de uma alimentação simples e saudável, o verdadeiro segredo parece estar na forma como as pessoas idosas são tratadas. Enquanto nas sociedades ocidentais são “descartáveis”, ali, quanto mais velho é mais valor tem, com relevância na sabedoria. E as mulheres de Okinawa, no Japão, são as que têm mais centenárias no mundo. Segredo? Comem em pratos pequenos, a panela não vai para a mesa e o que sobra fica longe da vista para não haver tentação. Só enchem 80% do estômago e, quando nascem, ficam logo com 6 amigos que as vão acompanhar para a vida e que estarão sempre prontos a ajudar nos momentos difíceis.                                                     

Há poucos dias uma senhora nossa conterrânea completou 100 anos de vida, uma ocasião muito comemorada pela família mais próxima, pelas pessoas da aldeia que por ela têm um carinho especial entre familiares e amigos, sobre o patrocínio do presidente da junta de freguesia e depois por um leque muito alargado de familiares. Mas, além de completar o centenário, o que por si só já é um feito, mantem uma excelente qualidade de vida sendo totalmente autónoma, o que lhe permite ir semanalmente às compras e à missa, cuidar do jardim e usar a máquina de costura para fazer alguns arranjos na sua roupa e até na dos seus filhos. Vê todos os dias o telejornal para se manter informada e quando a filha lhe diz para não acreditar em tudo o que dizem, ela responde-lhe: “Eu gosto de ouvir todas as notícias, mas só acredito naquilo em que quero”. Mantém conservadas as memórias de antigamente, recordando muito bem as pessoas e factos do seu passado distante, de que fala com tranquilidade.

Onde está o segredo da sua longevidade? Se quisesse ser adivinho, diria que tem algumas coisas do que já falamos aqui: Não come demasiado consumindo com regularidade vegetais e frutas, bebe um a dois copos de vinho por dia desde criança – relembra que quando tinha 6 anos de idade a mãe prometeu-lhe um “carrinho de corda” se não bebesse vinho durante um ano e ela cumpriu e ganhou – faz parte de um grupo e de uma comunidade, tem uma boa rede de pessoas amigas que não a deixam isolada e a família foi sempre a sua única opção. Mais, como católica e praticante foi catequista e ensinou várias gerações. Porém, talvez o grande contributo para a sua longevidade venha, para além do vinho, de algo impensável: carne de porco e os fritos. E esta? Das suas mãos nasceram trabalhos excecionais de rendas e bordados, para além de todo o tipo de roupas em malha, antes à mão e depois com máquina, tendo feito da sua casa uma autêntica escola de artes para jovens e menos jovens, com paciência e um sorriso no rosto, a título gratuito, recebendo somente por recompensa o prazer de ajudar os outros, o que fez pelos Vicentinos e a título pessoal ao longo do tempo. O seu estilo de vida, em geral tranquilo, ajudou-a a superar as perdas duras e extemporâneas do marido e dois filhos que a afetaram muito, mas de que soube fazer a aceitação.  

Escrevi-lhe uma carta há 10 anos quando ela fez 90 anos, para lhe dizer que, por ter de me deslocar fora do país iria estar ausente no seu aniversário. Mas sobretudo para lhe transmitir o meu orgulho e privilégio de ser seu filho, de me ter recebido e aceitado como uma bênção de Deus e assim me considerar ao longo de todos esses anos.

E, dez anos volvidos, continuo a ter a felicidade de ter a mãe querida que me cobriu de bênçãos em tempos tão difíceis como foram esses do pós-guerra, fazendo-me sentir muito amado. De ser a pessoa que desde criança me ensinou o amor pela natureza, ao fazer-me livre e responsável. De me ensinar o valor da caridade e da solidariedade e a sua prática, o respeito pelos pais, pelos mais velhos, autoridades e os mais fracos. De me mostrar a importância da palavra, da honra e do bom nome como valores fundamentais e preciosos da nossa vida.

Foi o meu Anjo da Guarda que me deu o mundo e soube libertar-me a esse mundo para seguir o meu caminho e constituir família.  Deu-me ânimo sempre que falhei ou quis desistir, em gestos que diziam muito mais do que em palavras que não dizem nada. Seus olhos foram bem firmes quando precisei de uma lição e sacrificou-se por nós, filhos, tendo-nos posto sempre em primeiro lugar, mesmo à mesa.                             Tive a felicidade de ter uma mãe sem preocupação de ter um único filho por não ter tempo, porque tinha todo o tempo do mundo para nós. Que esteve sempre presente e não tinha de me acordar ao nascer do dia para me entregar a outra. Construiu o meu caráter, ensinou-me todas as boas maneiras e os valores importantes da vida como a solidariedade, honestidade, amor ao próximo, a caridade e o respeito. E se foram diversas as escolas que me deram a instrução, a educação devo-a à minha mãe.

Não vou dizer o que faria se tivesse adivinhado que a mãe viveria 100 anos, pois a Luísa e os meus filhos poderiam não gostar de ouvir. Mas não posso estar mais feliz ao vê-la nesse rol restrito das centenárias portuguesas, pois é o sinal de que continuo a contar com ela para me ajudar quando preciso de conselho. E ela mantém a lucidez e o bom senso para o fazer.

Acabo com o mesmo final da carta que referi: “Diz-se que Deus não podia estar em todo lado e por isso criou as Mães. Pergunto então: “Meu Deus, porque permites que as Mães tenham de ir embora? Porque será que as queres levar um dia?” É que Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se apaga. Será que posso pedir a Deus um descuido, que a possa fazer eterna”?

Obrigado, MÃE. Pelo seu aniversário e por ser quem é. 

