Ao olhar para trás, acho muito curiosa a forma como foram faseadas as minhas amizades, provavelmente o que sucede com a maioria das pessoas em função do seu percurso de vida como foi o meu caso. Até parece que fiz amigos por camadas, tal e qual numa cebola. Há uma sucessão de períodos, mais ou menos longos, onde em cada um criei um grupo de novos amigos.
Foi na escola primária que fiz a primeira leva, umas vezes sentado em carteiras de madeira com tinteiro de tinta Pelikan e onde chegava a cana da Índia da professora quando nos queria vergastar nas orelhas, outras a correr pelos campos à descoberta dos ninhos de pássaros, da fruta ou em brincadeiras ingénuas. E desse grupo restam tão poucos! E, os que teimam em continuar por cá, já estão demasiado limitados pelas mazelas do tempo. Depois, foi no colégio Eça de Queirós, onde tive a felicidade e o privilégio de estudar, numa aposta esforçada dos meus pais, coisa que a maioria dos miúdos de então não teve. Desse bom tempo do colégio, ainda me sobra uma boa mão cheia de amigos, tendo confraternizado com alguns deles há poucos dias. E como é agradável e confortante o encontro com os amigos da adolescência, do recordar das memórias que ainda conseguimos relembrar, de nos rirmos de nós próprios e recontar os que nos faltam. A diferença de idades só se nota no espírito.
Tenho depois a malta da Escola Agrícola de Coimbra, um regimento que faço questão de mobilizar e manter relativamente unido há mais de trinta anos, com o “toque a reunir” para cada encontro anual, só interrompido pela pandemia e que este ano celebra seis décadas após a saída de Coimbra. Este grupo já se disseminou no país e além-fronteiras, especialmente por África, mas a distância não apagou as amizades que nasceram naquela Escola. Seguiu-se o tempo do serviço militar, com a experiência e vivência única de uma campanha no Ultramar. Só quem por lá passou pode compreender o quanto esse período nos aproximou uns dos outros, onde a amizade e solidariedade foram importantes para sobreviver à guerra e muito mais ao isolamento. Dessa vivência intensa ficaram bons amigos que fazem questão de almoçar mensalmente em grupo restrito e anualmente alargado aos demais, a comer leitão, javali, capão e outros pratos fortes para combater a hipertensão arterial, diabetes, alzheimer e as doenças cardiovasculares, já que não é pela comida que se elimina a surdez, quando deviam estar a fazer dieta. Os que ainda não esqueceram tudo, relembram histórias da guerra e dos seus intervalos, do ataque violentíssimo ao aquartelamento sito no meio do nada depois de nos irmos deitar e adormecer após uma sardinhada, coisa rara naquele recanto do mato, em Moçambique. Então, nós defendíamos a pátria e os outros eram os terroristas. Hoje a pátria é deles, nós somos os colonialistas. Como as coisas mudam. Mas guardo muito boas recordações desse período da minha vida, para além de um grupo de amigos que teima em manter-se unido até que um “tiro” do destino os vá abatendo, um a um.
O hóquei em campo deu-me outro grupo, unido pelo amadorismo de uma modalidade centrada nos grandes centros urbanos e exótica no interior. Um grupo tão pequeno, que até era preciso ir buscar alguns à cama para poder jogar … só com 8, o mínimo permitido. Ficaram as histórias de resistência, de empates sensacionais, da primeira vitória. O amadorismo era mesmo … amador. Já nos organismos e empresas onde trabalhei foram muito poucos os amigos ganhos, talvez por ter trabalhado quase sempre solitário. O mesmo não digo nas missões de voluntariado, começando na ACML onde as necessidades financeiras da associação me conduziram aos desportos motorizados, primeiro nas motos e depois nos automóveis. Mas os ciclos da vida levaram-me a criar o CAL, onde fiz parte de um grupo alargado, de gente que fez eventos espetaculares que marcaram uma época e que ficaram ligados entre si nas “corridas contra o tempo” que cada organização exigia. Foi lá que ganhei os tais “amigos das corridas” que colocaram Lousada no mapa e levaram o seu nome a todos os cantos do país e fora dele. Mas uns quantos já “abandonaram a corrida” muito antes do tempo que lhes era devido e merecido, empurrados “borda fora” numa das “curvas apertadas da vida”. Pois na vida como nas corridas, nunca se sabe até onde o “motor” aguenta e em que “volta” ou qual a “curva” onde algo nos atira “fora de pista” ou o “carro” para de vez e em definitivo. E eu desejava tanto que ainda se mantivessem nesta “corrida”, mas já nem sei se é a pensar neles ou, talvez por egoísmo, a pensar em mim. É que, sem eles, a “corrida” ficou sem graça …
Seguiram-se os amigos pela Misericórdia, unidos numa mesma causa, no serviço aos doentes, aos idosos e às crianças. Enfim, a todos os que sofrem ou precisam de uma retaguarda neste mundo de abandonos. Mas, para além destes amigos de períodos diferentes, há aqueles que foram e são transversais a várias épocas, trazidos por outros amigos, porque “os amigos dos meus amigos, meus amigos são”. Ou vindos do acaso, isso que acontece a esmo, sem motivo ou explicação aparente. E foram muitos aqueles que conheci pelas razões mais diversas e que se tornaram parte do círculo de amigos em que me movo. Devo dizer que tenho de me penitenciar por nem sempre cultivar da forma mais conveniente o “jardim da amizade”, apesar de ir tentando. Dizem que os amigos são como as flores de um jardim. Se não cuidarmos delas, murcham e até podem morrer. É verdade que a partir de certa idade, mais psicológica que real, tendemos a ficar em casa com as desculpas mais esfarrapadas para não reunir com amigos, por um comodismo envelhecedor e não por razões concretas.
Ao falar dos amigos que temos e tivemos, não posso deixar de pensar na mensagem contida na letra da canção “A Lista”, do poeta e cantor Oswaldo Montenegro, que resume em poucas palavras o que na vida acontece à maioria das pessoas com uma vida mais ou menos longa:
“Faça uma lista de grandes amigos/Quem você mais via há dez anos atrás/Quantos você ainda vê todo dia/Quantos você já não encontra mais/Faça uma lista dos sonhos que tinha/Quantos você desistiu de sonhar!/Quantos amores jurados pra sempre/Quantos você conseguiu preservar./Onde você ainda se reconhece/Na foto passada ou no espelho de agora?/Hoje é do jeito que achou que seria/Quantos amigos você jogou fora”?
Esta letra vem-me relembrar que ao longo da vida também descartei uns quantos amigos, porque numa encruzilhada seguimos caminhos diferentes, agitando outras bandeiras, defendendo ideais antagónicos ou só porque nos afastamos mesmo sem razão alguma, numa perfeita estupidez. E, em alguns casos, ficou a saudade …