Galinheiros, galinhas e outros…

Já não há galinheiros como os de antigamente, onde tudo era natural. Era natural serem barracos improvisados, mal cheirosos, com rede velha e “caca” por todo o lado. Era natural terem galinhas grandes e gordas, a porem ovos quando lhes apetecia e onde lhes apetecia (à vizinha da minha mãe um dia entrou-lhe casa dentro uma galinha que já não via há vários dias, seguida por uma dúzia de pintainhos. Tinha feito um “ninheiro” no monte, atrás da casa, onde foi pondo os ovos que chocou, até nascerem os pintainhos). Era natural comerem do que havia, desde couves, restos de comida, grão de milho partido (o grão inteiro era bem preciso para fazer a broa de milho caseira) e, em especial, minhocas, sementes e outros bichitos. Ora, era natural terem liberdade total. E era natural haver um galo de crista grande na capoeira (era o chefe; o felizardo, invejado pelo típico macho latino que sonha ter um lugar desses, de galo mor, onde possa ser o dono e único senhor da “galinhada e das frangas” … se bem que, em regra, “tem mais olhos que barriga”; servia de despertador da casa, embora cantasse a horas erradas; só tinha como missão “tratar” das galinhas para que os ovos saíssem “galados”, condição essencial para darem pintainhos no caso de serem postos a chocar). Era natural ainda que, ao fim do dia, se metessem os “bicos” na capoeira, bem fechados, para não serem comidos pela raposa ou pelo texugo, que andavam por perto.

Podia-se contar com “o ovo no cu da galinha”? Podia, pois a mulher da casa, para controlar a produção e saber quantos ovos ia ter nesse dia, enfiava o dedo no “tal buraco” e sabia de antemão se tinha ovo ou não. Com isso, evitava que pusessem o ovo em local desconhecido ou que alguém os recolhesse indevidamente. Também eu fiz algumas vezes essa “prospeção anal” com o meu pequeno dedo … Mas ficava uma dúvida na minha cabeça de criança inocente: se os ovos saíam cá para fora pelo mesmo buraco por onde também saíam as cagadelas das galinhas, como é que se formavam os ovos lá dentro? A partir da m. de galinha e de uma forma que eu não entendia? Como é que a m. se transformava em gema e clara? Ou havia algum canal lateral que entroncava no “tubo de esgoto” das galinhas, com sistema de “válvula de passagem” só para deixar sair o ovo? Era estranho. Se fosse num hospital nos dias de hoje, teria de haver um corredor de “sujos” e um outro corredor de “limpos”. Ora, cagadelas de galinha e ovos, teriam de ter “corredores” diferentes e separados. Mas, ali, não tinham.

Naquele tempo as galinhas tinham liberdade. Não sofriam qualquer tipo de pressão psicológica, nem física (para além da exercida pelo galo). Claro que, o seu final, era sempre como protagonista principal do assado no forno e da canja de galinha caseira. Mas essa liberdade acabou e hoje já (quase) não há galinheiros à moda antiga, onde as galinhas gozem de liberdade plena. Pelo contrário. São encafuadas em gaiolas apertadas, aos milhares, onde só comem ração, bebem água com medicação e … poem ovos. Liberdade? Nenhuma. Estão ali para produzir, produzir, produzir, a ritmo alucinante. Só comparável às operárias em linha de fábrica de confeções, confinadas a pequeno espaço. Estas têm a vantagem de lá estarem só oito horas, cinco dias da semana, enquanto as outras estão vinte e quatro sobre vinte e quatro. Bom, as galinhas têm a vantagem de poder olhar para o lado, cacarejar com as outras das gaiolas vizinhas sem que lhes chamem a atenção ou lhes “caia” um palavrão em cima. E não precisam de dar com o cotovelo no contador para marcar mais um ovo produzido. A gaiola está feita de tal forma que, ao cair o ovo, rebola acionando um marcador automático e entra no tapete rolante, que o leva quase até à boca do consumidor. Assim, automaticamente, os donos sabem quem produz e quem já não produz o suficiente para ficar no ativo. Mais ou menos como nas operárias… Só que, as galinhas consideradas improdutivas e inúteis, são produto descartável, vendidas “ao preço da uva mijona” a um qualquer galinheiro que, de porta em porta e nas feiras, as despacha rapidamente “ao preço da chuva”, como petisco em casa de pobre. Já as operárias com poucas “cotoveladas” no contador e daí, com baixa produção, também não deixam de ser “produto descartável”, não abatidas em matadouro, mas ao ativo, passando a integrar as legiões de reformados considerados inúteis ao sistema produtivo vigente, onde só vale quem produz…