A tradição ainda é (quase) o que era

Passou mais um dia de Páscoa onde se celebra a ressurreição de Jesus Cristo ao terceiro dia após a sua crucificação e morte no Calvário. Mas a verdade é que, quando era criança, na minha aldeia, e não só, vivia-se a Páscoa com mais fervor religioso. E a tradição ainda é o que era?  No sábado, véspera do dia de Páscoa, ao andar por aí, vi muita gente de calças arregaçadas, mangueira com água a correr numa mão e na outra uma vassoura para fazer a “limpeza geral” própria desta época. É a tradição no seu melhor, com os ajustes próprios da melhoria das condições de vida. Se antes se varria o terreiro da casa com uma vassoura artesanal de giestas ou um varrisco de codessos porque o piso era em terra batida, hoje, como o pavimento exterior é em cimento, tijoleira, cubos ou mesmo em placas serradas de granito, varre-se com vassoura ou espanador industrial e quando é necessário lavar o pavimento usa-se a mangueira com água e até a máquina de pressão para retirar toda a sujidade. Pelo contrário, como antes não havia água canalizada, as escadas de pedra eram lavadas à mão, de joelhos, com uma escova grande e sabão azul ou rosa. Duma maneira ou de outra, muitos são os que mantêm a tradição desta limpeza geral “para receber o Senhor”.                                                                                                  A tradição determina que essa “limpeza” também se estenda à alma através da confissão e era algo que a grande maioria da população fazia pessoalmente diante de um padre, de joelhos, verbalizando os pecados cometidos, tradição essa que veio a perder importância ao longo do tempo. Parece que a “lavagem da alma” passou a ser menos importante que a das nossas casas …                                                                 O domingo de Páscoa era uma ocasião muito especial pois começava por ser o “dia das estreias”. Não, não se tratava da estreia de nenhum filme, mas tão somente de roupa nova, fosse uma camisola, camisa, calças ou, melhor ainda, um fato completo. Como as dificuldades eram mais que muitas, quando os pais queriam dar algo novo para vestir aos filhos – e a si próprios – aproveitavam o dia de Páscoa porque a roupa funcionava não só como prenda da época, mas também como coisa útil para a ocasião já que a tradição mandava que se vestisse o melhor fato ou vestido nesse dia de festividade. E o “fatito” servia as duas coisas. Ora, para nós miúdos de então (e até os graúdos), uma roupa nova era razão suficiente para ficar feliz. E ainda me vejo todo vaidoso a exibir a roupa, fosse o fato ou uma simples camisola. Hoje a Páscoa já não é ocasião para estrear fatos, muito menos camisolas, até porque nesse dia a maioria das pessoas veste informalmente. Aliás, já nem há ocasiões especiais para ter de se estrear roupa nova a não ser nos casamentos, porque as mulheres não podem aparecer com um vestido que já usaram num outro casamento. Seria um escândalo …                                                                       Se antes a maioria das crianças recebia a “rosca” de trigo (regueifa) ou uma simples “pitinha” (a imitar um pintainho) feita da mesma massa e passeava-se todo o dia com ela enfiada no braço pelos caminhos da aldeia porque era um privilégio único ter uma “rosca” só para si, coisa a que não tinham acesso no resto do ano, hoje nada disso tem valor porque a fartura é muita e nem sequer as “roscas de pão de ló” ainda são algo especial …                                                                                                  A visita pascal era o momento mais festejado na aldeia. Apesar das casas serem muito modestas, não havia quem não cuidasse de as limpar, arranjar e engalanar para “receber o Senhor”. À entrada da casa espalhavam-se flores e folhas em especial de era, mais tarde substituídas por “tapetes de flores”. Aliás, hoje é uma tradição que se mantém e eu próprio não deixo de apanhar folhas de era no jardim para atapetar a entrada de minha casa, sinal de que quero receber o “compasso”. Se antigamente praticamente todas as casas da aldeia estavam abertas para o receber, além de em muitas delas obrigarem os elementos do grupo a comer e beber alguma coisa, atualmente já são bastantes as que estão fechadas e são tantas mais quanto mais urbano for o meio, pois alguns já não estão para aí virados e outros aproveitam para gozar umas miniférias pascais num qualquer paraíso turístico, dentro ou fora do país, relegando para segundo plano essa coisa de passar a Páscoa em casa. Nas minhas recordações a imagem do “compasso” começa sempre com o tocar duma campainha agitada fortemente por uma criança no caminho entre casas, anunciando a sua chegada. Este ano vinha em dose dupla. A seguir vinha o juiz da cruz com esta nas mãos e era ele que a dava a beijar, tradição que se mantém, só interrompida pela pandemia. E era o senhor padre que nos dizia algumas palavras de saudação e anúncio da ressurreição de Jesus, mas que hoje tem nos acólitos os seus substitutos por força das circunstâncias. E à saída andava alguém com uma cesta para recolher os ovos oferecidos, uma tradição que desapareceu.                                                                                                  Há uma coisa que foi aumentando de forma muito significativa ao longo do tempo: os foguetes. Se antes não passavam de uma dúzia ou pouco mais ao longo do dia de Páscoa, hoje, desde o amanhecer até já depois de cair a noite, o foguetório é quase contínuo e o som chega de todos os lados pois não deve haver paróquia nenhuma que não mande as suas bombas, levando a que a minha cadela passe o dia refugiada debaixo da cadeira e até se retraia de ir lá fora fazer as necessidades, pois costuma ser apanhada a meio caminho com novos estrondos, fazendo com que desista e volte a correr para o seu “abrigo” à prova de bomba.                                                                                                                  A Páscoa é a celebração da ressurreição de Jesus Cristo, ontem como hoje, embora as vivências sejam diferentes. Atualmente vê-se no dia de Páscoa mais o fim de semana prolongado e a oportunidade de sair de casa para descanso ou diversão, enquanto noutro tempo prevalecia o sentido original da celebração, com as pessoas a deslocarem-se de longe ou perto num regresso à casa paterna e o povo em autênticas arruadas atrás do compasso. Mas, apesar de tudo, na província ainda se preserva a tradição, com as alterações próprias dos novos tempos.  A Páscoa faz-me relembrar sempre o propósito do sacrifício e morte de Jesus Cristo e a mensagem de que, enquanto vivendo em sociedade e em comunhão com os outros, temos a obrigação de nos sacrificar e sofrer para ajudar os que nos rodeiam sejam eles familiares, amigos e mesmo desconhecidos, de ser solidários, porque um dia destes, e que vem mais depressa do que esperamos, podemos ser nós a precisar do sacrifício, sofrimento e solidariedade de alguém …