Vem-me à memória os galinheiros de casa dos meus pais e da minha avó paterna, onde se “botavam” galinhas a chocar, criando ninhadas atrás de ninhadas. Aí se abrigavam à noite galinhas e galos, frangos e frangas, das intempéries, dos larápios, da raposa e outros animais. Mas não havia separação por sexos, como nos liceus e colégios de outrora e nos aviários de hoje. E tanto a mãe como a avó, conheciam bem cada galinha e davam conta se faltasse alguma. Agora, já não se “botam” galinhas a chocar. Dá trabalho, já não se usa. Compram-se os pintos num aviário, onde são “fabricados” aos milhares, como quem fabrica pás ou parafusos. E, “para adiantar serviço”, mandam-se vir com duas ou três semanas de idade, o que é meio caminho andado para quem tem pressa de ver os frangos criados. Já os ovos, é mais fácil apanhá-los na “ponta” do tal tapete rolante onde as “poedeiras” os largam, que fica precisamente nas estantes dos supermercados…

Se os pintos já nascem em aviários através de processos industriais, os seres humanos vão ter um futuro semelhante, mas muito mais avançado. Passarão a ser gerados só em “humanários”, os “aviários de humanos”, com milhares de “úteros artificiais” onde será possível manipular os genes e escolher as características de cada criança, a gosto.

São só vantagens. As mulheres não terão de “andar a empurrar o mundo para a frente” nem sofrer as dores de parto. E o sexo passa a ser só diversão. As regras serão: produzir somente por encomenda de casais “normais”, de lésbicas, gays ou do ministério da guerra; os “clientes” podem até querer com os seus genes pessoais, fornecendo óvulos e esperma, seus ou de ”um filho da mãe” qualquer; têm direito a escolher o sexo do “filho”; podem ainda selecionar a cor do cabelo e olhos; e até a raça; encomendar as qualidades físicas, se jogador de futebol (e o tipo, Ronaldo ou Messi), atleta de velocidade ou fundo, halterofilista ou remador; optar por cientista, político, banqueiro, militar, ladrão ou pirata (é possível ter várias coisas em simultâneo, como alguns dos “modelos” que já existem no mercado); marcá-lo com um sinal ou verruga, para o identificar à distância ou quando andar perdido; e se o querem parecido com o “papá”…

Mas há um pormenor importante, que vem ao encontro do desejo de muitos pais: a partir do momento que o “filho” for dado como “pronto e parido”, podem decidir quando o querem levar para casa, se vai a tempo inteiro (o que é uma chatice, dá um trabalhão e não se ajusta à liberdade do casal) ou a tempo parcial. A liberdade será tal, que podem mesmo optar por um horário das três às cinco da tarde, ao domingo. SÓ e nada mais. É tempo mais que suficiente para dar a “voltinha dos tristes”, mostrar que têm um filho e que vai ser o futuro “Ronaldo”. Será um sucesso e um orgulho para os “progenitores” …

O verdadeiro perfume de Natal…

Cheira a Natal. Desde Novembro que se sentem os ares natalícios nas alterações da publicidade, nos sons, nas imagens, nas campanhas. Na televisão, em cada dez anúncios seis são muito “bem cheirosos”, pois promovem a venda de perfumes. Mulheres sofisticadas, vestidos arrojados, decotes longos, muito longos mesmo, para que se associe ao perfume a imagem de beleza e sensualidade de corpos jovens e bonitos. O mundo estoira sempre que ela bate com o tacão no chão, como se o perfume fosse um estoiro!!! É tempo de dar prendas e nada melhor que um perfume de marca. Mulheres desmaiam quando ele perfuma o corpo, não sei se pelo perfume se pela parte do corpo onde ele se perfuma. E as marcas competem entre si para ganharem a corrida às vendas através da melhor imagem, da que atrai e leva o espectador a tornar-se comprador. É neste jogo da publicidade que se ganha influência sobre o inconsciente do ser humano e se manipula. E a mulher são mais sensíveis. E eles sabem e aproveitam.

Cheira a Natal. Multiplica-se a publicidade aos chocolates, para um Natal mais doce, mais requintado, mais elegante, como se isso de elegância tivesse alguma coisa a ver com a qualidade do chocolate. “Ambrósio, apetecia-me algo”, é a deixa num deles. E cada um de nós tem de conhecer o requinte de um desejo.

Cheira a Natal. Por todo o lado ouvimos música com sinos e sinetas a repicarem e a perseguir-nos rua acima. E vemos árvores de Natal em plástico produzidas na China, cobertas de luzinhas tão sofisticadas, a piscarem, como se estivessem a piscar-nos o olho. E as iluminações natalícias nas ruas de maior concentração e poder do comércio, num apelo ao “venha comprar aqui as suas prendinhas de Natal”.