A importância de um pequeno inseto

Há cerca de 65 milhões de anos deu-se uma extinção em massa, que foi responsável pelo desaparecimento dos dinossauros e cerca de três quartos das espécies existentes na Terra. Hoje, muitos cientistas acreditam que outra extinção poderá estar em curso, desta feita, em resultado da sorte de um pequeno, mas decisivo ser: a abelha. Será que esta teoria tem algum fundamento?                                                        A abelha é um inseto parente das abelhas e das formigas e vive em colmeias, sejam elas naturais ou artificiais. No seu interior, existe uma rainha, uma abelha adulta e fértil, mãe de todas as abelhas da colmeia. Entre estas, encontram-se as abelhas obreiras, que usam cera para construir os favos, onde armazenam mel e pólen para alimentar tanto as larvas como os insetos adultos e os zangões, cuja principal função é fecundar a rainha. Cada abelha tem, em média, entre 28 a 48 dias de vida, com exceção da rainha, que pode durar 5 anos. A vida das abelhas é crucial para o planeta e para o equilíbrio dos ecossistemas, já que, na busca do pólen, a sua refeição, estes insetos polinizam plantações de frutas, legumes e grãos. E esta polinização é indispensável, pois é através dela que cerca de 80% das plantas se reproduzem. Como alertava Einstein “se as abelhas desaparecerem da face da Terra, a humanidade terá apenas mais quatro anos de existência. Sem abelhas não há polinização, sem polinização não há reprodução da flora, sem flora não há animais e, sem animais, não haverá raça humana.”                                                                                   Assim, as abelhas afetam a nossa vida diariamente sem que nós nos apercebamos disso. A nível alimentar, aproximadamente dois terços dos alimentos que ingerimos são produzidos com a sua ajuda através da polinização. Por isso, o biólogo Jasen Brito sugere que todos os apicultores devem manter uma colmeia nas suas propriedades para aumentar a produção das culturas como o milho e feijão, garantindo a indispensável polinização. Isso é o reconhecimento de que, sem as abelhas, a segurança alimentar da Humanidade estará ameaçada. E há fortes razões para preocupação. É que a utilização excessiva de pesticidas destinados a eliminar as pragas e doenças que afetam a agricultura, tem vindo, igualmente, a matar as abelhas. De forma semelhante, outros químicos, utilizados para promover um maior crescimento das plantas, prejudicam a polinização, colocando em risco o próprio ecossistema. Por exemplo, o uso de um pesticida em França e Alemanha está associado à morte maciça de abelhas. Mas as ameaças sobre as abelhas incluem a própria apicultura, no acréscimo de apicultores e no desrespeito das regras de distanciamento entre apiários, levando as abelhas a entrar em competição, além da vinda da vespa asiática e outras espécies invasoras e a multiplicação de doenças fatais. Ora, o resultado é muito preocupante, pois na Europa e América do Norte desapareceram 50% a 90% das populações de abelhas. Nos Estados Unidos, os fruticultores já alugam inúmeras colmeias à Nova Zelândia, que viajam de avião para ser instaladas nos seus pomares durante a floração e garantir a polinização, sem a qual não haveria fruta.                                                                                          Esses pequenos insetos vivem em sociedades bem organizadas, as colmeias, com funções distintas para os seus membros, podendo em cada uma abrigar até 60 a 80 mil abelhas. Em cada colmeia há uma rainha, cerca de 3 a 4 centenas de zangões e milhares de operárias. Se fosse entre nós, o facto da rainha poder viver até 5 anos e ser a única fêmea fecunda e as operárias serem estéreis e viverem somente 28 a 48 dias, fazia “cair o Carmo e a Trindade”. Era discriminatório, um privilégio da classe dominante. Mas ainda pior seria o facto de apenas as abelhas fêmeas trabalharem na colmeia em diferentes funções, já que os machos, os zangões, têm como função principal fecundar a abelha-rainha. Enquanto os zangões se divertem numa corrida em que é exigida boa capacidade física para seguir atrás da jovem rainha no chamado “voo nupcial” cerca de 9 dias após o seu nascimento e voa o mais alto possível para ver qual deles a alcança (num voo pode ser fecundada por vários zangões e guarda o sémen para usar quando bem entender), todas as operárias trabalham a cuidar da estrutura da colmeia, a reparar as células, limpando-as, construindo células novas para guardar mel ou abrigar os ovos postos pela rainha, alimentando esta, as larvas e até os zangões. Além das funções na colmeia, as operárias também guardam a entrada, enquanto outras saem a visitar flores na recolha de néctar e pólen. Ora, enquanto estas são os “moiros de trabalho”, os machos têm uma vida confortável a fecundar a rainha. Entre nós, seria machismo e mais umas quantas coisas que é melhor nem dizer aqui. Só que o macho que fecunde a rainha não tem “direito de repetição” nem será mais aceite na colmeia.                     Com o néctar e o pólen colhido nas flores, as operárias produzem o mel, cera, própolis e geleia real. O mel é um tipo de açúcar com alto valor energético que serve de alimento para elas, mas de que nós nos apropriamos sempre que podemos. Já a cera que elas produzem, é usada na construção das células, só por si uma obra de arte, mas não pode ser comparada à cera que nós produzimos nos ouvidos, já para não falar da outra “cera” que fazemos em resultado da “preguicite”. Já a propólis tem como função proteger a colmeia de micro-organismos como vírus, bactérias e até insetos invasores. É como o desinfetante que usamos para o covid e que as abelhas têm à entrada da colmeia. A rainha põe ovos aos milhares, tendo a capacidade de poder decidir se quer gerar fêmeas ou machos pelo simples facto de os fecundar ou não com o sémen que recebeu dos zangões – e quer isto dizer que os zangões são verdadeiramente “filhos da mãe” – e as operárias cuidam deles e das novas gerações.                                                                           Mas deixemos as especulações e passemos a algumas curiosidades: Uma das primeiras moedas do mundo tinha o símbolo de uma abelha. Sabia que existem enzimas vivas no mel? E que, quando em contacto com uma colher de metal essas enzimas morrem? Por isso, a melhor forma de comer mel é com uma colher de pau e, se não encontrar, use uma de plástico. Lembre-se que o mel contém uma substância que ajuda o cérebro a funcionar melhor. O mel é um dos raros alimentos na terra que, sozinho, pode sustentar a vida humana. Foi assim que as abelhas salvaram muitas pessoas de fome em África. Ora, é sabido que uma colher de mel é suficiente para sustentar uma vida humana durante 24 horas e que é um produto que não tem prazo de validade. Daí que os corpos dos grandes imperadores do mundo foram enterrados em caixões de ouro e depois cobertos com mel para evitar a putrefação. Já a própolis, um dos produtos produzidos pelas abelhas é um dos antibióticos mais poderosos do mundo. E, já agora, o termo “Lua de Mel” vem do facto de que os noivos consumiam mel para terem melhor fertilidade após o casamento.                                                                     As asas das abelhas batem 180 vezes por segundo, voam a 25 kms/ hora, carregam o equivalente a 300 vezes o seu e para produzir 1 kg de mel visitam quase 4 milhões de flores. Uma abelha vive menos de 40 dias e visita 50 a 1.000 flores por dia. É assim que também garante a sobrevivência dos seres humanos. Sem a presença delas, muitas espécies de plantas simplesmente não existiriam. Nem nós. Por isso, cada um de nós tem de fazer a sua parte para proteger este pequeno inseto, já que é o nosso “seguro de vida” …

A vida extraordinária da nossa mão!