Cheira a Natal. Sobram bonecos do “Pai Natal”, como se represente o nosso Natal, como se fosse uma tradição nossa. Não passa de tradição importada da “estranja”, porque tudo o que é importado é que é bom e fixe. Feitos de plástica, madeira ou trapos, de barbas brancas e fatiota vermelha, enchem montras e vendem-se aos montes vindos, como sempre, da China. E até os há por aí, ao vivo e a cores, à entrada das lojas, a dar beijinhos às criancinhas e a tirarem “selfies”, como registo para a história do “espírito natalício” …

Cheira a Natal. E já se fala no peru, como se o peru fosse tradição. Que eu saiba, só se for para apanhar as migalhas debaixo da mesa. Por cá, não é, nem nunca foi. É mais uma, vinda do outro lado do mar. O peru começou a ser consumido nos Estados Unidos no Dia de Ação de Graças. E ali virou tradição. Mas importamos a ideia e tem-se vindo a infiltrar na Ceia de Natal, havendo já quem o ponha a substituir o bacalhau, como se este seja coisa do passado, ultrapassado, fora de moda. E negamos a nossa tradição.

Será que temos mesmo de nos “estrangeirar” para nos sentirmos tão bons como os outros? A riqueza de um povo está na sua cultura, nas suas tradições, na sua língua. E nós tendemos a recusá-las, como se tivéssemos vergonha de falar português, de sermos o que somos. Estamos a negar-nos enquanto povo com história, com passado, que deixou a sua pegada cultural por esse mundo fora e não foram muitos os que o fizeram como nós. E porquê recusarmos ser quem somos? Porquê negar o bacalhau e as rabanadas como nossa tradição natalícia? Porquê, querermos aculturar-nos?

Cheira a Natal. Porque se fala de solidariedade muito mais do que no resto do ano, como se a solidariedade fosse sazonal. E lembram-se os “sem abrigo”, os desprotegidos, os refugiados, os mais idosos, os que não vão ter Natal. Organizam-se almoços solidários, campanhas e angariações, festas e espetáculos, a puxar pelo espírito de Natal ou nele inspirados. É bom, melhor que nada, mas é tão pouco tempo, tão curto o Natal…

Cheira a Natal. Pelos centros comerciais passeia-se a euforia, a pressa de comprar as últimas prendas, muitas vezes perdidos por não saber o que oferecer, de que é que ela gosta ou não poder atender o pedido do filho. Nas últimas semanas antes dessa noite mágica, os centros comerciais são locais de alta concentração humana, não aconselhados a impacientes ou claustrofóbicos. As lojas são um sufoco para quem tem falta de ar, tanto nos pulmões como na carteira.

Cheira a Natal. Prepara-se uma refeição de dez pessoas que daria para um regimento. Como se fosse destinada a engordar porcos para a matança. Não se usa o bom senso, a contenção, a moderação. Natal não tem de ser sinónimo de orgia alimentar, de “enfarta brutos” nem de sobras que ninguém vai conseguir acabar antes do Carnaval. Já sabemos que o caixote do lixo vai esconder muito desses excessos. É o medo de que a comida não chegue, o querer ter um pouco de tudo.

Cheira a Natal. Apesar de tudo, é bom ser Natal. Ao menos lembramo-nos uma vez no ano dos que precisam, se bem que eles precisam o ano todo.

Cheira a Natal. Nessa noite de amor, junta-se a família à volta da mesa e em comunhão, quase sempre a única reunião do ano. Só por isso, o Natal já é um milagre. E apesar das derivas de uns e outros, das birras em partilhas e zangas de comadres, o Natal é o ponto de encontro, a resposta ao toque a reunir, o regresso a casa patrocinado por Ele.

Cheira a Natal. Mas esquecemos o essencial: o Protagonista do presépio e a sua mensagem. Perdidos no espetáculo comercial que montamos à volta do Natal, já nem sabemos verdadeiramente o que ele significa, o que é importante e o que representa. O Menino Jesus foi esquecido, ignorado, escondido entre as palhinhas da manjedoura. Até o presépio passou a ser palco de todo o tipo de figuras e figurões, numa miscelânea de épocas e desencontros de história, que remetem para segundo plano a essência do presépio e a figura do Menino. Já nem sabemos o porquê do Natal, perdidos no acessório. Não vamos encontrar nas caixas das prendas o espírito natalício, mas somente no nosso coração. Ao menos paremos para descobrir como a nossa vida é abençoada com a família e os amigos que temos.

Cheira a Natal. Saibamos ser capazes de secundarizar o folclore das prendas e dos gastos, para nos focarmos na Festa do Nascimento de Cristo e no seu significado. Porque é o momento de nos renovarmos, de recuperarmos o espírito da mensagem natalícia.