A mão humana é extraordinária. Sinceramente, nunca me dei ao cuidado de pensar na enorme importância que tem na nossa vida. É uma das partes anatómicas do corpo humano de maior complexidade funcional. A sua atividade é responsável não só pelos movimentos e ações de grande precisão, como pela área de maior sensibilidade e perceção tátil do ser humano. O simples rodar duma chave para abrir a porta, enfiar um fio na cabeça da agulha, tocar uma peça musical no piano ou o tricotar de um casaco, são gestos que exigem coordenação e sincronismo. Executa um número infindável de tarefas só possível graças à enorme capacidade de adaptação aos objetos e suas formas. E todos conhecemos a enorme importância das mãos na rotina e na execução das tarefas diárias, embora nem sempre tenhamos o devido cuidado com elas.

A mão humana é constituída por um complexo conjunto de ossos e, por isso, é considerada, depois do cérebro, o órgão que realiza as tarefas mais elaboradas no corpo humano. Para o funcionamento normal da mão e punho, participam 29 ossos, mais de 30 músculos, 30 articulações, 20 nervos terminais e de 70 ligamentos e tendões! O espaço do cérebro destinado a organizar e coordenar as funções da mão é muito significativo e revela toda a importância da mão na vida do homem.

Os dedos compridos e polegar oposto aos outros dedos é que tornam as mãos uma parte única do nosso corpo, permitindo-nos, através do tato, manusear objetos, determinar temperaturas, texturas e até o nível de rigidez daquilo em que tocamos, atirar, agarrar ou apanhar coisas.

Quando nascemos, são as mãos que primeiro nos recebem a dar as boas-vindas a este mundo e são as mãos maternas a segurar para a carícia do primeiro beijo. Quando morremos, são as mãos dos amigos e familiares que nos carregam e as dos coveiros que nos enterram!

As mãos têm expressões contraditórias pois tanto assinam tratados de paz como ordens de avançar para a guerra. Tanto afagam com ternura como batem com violência. São capazes de construir pontes que unem, mas também muros que separam. Têm engenho e arte para fabricar tecidos finos como fúria quanta baste para os rasgar. E com capacidade para criar as mais belas obras de arte, mas também de as destruir num instante. As mãos cultivam a terra e colhem os frutos, moldam o barro e criam arte, conduzem os animais, bicicletas, carros e aviões. 

Vale a pena transcrever aqui o monólogo das mãos, de Ghiaron:

“As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever …

Foi com as mãos que Jesus amparou Madalena; com as mãos, David agitou a funda que matou Golias; As mãos dos Césares romanos decidiram a sorte dos gladiadores vencidos na arena; Pilatos lavou as mãos para limpar a consciência; os antissemitas marcavam a porta dos judeus com as mãos vermelhas como signo da morte! Foi com as mãos que Judas pôs ao pescoço o laço que os outros Judas não encontram.

A mão serve para o herói empunhar a espada e o carrasco, a corda; o operário construir e o burguês destruir; o bom amparar e o justo punir; o amante acariciar e o ladrão roubar; o honesto trabalhar e o viciado jogar. Com as mãos atira-se um beijo ou uma pedra, uma flor ou uma granada, uma esmola ou uma bomba! Com as mãos o agricultor semeia e o anarquista incendeia! As mãos fazem os salva-vidas e os canhões; os remédios e os venenos; os bálsamos e os instrumentos de tortura, a arma que fere e o bisturi que salva. Com as mãos tapamos os olhos para não ver e com elas protegemos a vista para ver melhor.

Os olhos dos cegos são as mãos.

As mãos na agulheta do submarino levam o homem para o fundo como os peixes; no volante da aeronave atiram-nos para as alturas como os pássaros. O autor do “Homo Rebus” lembra que a mão foi o primeiro prato para o alimento e o primeiro copo para a bebida; a primeira almofada para repousar a cabeça, a primeira arma e a primeira linguagem. Esfregando dois ramos, conseguiram-se as chamas. A mão aberta, acariciando, mostra a bondade; fechada e levantada, mostra a força e o poder; empunha a espada, a pena e a cruz!

Modela os mármores e os bronzes; dá cor às telas e concretiza os sonhos do pensamento e da fantasia nas formas eternas da beleza. Humilde e poderosa no trabalho, cria a riqueza; doce e piedosa nos afetos, medica as chagas, conforta os aflitos e protege os fracos.

O aperto de duas mãos pode ser a mais sincera confissão de amor, o melhor pacto de amizade ou juramento de fidelidade. O noivo para casar-se pede a mão da sua amada; Jesus abençoava com as mãos; as mães protegem os filhos cobrindo-lhes com as mãos as cabeças inocentes”.
Nas despedidas, a gente parte, mas a mão fica, ainda por muito tempo agitando o lenço no ar. É com as mãos que provocamos lágrimas, mas é com elas que limpamos as nossas e as lágrimas alheias. Tal como é com elas que selamos um negócio e a nossa palavra de honra com o habitual aperto de mãos.

Dizia Audrey Hepburn que “à medida que envelhecemos descobrimos que temos duas mãos: Uma para nos ajudar a nós próprios e a outra para ajudar os outros”.

Ao olhar os dedos das minhas mãos a bater nas teclas do computador não posso deixar de continuar a maravilhar-me com a sua mobilidade e flexibilidade. E daí, com a enorme quantidade de tarefas em número e diversidade que executaram ao longo de uma vida. Pensando nisso, se a grande maioria foram ações de que se devem orgulhar, há umas quantas em que podiam e deviam “ter dado a mão” …  

Caloteiros ou a nova arte de roubar!

Em face do que vejo agora, quando olho para trás fico com a dúvida de que os meus pais talvez não me tenham educado suficientemente bem para usufruir de tudo aquilo que a vida (e o mercado) nos pode oferecer, tendo ou não tendo condições económicas para tal, com o meu dinheiro ou o dinheiro de alguém que pode ou não vir a recebê-lo, sem que seja um problema meu. Por isso, pratiquei desde criança a arte da poupança e sempre governei a minha vida em função do que tinha. E assim, as férias, o carro ou a compra de qualquer outro bem, sempre foram condicionados ao que tinha e não ao que sonhava ter. Ora, esta mentalidade está ultrapassada e hoje (quase) todos acham que têm direito a tudo aquilo que os outros têm, uma ideia vendida pelos promotores do consumismo. O recurso ao crédito fácil ou ao dinheiro e bens dos amigos e conhecidos é o novo normal. Goza-se antes, paga-se depois, se não for nesta vida vai ser na outra. Até as funerárias já promovem o “morra agora, pague depois”. É uma forma atual a que nunca me consegui adaptar. Nisso, sou antiquado. Fico com receio de não poder pagar. Ora, há muitas pessoas que convivem bem com essa modalidade e cumprem aquilo a que se comprometem. Mas, em contrapartida, há muitas mais que veem na facilidade de poder comprar e usufruir de crédito, a oportunidade de dar o golpe, mentir, enganar e viver à conta de alguém. A palavra de honra já não existe e a honra é coisa do passado.                                                                                                   O mercado emergente e promissor dos caloteiros está em alta, pelo que é caso para perguntar: “Quem ainda não deu de caras com um na vida”? Se um caloteiro paga “milagrosamente” uma dívida é costume dizer-se que “caiu um Santo abaixo do altar”. Ora, já muitos Santos caíram e os muitos caloteiros que andam por aí continuam a dever! Tem gente que promete mundos e fundos, que vai pagar com o tempo …, mas, que se saiba, com o tempo não se paga nada, só com dinheiro.  O caloteiro pensa ou até diz mesmo ao credor: “Deus lhe pague”! E ele está a ser sincero, porque está a manifestar o desejo de que Deus nos pague o valor que ele nos deve. O “nosso problema” ficaria resolvido, porque o dele já estava resolvido por natureza – não pagar nunca. Até porque, para ele, “pagar e morrer, quanto mais tarde melhor”. Se bem que a sua regra é “nunca”. Só que, como o seu interesse é contrário ao interesse do credor, este passa a vida a correr atrás dele sem que veja sinal do dinheiro que lhe é devido. Daí que, como a justiça para estas coisas (e para muitas outras) não funciona, por vezes, precisa de usar meios alternativos para “sensibilizar” o caloteiro. E o mais eficaz tem sido a publicidade.                                                                                              Sim, o caloteiro não gosta que façam publicidade ao seu “bom nome”, pois quer sempre ser discreto na sua qualidade intrínseca de “mau pagador”. Foi o que fez o comerciante do Fundão quando afixou na montra do seu estabelecimento um cartaz a dizer: “Anda um vírus a invadir os nossos estabelecimentos comerciais, que é designado por “caloteiro”. Solicita-se a todos os lojistas que os denunciem publicamente”. E ao lado tinha a relação dos devedores há mais de 5 anos. Segundo ele, resultou muito bem porque o caloteiro “não gosta de publicidade”, nem gosta que lhe chamem caloteiro pois até acha que o retrato é injusto. Porque ele é sempre justo, mesmo quando reconhece não ser “exemplar”.                                                           Presumo que não sirvo para ser senhorio, pois tenho tendência para atrair caloteiros. Será que a culpa é minha por ser tolerante e tentar compreender as dificuldades, reais ou inventadas, dos inquilinos? Ou o mal estará nos inquilinos incumpridores que, em geral, no mercado de arrendamento, são uma percentagem significativa? Se rebobinar o filme dos caloteiros tenho de reconhecer que há vários sinais comuns a todos, a começar por rapidamente deixarem de atender o telemóvel e não devolverem a chamada. Mas tal habilidade ou antes, “esperteza saloia”, é fácil de tornear usando outro telemóvel que não o nosso. Aí, “apanhados com o pé no ar”, geralmente têm duas saídas: que não podem falar porque estão numa reunião, ocupados, que devolverão a chamada de seguida (o que nunca fazem) ou marcam logo a hora e o local para o dia seguinte pois já têm o dinheiro para pagar as rendas em falta (e não aparecem), embora afirmem perentoriamente, que “as dívidas são para se pagar”.                                                                       Arrendei um armazém a dois irmãos, sendo que o mais velho é que “vendia o peixe”, conhecendo “meio-mundo e mais alguém” e tinham obras executadas e para executar de grandes montantes. Conclusão, dinheiro não era problema. Pagaram muito certinhos as primeiras rendas, mas cedo “começaram a arrastar a fala”, até se irem embora com uma dívida de 17.750,00 €. Aceitaram mesmo fazer a declaração de dívida formal, com assinaturas reconhecidas para pagar numas quantas prestações. Não recebi uma única, não tinham nada em seu nome e, como qualquer bom caloteiro, “colocavam a honestidade acima de tudo. A deles”. Mas nunca me pagaram. E o mais curioso da história é que o mais velho, um ou dois anos depois, “teve a lata” de vir porta dentro do escritório a pedir-me 50.000,00 € emprestados para “entrar num negócio excelente” e, por via disso, seria a forma de eu poder vir a receber o dinheiro que ele me devia. Nem sei como não atendi o pedido! Hoje ele seria um “caloteiro reincidente” e eu tolo, como no ditado: “À primeira cai qualquer, à segunda quem é tolo”.         Com a desculpa da pandemia, da guerra na Ucrânia e da inflação, os caloteiros profissionais têm novos argumentos reais para mentir já que, como dizia o poeta António Aleixo, “p’ra mentira ser segura/e atingir profundidade/tem de trazer à mistura/qualquer coisa de verdade”. E esses agentes do não pagar, uma profissão em crescendo e para quem as licenciaturas são uma mais-valia na “arte de pregar o calote”, que vivem em grande estilo e enriquecem à conta dos outros ou do estado (ou seja, de todos nós), até parece que têm a justiça do seu lado quando o credor se convence que, através dela, vai reaver o que lhe pertence. “Santa inocência”, que ainda acredita no pai natal. E o drama ainda é maior quando, no seu desvario, através de falências fraudulentas ou outras artes de esconder o dinheiro (dos outros) em nome da família ou amigos, prejudicam terceiros e arrastam para a falência real os que precisavam do que lhes era devido para satisfazer os seus compromissos. E, como só os credores têm vergonha, embora para pedir o que é seu, os caloteiros passeiam-se por aí em grande estilo e exibem o dinheiro, dos outros, como se fosse seu.                       Como o calote é um ramo promissor da sociedade, só falta inventar as consultoras no assunto. Um dia destes os maiores caloteiros do país, onde se destacam Joe Berardo, Filipe Vieira e outros, serão chamados para ministrar cursos na arte de “pregar o calote”, já que se não pode dizer “roubar”, e ensinar as estratégias e novas especialidades para se ser um bom “caloteiro”. E clientela não vai faltar …

Políticos e política … partidos!