E então, sim. Sentiremos o verdadeiro perfume do Natal…

Afinal, nada adianta. Está tudo na cara…

O doutor Abílio Moreira foi meu médico e professor. Graças a ele, fiquei com o gosto pela matemática. Era bom médico, um excelente professor, um excecional ser humano e dele guardo muitas e boas recordações. Já com idade avançada, quando lhe dizia “o senhor doutor está com bom aspeto”, dava-me uma daquelas respostas que tinha sempre na ponta da língua e que lhe eram tão características: “Se eu sofresse do aspeto”!!!…

Ontem disseram-me que “eu estava com má cara”. Fiquei a pensar no que diria o doutor Abílio. Provavelmente, levantaria a dúvida se “estava com má cara” ou se “era mal encarado”. Ora, tendo em conta o que me disseram, coloquei-me diante do espelho para verificar se levava a cara que costumo usar no dia a dia ou se era emprestada por alguém com “má cara”. É que, normalmente, ando com “cara que se veja”. No entanto, não posso negar que passei mais de um ano sem falar com ninguém, sem dizer uma única palavra. É verdade, mais de um ano!!! Isso, sim, pode ser preocupante ou querer dizer alguma coisa…  Aconteceu durante o meu primeiro ano e tal de vida…

Há coisas que ouço algumas vezes e me deixam intrigado: “Estás com cara de caso”. Será que os “casos” têm cara para que a minha seja comparada à deles? Nunca conheci nenhum “caso”, melhor, nunca conheci nenhum “caso” com cara. Se ouvir dizer que “o Afonso teve um caso com a Miquelina”, qual é a cara do “caso”? Do Afonso e da Miquelina posso conhecer, mas do “caso” não, não lido com ele. Os advogados sim, tratam de casos, mas também não me parece que lhes conheçam a cara…

Diz-se que “o mal e o bem à cara vem”. Provavelmente, deve ser por isso que algumas vezes ficamos com “cara de parvos” diante de algo que nos deixa surpreendidos. Ou mesmo com “cara de burro quando foge”, apesar de não ser fácil ver a cara de um burro a fugir… Só não concordo quando me dizem mesmo, que “tenho cara de burro”. Não concordo, nem gosto. E, por mais que me olhe ao espelho, não vejo aquelas orelhas grandes e espetadas, nem sequer o característico focinho de burro.

No entanto, recordo-me que um “amigo da onça” me disse uma vez que “me ia partir o focinho”. Será que nesse dia levava focinho e não sabia? Nem o meu cabelo é assim parecido com o de um burro. Pelo contrário. Uso uma risca larga, muito larga até. E ao meio. O que me dá algum sossego, pois parece que está provado cientificamente, “não haver nenhum burro careca” …

Mas se há coisa que não consigo ver na cara de quem quer que seja, é quando dizem “tens cara de cu”. Miro e remiro e não noto parecenças, embora exista um fator comum: tanto uma como a outra cara, têm bochechas. Duas cada uma. Será daí que veem as semelhanças? Para mim, nem olhando de pernas para o ar… Mas há mais pessoas a ver coisas onde eu não as vejo. Por exemplo, quando conseguem “ler na cara como num livro aberto”. Até posso imaginar ali um livro e ainda admito que esteja aberto. Mas, ler? Não vejo nada escrito na testa ou nas “bochechas”. Como posso ler? No entanto, aceito que haja caras em que me é possível ver coisas, que me permitem tirar conclusões. Quando digo “és a cara do teu pai chapado”, é porque há traços no rosto que me levam a concluir de quem é filho. Isto é motivo para um pai ficar orgulhoso? Em princípio, sim, mas pode tornar-se um problema, se revelar aquilo que se quer manter em segredo…

Quando se tem cara bonita, dizemos que “tens cara que se veja”. No entanto, no caso inverso em que a cara não é nada apelativa, quase sempre para ferir a sensibilidade de quem anda com ela todos os dias, muda-se o discurso para “devias andar com a cara enfiada num saco”. Como se fosse grande feito dizer uma coisa destas “cara a cara”. Quem faz uma afirmação destas, provavelmente “não tem vergonha nenhuma na cara”. Apesar de que, também é caso para se perguntar, como é que se consegue detetar a vergonha na cara? Se eu fosse chamado à polícia para identificar entre meia dúzia de “melros” aqueles que têm ou não vergonha na cara, não conseguia.

Claro que caracterizamos as pessoas muito em função da cara e dos estereótipos. “Aquele tem cara de bom homem” ou então, “aquele tipo tem cara de ladrão”. Mas não passa de um juízo que muitas vezes não passa disso mesmo e não corresponde à realidade. Já não é a mesma coisa quando afirmamos “tens cara de sono”. Só o afirmamos porque o dono boceja com frequência (pode indiciar cansaço) ou precisa de uns palitos para manter os olhos abertos.