Desde já e para que não fiquem dúvidas, confesso que considero a política uma atividade nobre, daquelas em que uma pessoa se dá aos outros, mas quando é exercida como um serviço em prol do bem da comunidade, pondo sempre o interesse comum acima dos interesses pessoais e até dos partidos. No entanto, sendo a política uma missão tão dura e exigente, quase um verdadeiro sacerdócio, quando observo a corrida muito interessada de tantas pessoas aos cargos políticos, sinceramente, desconfio e não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública e, muito menos, ao serviço do bem comum. Será mesmo caso para perguntar quais os interesses, que incompetências, que privilégios, que vantagens, que compadrios, que benefícios, que benesses, subvenções ou vaidades põe essa gente a correr tanto!                                                                                                       Tive a resposta de um homem que já passou pela “jota” de um partido. Disse-me ele, sem papas na língua, que quando estava na faculdade foi assediado no sentido de se filiar num partido e, como não estava para aí virado respondeu negativamente, tendo ouvido o que não esperaria da boca do “angariador”: “Não sejas estúpido e se queres ter o futuro garantido, inscreve-te, pois podes ter a certeza de que terás emprego e ajudas que não terás de outra forma”. Com tal “empurrão”, e como não era estúpido, tornou-se militante da “juventude” desse partido e os resultados que os “angariadores” lhe “venderam”, recebeu-os em dobro. Hoje, afastado da política, confessa ter sido esta o “trampolim” certo para alcançar a excelente posição que tem na vida. E que é ali na faculdade que os partidos procuram “arregimentar” militantes com promessas de acessos privilegiados e uma carreira na política, dita “ao serviço da causa pública” …                                                                                                                              Hoje os profissionais da política são normalmente oriundos das jotas partidárias, pessoas que abandonaram (ou não conseguiram, sequer, começar a exercer) outras atividades. Raramente chegaram a ter uma profissão em que se realizassem enquanto cidadãos e muitos só têm emprego quando o partido está no poder. Alguns até abandonaram (ou não conseguiram concluir) a formação académica para abraçar a profissão de político. Ao que parece, há mesmo quem não esconda a aversão a qualquer forma de trabalho. Esta realidade gera o chamado “carreirismo político”, uma situação em que o objetivo principal do envolvido é a defesa do seu interesse pessoal de chegar o mais longe e mais alto possível. O que verdadeiramente lhe interessa é a carreira profissional. Mal começa a dar os primeiros passos na “arte”, rápido aprende todas as técnicas de um bom “alpinista da política” e, veja-se, do sucesso: trepar por cima dos outros, intrigas, assaltos ao poder, cotoveladas, jogos de bastidores, traições, conspirações, etc,. Na hora própria, não há amigos ou só os de conveniência. E quando chegam a adultos não sabem fazer mais nada, porque, na verdade, nunca foram nem fizeram outra coisa. Alguns até se gabam de terem começado na escola secundária, como se isso lhes confira algum atributo especial para o seu currículo ou vantagem competitiva. Na prática, muitos são os que nunca aprenderam verdadeiramente a “trabalhar”.                                                                                                                 Hoje, um dos grandes problemas da vida política portuguesa é o peso que nela têm esses carreiristas, pois secundarizam os interesses da comunidade e dos cidadãos, que dizem representar, em benefício dos próprios interesses e/ou dos partidos onde se abrigaram. Por isso, nas campanhas eleitorais prometem tudo e mais alguma coisa, mas depois de eleitos, depressa esquecem o compromisso com quem os elegeu de tão preocupados que estão a defender os seus interesses, a começar pelo “tacho” que não põem em causa por nada nem sequer por ninguém, e a servir não o povo, mas o partido a quem devem obediência, pois que, caso contrário, não voltarão a ser candidatos (e lá se iria a carreira política por água abaixo). É que o partido está acima da freguesia, do concelho e até do país. E basta olhar para este governo e perceber a quantidade de carreiristas sem competência a quem o país está entregue. A fatura paga-a o povo. Deus nos valha …                                  Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da coisa pública. E, em democracia, a responsabilidade é ainda maior. Tem razão o Papa Francisco em tudo aquilo que disse sobre isso. Embora se tenha referido só aos cristãos, o conselho serve perfeitamente para toda a gente, a começar pelos “aproveitadores”: “Envolver-se na política é uma obrigação para um cristão. Enquanto cristãos, não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos obrigação de nos envolver na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, dado que procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. É certo, a política está muito suja, mas eu pergunto: “Está suja porquê?” Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros… Mas o que é que eu faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão.”                   O conceituado político e diplomata americano Henry Kissinger dizia que “noventa por cento dos políticos dão aos dez por cento restantes uma péssima reputação”. Será que esta afirmação se ajusta à nossa realidade ou peca por defeito ou por excesso? É um facto que a classe política em Portugal não tem feito grande coisa pela sua reputação e o seu bom nome, pois basta-nos tudo o que temos visto e ouvido nos últimos tempos com os inúmeros exemplos de como não deveria ser um político, para perceber e ficar consciente que a sua credibilidade anda “pelas ruas da amargura”, o que os descredibiliza e faz com que as pessoas deixem de acreditar na política partidária e nos políticos. E além disso, por não sofrerem consequências pelos seus atos indignos, o que afasta os melhores para desempenhar cargos de poder e atrai os pilantras e golpistas. 

Enfim, estamos num país sem rumo, onde a ética é uma miragem, a corrupção uma instituição, o esquecimento um mal crónico de muitos governantes que nunca se lembram nada de nada, a honestidade uma coisa do passado, em que a competência e mérito são ignorados para dar lugar aos carreiristas da política e aos “boys”, a coladores de cartazes e caciques. Além disso, os partidos políticos, como detentores quase em exclusivo dos acessos ao poder e, consequentemente, aos “tachos”, não se inibem de os usar para premiar a militância dos seus “fregueses”, sem que importe para nada a competência para servir o país e os portugueses. 

E o drama é que vivemos acomodados e felizes a contar o pequeno subsídio que os políticos fazem questão de nos fazer crer que é uma cedência pessoal (pois só falta ser entregue em mão para se ter a certeza de quem é o benemérito), sem ver que antes já nos tinham ido ao bolso por via dos impostos, “sacar” muito mais …

As minhas viagens: A natureza no Brasil

Gosto muito de viajar e tenho de dar graças a Deus por todas aquelas viagens que me permitiu fazer e de que guardo boas recordações, muitas delas com a família toda ou só com os filhos quando a Luísa não estava disposta a fazer-nos companhia. Também fiz numerosas viagens com amigos, muitas por via da minha ligação ao desporto automóvel e à sua vertente internacional e, noutras, levado quase à força por amigos que me querem bem. Mas ficaram tantas outras por realizar e que gostaria muito de fazer? Claro que sim, pois a partir do momento em que a Luísa adoeceu, fiquei condicionado como bem se compreende. Mas não me lamento por isso pois, como costumo dizer, “tenho de dar graças a Deus pelo que tenho em vez de me lamentar pelo que não tenho”. Na vida, nunca teremos, nem devemos, ter tudo o que desejamos, até por uma questão de nos fazer descer à terra, dar valor a tudo o que dela recebemos e nos tornar mais humildes.

Para mim, viajar é conhecer e confrontarmo-nos com outras culturas, outros saberes, paisagens, gentes e realidades diferentes, que nos faz alargar horizontes, valorizar o muito que temos e de que estamos (quase) sempre a reclamar e poder ver e aprender outras coisas que são melhores do que aquilo que temos. A minha preferência vai para as viagens sem programa, sem horários, muito mais ao encontro e à descoberta da natureza do que propriamente a visitar monumentos ou grandes cidades só porque sim, com destino que poderá mudar ao longo da estrada embora na maior parte das viagens em família tive de me “sujeitar” à decisão de quem tinha “a última palavra a dizer”, por questões de mais comodidade e menos risco.

E lembrei-me desta coisa de “andar com a mochila às costas” porque, por acaso, dei comigo a rever as fotografias de uma viagem ao Brasil há seis anos atrás, num autêntico “mergulho” ao que aquele país tem de melhor para se visitar: a natureza. “Assediados” por uma família de brasileiros de quem somos amigos e que insistiam para irmos até lá, juntei-me à Teresa e ao Agostinho para viajar ao seu encontro em Maringá e com eles continuar a viagem à descoberta do Brasil. E o sô Marcílio, a esposa, a Luciana e o Daniel lá estavam para nos receber de braços abertos e fazer sentir que estávamos em casa.

No dia seguinte rumamos ao Pantanal, que só é a maior área alagada do planeta, em pleno Mato Grosso, para ficar alojados no Refúgio da Ilha, que não é propriamente uma pousada, mas uma fazenda que recebe pessoas de todo o mundo. Situado no delta do Salobra, é um lugar para curtir a natureza, relaxar e valorizar cada minuto. O local onde fica o Refúgio é perfeito. Uma ilha circundada por um rio de água cristalina onde se pode mergulhar. A diversidade das espécies é enorme. A fauna e flora dessa região pantanosa, é protegida, cuidada e celebrada pela família Copetti com uma visão ecológica perfeita. Um lugar magnífico onde tudo foi pensado ao pormenor, pelos homens e pela natureza. Como que a receber-nos, um papa-formigas especial surgiu no mato. Por ali andavam capivaras, jaguatiricas, tamanderás, ariranhas, araras de todos os tipos, papagaios e outras espécies. Os jacarés são imensos na região e nas lagoas junto ao Refúgio, até onde rastejam. E há a onça que fotografamos de perto dentro do rio à caça de jacarés. Uma experiência incrível num lugar e numa região a não perder. Efetivamente aquele refúgio é um local paradisíaco, uma maravilha para os amantes da natureza, uma terapia para desligar deste mundo agitado pela tranquilidade e paz que transmite.

Depois de nos despedirmos a contragosto do Pantanal, rumamos a sul para visitar a enorme Central Hidroelétrica de Itaipu junto do ponto onde confluem as fronteiras do Brasil, Argentina e Paraguai, tendo observado o fenómeno dos “sem terra” acampados junto à berma das estradas em preparação para invadir fazendas, conquistar terreno, roubar gado para comer. E fomos até à Foz do Iguaçu onde nos hospedamos, para visitar no dia seguinte as famosas Cataratas do Iguaçu, divididas entre a Argentina e o Brasil e integradas em dois parques enormes, um em cada país. Estas Cataratas são uma das maiores cachoeiras do mundo, com uma extensão de 2,7 quilómetros de comprimento, mais de 80 m de altura e com um conjunto de 275 quedas de água. A partir da entrada do parque, essa espantosa mancha verde de floresta subtropical considerada Património da humanidade, fomos transportados de autocarro até ao início das Cataratas. Seguiu-se uma longa caminhada pelo Trilho das Cataratas através da mata atlântica, à descoberta de cada queda de água, tendo sido confrontados com uma sucessão enorme que nos deixou cada vez mais encantados com o espetáculo maravilhoso das quedas e a sua dimensão impressionante, até à passarela em frente da Garganta do Diabo, a queda com maior fluxo destas Cataratas. Nesse trajeto, bordejando as Cataratas, existem uns quantos mirantes de onde se podem colher imagens espetaculares pois todas as quedas são muito fotogénicas. O passeio de bote Macuco Safari é o complemento ideal para os visitantes mais radicais, numa viagem pelo leito do rio Iguaçu até bem perto das quedas dos Três Mosqueteiros, dando para optar entre “com banho” ou “sem banho” e o mesmo é dizer com ou sem emoção. 

Como complemento da visita às Cataratas, também pudemos usufruir do enorme Parque das Aves, uma visita obrigatória para quem gosta destas coisas. É um parque temático com cerca de 1500 animais de 140 espécies diferentes entre aves, repteis e mamíferos. Está focado na conservação das aves lindas e exuberantes da Mata Atlântica. Um parque excelente, com muita vegetação e viveiros enormes onde se pode entrar, fotografar e conviver de muito perto com uma enorme variedade de aves exóticas, coloridas, bem-adaptadas e até mesmo à solta. 

Para mim que nasci e cresci a conviver com outras, foi mais uma excelente experiência até pela beleza irreal de algumas delas como os tucanos, araras, papagaios, periquitos e flamingos, para além de muitas outras de que nem sequer sei o nome, mas são parte desse mosaico multicolor. Tivemos ainda tempo para ir jantar à Argentina e visitar um centro comercial numa pequena cidade da Bolívia, além de comer uma piza portuguesa com bacalhau na Foz do Iguaçu.

Desta viagem ao Brasil, para além da excelente disposição do grupo de amigos de que fiz parte, ficou-me o enorme “banho de natureza” preservada no seu melhor, de uma beleza tal que nos enche a alma. E ficou-me a vontade de um dia poder repetir essa jornada … 

Como nas cebolas, os amigos vêm em camadas …

Ao olhar para trás, acho muito curiosa a forma como foram faseadas as minhas amizades, provavelmente o que sucede com a maioria das pessoas em função do seu percurso de vida como foi o meu caso. Até parece que fiz amigos por camadas, tal e qual numa cebola. Há uma sucessão de períodos, mais ou menos longos, onde em cada um criei um grupo de novos amigos. 