Trabalhei numa empresa onde um dos chefes andava sempre de sobrolho franzido, manifestamente com “cara de poucos amigos”. Um colega de trabalho gostava de o catalogar como “cara de pau”, tendo em conta de que era incapaz de um simples sorriso. Dizia-me ele: “É incapaz de sorrir porque a madeira não tem flexibilidade”. Um dia encontramos numa rua de Londres uma mulher vestida com “burka”, aquela roupa em que nem se consegue ver o rosto. Ele aproveitou logo para pôr em causa a minha teoria das caras e perguntou-me: “Como é que consegues ver que lhe está tudo na cara”?

O homem diz da sua mulher: “és muito cara”. Mas também se refere a algumas pessoas: “tens boa cara para apanhar um par de estalos”. E distribui elogios e apupos ao classificá-los com “cara de anjo” ou com “cara de demónio”, se bem que, como dizia um tio meu, “há caras para todos os gostos e feitios”.

Neste mundo de mil caras, dizem os especialistas em linguagem gestual que “está tudo na cara”. Todos nós somos de fácil leitura, pois transportamos para o rosto o bom e o mau, a alegria e a tristeza e, se os olhos são o espelho da alma, a cara é o reflexo das nossas emoções. Está lá tudo. Em muitas ocasiões tentamos encobrir o sentimento, a emoção, usando o sorriso como disfarce. Mas não é eficaz. Apesar do ditado dizer “que quem vê caras não vê corações”, como somos maus atores, continua a “estar lá tudo”. É só uma questão de estarmos bem atentos e saber “ler”. Porque somos humanos.

Afinal, parece que somos mesmo como um livro aberto…

“Acasos” agrícolas. E ainda bem…

Não perca mais tempo a procurar as causas do seu problema. Tem um grande “pneu” à volta da cintura? Anda com barriga de grávida sem o prazer de o ser? São simpáticos consigo quando lhe dizem que está “um pouco forte” em vez de dizerem que está gordo? Tem boa solução para tudo isso e nem precisa de fazer dietas, exercício diário ou tomar aqueles comprimidos para emagrecer que lhe fazem mal aos rins. O remédio é bem mais simples: ponha um adesivo na boca. Não coma tanto. É o seu mal … e o meu. Comer demais é o nosso problema. Não resistir quando nos oferecem mais uma fatia de carne, repetir os rojões ou comer outra fatia de bolo quando devia ter parado há muito ou comer o que ainda está na mesa, só para que não sobre. Por isso, tape a boca com um adesivo largo e deixe ficar só o buraquinho para poder beber líquidos e o “caldo” por uma palhinha (sopa, não, não é a mesma coisa…), e vai ver que, em pouco tempo, estará elegante como nunca esteve. Melhor do que se acompanhado por nutricionista consagrado. Esse, vai querer “negociar” consigo sobre o que deve ou não comer, quando, como e em que doses. Mas não está consigo para lhe evitar as tentações … vai dizer-lhe que tem de comer seis refeições por dia e, nas principais, metade do prato deve estar cheia de legumes. “Verduras, pode e deve comer muitas”. No dia em que o médico (e sobrinho) disse ao meu sogro que tinha de comer muitos legumes, ele respondeu-lhe: “Por este andar, qualquer dia tenho de aprender a pastar”.

Numa região da China onde uma grande percentagem de habitantes ultrapassa os cem anos, quiseram conhecer as razões de tão raro fenómeno. Perguntaram a um velho médico local qual era o segredo para tal longevidade e ele respondeu: “Comer pela metade, fazer exercício pelo dobro e rir pelo triplo”. Ora, como eu quero completar um século de vida e comemorar esse aniversário aqui em casa, com toda a família, incluindo a minha mãe, já comecei a treinar com base na teoria do médico chinês. Agora, só como metade nos dias em que não tenho apetite. É meio caminho andado… Também comecei a fazer exercício a dobrar: sempre que caminho, levo a minha cadela comigo (eu e ela, é exercício duplo). Rir a triplicar é o problema maior pois: Não convivo com palhaços, embora conheça alguns (mas não me fazem rir…). Tenho cócegas, mas não entro em programas onde se coçam uns aos outros. E também não consigo fazer como aquele homem que, sempre que viajava no comboio, ia o tempo todo a dar gargalhadas e, às vezes, desfazia-se a rir. Perguntaram-lhe um dia porque se ria assim e ele respondeu que, para se entreter na viagem, contava anedotas a si mesmo. “E quando se ri mais alto?”, quiseram saber. “Ah, isso é naquelas anedotas que eu ainda não conheço”.

Mas, para ajudar a controlar os “quilitos” que tenho a mais, sigo os conselhos de quem nos manda “pastar”. Se no quintal dos meus pais se cultivava a couve galega, couve nabiça, nabiças, cebolas, alhos, alfaces, tomates, nabos e pepinos, na minha pequena horta de vinte a trinta metros quadrados roubados ao pavimento, já tenho novos vegetais, que são “vendidos” como excelentes para a saúde e bons a diminuir o “pneu”. A Ana Maria inovou a minha horta ao trazer um chuchu. É uma trepadeira que se estende por tudo quanto é sítio. Quando começou a produzir, não o valorizei. Cá em casa usaram-no na sopa, substituindo a batata com vantagens. Produziu bastante. Congelou-se e distribuiu-se por amigos e família. Este ano plantaram-se mais dois pés e, como o tempo foi favorável, treparam pelas estacas, passaram à rede e chegaram às árvores. Havia chuchus por todo o lado. Quis saber como o consumir e fiquei surpreendido: excelente vegetal com baixo teor de calorias, rico em água, em fibra dietética, vitaminas, minerais e antioxidantes. Ideal para quem quer perder peso. E eu quero. Usei em diversos pratos e, para além da sopa, está aprovado em todos os assados, substituindo muito bem a batata no todo ou em parte. Vale a pena. E a produção deste ano? Uma loucura. Comemos, congelamos, distribuímos e ainda tenho seis caixas cheias, para além dos que estão por colher. Em tão poucos pés, colhi quase quinhentos quilos… Sem tratamentos, sem cuidados especiais.

Além do chuchu, também a salsa, o espinafre e o “tomate cereja” me tomaram conta de todos os bocados de terreno. Até nos vasos, entre as flores. E, mais ou menos na mesma ocasião, deu-se cá outro acaso. Nasceu no “quintal” uma planta desconhecida, que viria a tornar-se um belo arbusto. Floriu e as flores deram lugar a pequenos “balões” que, ao amadurecerem, pareciam miniaturas de “balões de S. João”. Lá dentro, um pequeno fruto alaranjado, muito semelhante a um tomate. Chama-se “Physalis”, que em português se diz “fisalis”, também conhecido por “tomate de capucho” ou “saco de bode”. Já vira estes “balões” à venda no supermercado, sempre metidos em embalagem de plástico e a preço pouco convidativo, a tal ponto que nunca ganhei coragem para experimentar. É considerado um dos frutos mais completos, sendo muito rico em vitaminas, proteínas e minerais. É ainda considerada uma planta medicinal para diversos fins (interessante para diabéticos). Atrás da primeira planta, muitas outras têm nascido, não requerendo cuidados. Fiquei cliente e recomendo.

Tanto o “chuchu” como o “fisalis” foram dois “acasos” felizes, pois têm contribuído, tanto para a minha sanidade alimentar como até económica. Não dão trabalho, não exigem cuidados especiais, se bem que se tornaram especiais para mim. Com tais “ajudas”, até me sinto obrigado a acabar com o “pneu”.

Como previa o meu sogro, já aprendi a “pastar”. Só me falta pôr o tal adesivo largo na boca, com o buraquinho para a palhinha. E sugar o caldo com chuchu…

Fui ao bruxo, para conhecer o futuro

Há dias acordei ansioso, querendo conhecer o que nos está reservado para o futuro. Não para conhecer antecipadamente os números do euromilhões, algo em que “ninguém está interessado”, mas somente aquelas coisas que são parte da nossa vida comum, como saber onde guardar o dinheiro (se é que ainda existe dinheiro e algum local seguro…), quem vai ser o campeão nacional (e não importa de quê) ou até onde vai a seleção portuguesa no próximo mundial, agora que carrega o “fardo” de ser campeã da Europa. Mas, a adivinhação tem muito que se lhe diga e só está acessível a cartomantes, astrólogos e bruxos. Ora, como não sou nem uma coisa nem outra (tanto quanto sei…), como “não tenho morada aberta” nem quaisquer “ligações ao além”, apesar de tentar fazer algumas previsões, “ainda não dei uma para a caixa”, nem sequer numa rifa foleira.

Tendo sido criado num tempo em que, desses três “dotados” com tais “dons”, só havia bruxos, achei por bem recorrer aos serviços de um, até porque segui o velho dito popular de que “não acredito em bruxas mas, que as há, há”. Confrontei-me logo com um problema: Como nunca fui um “utilizador” deste tipo de “ajudas”, tive de perguntar a pessoas que recorrem a elas com certa regularidade, gente essa bem “informada”.