Foi na escola primária que fiz a primeira leva, umas vezes sentado em carteiras de madeira com tinteiro de tinta Pelikan e onde chegava a cana da Índia da professora quando nos queria vergastar nas orelhas, outras a correr pelos campos à descoberta dos ninhos de pássaros, da fruta ou em brincadeiras ingénuas. E desse grupo restam tão poucos! E, os que teimam em continuar por cá, já estão demasiado limitados pelas mazelas do tempo. Depois, foi no colégio Eça de Queirós, onde tive a felicidade e o privilégio de estudar, numa aposta esforçada dos meus pais, coisa que a maioria dos miúdos de então não teve. Desse bom tempo do colégio, ainda me sobra uma boa mão cheia de amigos, tendo confraternizado com alguns deles há poucos dias. E como é agradável e confortante o encontro com os amigos da adolescência, do recordar das memórias que ainda conseguimos relembrar, de nos rirmos de nós próprios e recontar os que nos faltam. A diferença de idades só se nota no espírito.

Tenho depois a malta da Escola Agrícola de Coimbra, um regimento que faço questão de mobilizar e manter relativamente unido há mais de trinta anos, com o “toque a reunir” para cada encontro anual, só interrompido pela pandemia e que este ano celebra seis décadas após a saída de Coimbra. Este grupo já se disseminou no país e além-fronteiras, especialmente por África, mas a distância não apagou as amizades que nasceram naquela Escola. Seguiu-se o tempo do serviço militar, com a experiência e vivência única de uma campanha no Ultramar. Só quem por lá passou pode compreender o quanto esse período nos aproximou uns dos outros, onde a amizade e solidariedade foram importantes para sobreviver à guerra e muito mais ao isolamento. Dessa vivência intensa ficaram bons amigos que fazem questão de almoçar mensalmente em grupo restrito e anualmente alargado aos demais, a comer leitão, javali, capão e outros pratos fortes para combater a hipertensão arterial, diabetes, alzheimer e as doenças cardiovasculares, já que não é pela comida que se elimina a surdez, quando deviam estar a fazer dieta. Os que ainda não esqueceram tudo, relembram histórias da guerra e dos seus intervalos, do ataque violentíssimo ao aquartelamento sito no meio do nada depois de nos irmos deitar e adormecer após uma sardinhada, coisa rara naquele recanto do mato, em Moçambique. Então, nós defendíamos a pátria e os outros eram os terroristas. Hoje a pátria é deles, nós somos os colonialistas. Como as coisas mudam. Mas guardo muito boas recordações desse período da minha vida, para além de um grupo de amigos que teima em manter-se unido até que um “tiro” do destino os vá abatendo, um a um.

O hóquei em campo deu-me outro grupo, unido pelo amadorismo de uma modalidade centrada nos grandes centros urbanos e exótica no interior. Um grupo tão pequeno, que até era preciso ir buscar alguns à cama para poder jogar … só com 8, o mínimo permitido. Ficaram as histórias de resistência, de empates sensacionais, da primeira vitória. O amadorismo era mesmo … amador. Já nos organismos e empresas onde trabalhei foram muito poucos os amigos ganhos, talvez por ter trabalhado quase sempre solitário. O mesmo não digo nas missões de voluntariado, começando na ACML onde as necessidades financeiras da associação me conduziram aos desportos motorizados, primeiro nas motos e depois nos automóveis. Mas os ciclos da vida levaram-me a criar o CAL, onde fiz parte de um grupo alargado, de gente que fez eventos espetaculares que marcaram uma época e que ficaram ligados entre si nas “corridas contra o tempo” que cada organização exigia. Foi lá que ganhei os tais “amigos das corridas” que colocaram Lousada no mapa e levaram o seu nome a todos os cantos do país e fora dele. Mas uns quantos já “abandonaram a corrida” muito antes do tempo que lhes era devido e merecido, empurrados “borda fora” numa das “curvas apertadas da vida”. Pois na vida como nas corridas, nunca se sabe até onde o “motor” aguenta e em que “volta” ou qual a “curva” onde algo nos atira “fora de pista” ou o “carro” para de vez e em definitivo. E eu desejava tanto que ainda se mantivessem nesta “corrida”, mas já nem sei se é a pensar neles ou, talvez por egoísmo, a pensar em mim. É que, sem eles, a “corrida” ficou sem graça … 

Seguiram-se os amigos pela Misericórdia, unidos numa mesma causa, no serviço aos doentes, aos idosos e às crianças. Enfim, a todos os que sofrem ou precisam de uma retaguarda neste mundo de abandonos. Mas, para além destes amigos de períodos diferentes, há aqueles que foram e são transversais a várias épocas, trazidos por outros amigos, porque “os amigos dos meus amigos, meus amigos são”. Ou vindos do acaso, isso que acontece a esmo, sem motivo ou explicação aparente. E foram muitos aqueles que conheci pelas razões mais diversas e que se tornaram parte do círculo de amigos em que me movo. Devo dizer que tenho de me penitenciar por nem sempre cultivar da forma mais conveniente o “jardim da amizade”, apesar de ir tentando. Dizem que os amigos são como as flores de um jardim. Se não cuidarmos delas, murcham e até podem morrer. É verdade que a partir de certa idade, mais psicológica que real, tendemos a ficar em casa com as desculpas mais esfarrapadas para não reunir com amigos, por um comodismo envelhecedor e não por razões concretas.

Ao falar dos amigos que temos e tivemos, não posso deixar de pensar na mensagem contida na letra da canção “A Lista”, do poeta e cantor Oswaldo Montenegro, que resume em poucas palavras o que na vida acontece à maioria das pessoas com uma vida mais ou menos longa: 

“Faça uma lista de grandes amigos/Quem você mais via há dez anos atrás/Quantos você ainda vê todo dia/Quantos você já não encontra mais/Faça uma lista dos sonhos que tinha/Quantos você desistiu de sonhar!/Quantos amores jurados pra sempre/Quantos você conseguiu preservar./Onde você ainda se reconhece/Na foto passada ou no espelho de agora?/Hoje é do jeito que achou que seria/Quantos amigos você jogou fora”?   

Esta letra vem-me relembrar que ao longo da vida também descartei uns quantos amigos, porque numa encruzilhada seguimos caminhos diferentes, agitando outras bandeiras, defendendo ideais antagónicos ou só porque nos afastamos mesmo sem razão alguma, numa perfeita estupidez. E, em alguns casos, ficou a saudade …