Outrora, ouvia falar no “bruxo de Figueiras” e no “bruxo de Fafe”, mas não sei sequer se ainda “veem” o futuro ou se estão na reforma e já são coisa do “passado”. Daí o meu pedido de informação aos “clientes habituais”, com cartão de assiduidade e direito a pontos, como nos supermercados. Ora, isto não é tão fácil como eu pensava. Para me darem a informação correta, quiseram saber o que é que eu verdadeiramente pretendia. Perguntaram-me se andava à procura de “amor”. Se fosse o caso, tinham uma “receita caseira”, um método simples de bruxaria sem ter de ir ao bruxo (tal como os remédios que prescrevemos uns aos outros, como se fossemos médicos…), que implicava incenso de rosas, pétalas de rosas a decorar um altar, uma fita cor de rosa, a imagem de Vénus, papel e caneta. “Não, não é nada disso”, disse em tom firme. Então, o que eu pretendia era “rogar uma praga” ou fazer “um mau olhado” a alguém? Para não arranjar mais confusões, tive de os informar que somente queria saber “umas coisas” sobre o futuro.

Foi assim que acabaram por me “recomendar” um bruxo que vive isolado e muito longe, suficientemente longe para me dissuadir de ir lá apresentar qualquer reclamação no caso das suas previsões “saírem furadas”, inclusive de pedir a devolução do valor cobrado. Marcaram-me “consulta” e lá fui eu satisfazer esta necessidade que sentia em mim, acabando por sair satisfeito com o “serviço” que me prestou, apesar de se fazer pagar antes e bem.

Esta coisa de “ir ao bruxo”, apesar de já não ser o que era, é algo que se faz, mas que não se confessa. Não faltava mais nada. Olha se o povo soubesse que aquele fulano vai ao bruxo? Seria motivo de cochichos e conversas de esquina. Mas, na verdade, há muito mais gente do que pensamos a recorrer aos seus serviços. É que, diz-se, quem precisa recorre a tudo. Na doença, começa-se pelo médico, depois o endireita (agora medicinas alternativas), além da “mulher com morada aberta” e, esgotadas as opções sem que o mal esteja resolvido, alguém sugere a cartomante, o astrólogo e o bruxo, para não falar no espiritismo. E, por fim, o exorcista. E não se diga que quem lá vai não tem formação cultural nem condição económica. Puro engano. Vão lá de todas as condições sociais, unidos por um fator comum: Todos carregam um problema para resolver. Dinheiro, negócio, saúde física e psíquica, amor, conflitos com alguém, são os motivos mais comuns para quem procura o bruxo (e eu nem sou bruxo).

Ora, como as “previsões” da minha ida virtual ao bruxo podem ser do interesse dos leitores, não quero deixar de as partilhar neste jornal, para os manter a par de informações de tão doutos visionários. Recomendo que a sua leitura deve ser feita na companhia de outras pessoas porque as revelações poderão “chocar” os espíritos mais sensíveis. Vá lá, chame a vizinha e deem a mão, mas não se aproveite para “apertar” com ela. Assim, vamos às previsões:

“Tanto o Tondela como o Arouca, não serão campeões esta época”. Ora, uma previsão deste tipo é realmente chocante para os habitantes das duas cidades.

“Não há corrupção em Portugal”. O homem vai acertar na “mucha”… Todos os processos contra cidadãos que, por acaso, e só mesmo por acaso, passaram a ter uma vida muito boa de repente, vão cair de maduros. Isto só vem provar o que eles afirmam: São inocentes e até vítimas do zelo da polícia e de juízes invejosos, que gostariam de ganhar tanto como eles, sem ter de se esfalfar a julgar montanhas de processos. Não têm culpa de ganhar tanta “massa” com facilidade. Saibamos “aprender” com eles, pois são “autênticos profissionais” …

“Neste mês de Dezembro, há Natal”. Não conseguiu prever com exatidão o dia pois, no momento em que o ia fazer, deu um espirro monumental e fiquei sem saber se foi provocado pelo frio ou por alguma alergia ao pó que se acumulava em cima da mesa…

“Os portugueses vão ter um futuro mais amargo”. Que visão. Será que foi por isso (previsão) que o governo “azedou” os impostos sobre o açúcar e produtos açucarados?

“Quem gastar mais do que ganha, tem de ir às poupanças ou fica a dever”. Ora, nesta é que eu não acredito, nem nenhum português. Porque, o que nos andaram a dizer nas últimas quatro décadas, foi precisamente o contrário: “Gastem, como se não houvesse amanhã”.   

Quando contei a um amigo que tinha ido ao bruxo, a sua primeira reação foi: “E ele acertou”? Respondi instintivamente: “Se acertou… Foi mesmo em cheio!!! Antes de fazer as previsões, disse-me: -Passe-me cento e cinco euros da consulta. Ora, como é que ele sabia que era precisamente o dinheiro que eu tinha no bolso”???

Afinal, quem é dono de quem?

Ser dono da sua habitação, é o sonho da maioria dos portugueses. Eu incluído. E se puder ser uma moradia … É uma “tontice”, como tantas outras que nos passam pela cabeça ou, pior, que nunca de lá saem. Mas sonhar ser dono da sua própria habitação é assim tão estúpido? Não. Se for só sonhar, não é. Estúpido mesmo, é ser proprietário, “suposto dono”. Sim porque, a partir do momento que tal acontece, pensamos que somos “donos”. E eu disse “pensamos”.

Depois de casar, fui viver para um apartamento arrendado. O “dono” mandou-o pintar antes de me entregar as chaves. A meu cargo, ficou a mobília para a cozinha, um quarto e parte da sala, tal como os eletrodomésticos que o “Guerrilha” me vendeu. Não havia dinheiro para mais. Os fornecedores montaram tudo. Trabalho meu, pouco. E pedi a ligação de eletricidade e água. Com o apartamento em si, não tive de me preocupar. Nem antes, nem depois. Se havia um problema, comunicava ao senhorio e este mandava compor. Não era comigo. Ele que se “desunhasse”. Mas, nesta vida nunca estamos satisfeitos com o que temos e, como qualquer bom estúpido, pensei construir a minha própria casa.

Sonhava com uma moradia, onde não tivesse de ouvir o vizinho de cima a puxar o autoclismo ou mesmo a “gemer” enquanto fazia força na sanita ou a vizinha do lado a “gemer”, mas por outras boas razões. Quando arranjei dinheiro para o terreno, comprei, paguei e fiquei tão “liso” como um pneu usado. E, como pensava que sabia alguma coisa de desenho de construção civil, fiz o projeto de uma casa, linda de morrer naquela fotografia da revista francesa de onde o copiei. Mas, quando um empreiteiro me deu o orçamento provisório, a “casa de sonho” ficou só no sonho. Nessa noite fiz um projeto mais “acessível” para uma bolsa vazia. Se agora é uma dor de cabeça mandar construir moradia, naquela época nem se fala. Como qualquer português que se preze, optei pelo orçamento mais baixo. O empreiteiro era da minha aldeia e, para me influenciar, “vendeu” as suas supostas qualidades de construtor ao meu pai, nesse tempo já cego e muito doente. Entreguei-lhe a obra porque não tive orçamento mais baixo e meti-me num rico sarilho e numa carga de trabalhos.

Seria penoso para quem lê esta crónica ter de seguir a “Via Sacra” que percorri durante a construção da moradia e que só terminou quando me consegui livrar de tal “feitor de casas”, antes sequer de a concluir. Ora, para abreviar, vamos dar a casa por concluída e passar adiante, para ver se tenho descanso. Engano, puro engano. Em primeiro lugar, tive de me esfalfar a trabalhar para pagar o que me emprestaram. Foi a “massa” toda. TODA. E quando me livrei desse encargo, meti-me a construir anexos, muros, e mais anexos, e jardim, e mais anexos… Trabalhei muito para arranjar dinheiro, mas também “dando o corpo ao manifesto” na construção dos muros e anexos, com a ajuda do senhor Teixeira, onde fiz de pedreiro, soldador, trolha, serralheiro, pintor e não sei quantos ofícios mais. E foram muitos os trabalhos, gastos, sacrifícios, consumições e problemas, que davam para um filme que “nunca mais tinha fim”. Igual às telenovelas onde estão sempre a inventar mais enredos, problemas, traições, zangas de namorados, faltas ao casamento e tudo o que der para prolongar a sanha, numa “história interminável”.

Se quisermos ser realistas, somos pouco “donos” da nossa casa, mas muito escravos dela. Quantos de nós não tivemos de fazer enormes sacrifícios para a construir, abdicando de tantas coisas? Certo é que, depois de pronta, quando o nosso “Ego” está satisfeito, vem o estado “dizer-nos” que temos de “pagar renda”, pela casa que pensávamos ser nossa. Afinal, é nossa ou do estado? Se temos de pagar “renda” a alguém (e o estado chama à “renda” IMMI), quem é o “dono”? Para além dessa “renda”, ainda temos de investir constantemente sempre que o tubo rebenta, entope a fossa, entra água no telhado, a parede está rachada. E alguns investem mais para dar satisfação ao sonho antigo de ter uma piscina … Custa um dinheirão, mas ficam de bem consigo (atenção: fui burro, mas não cheguei a tanto). E o estado agradece, aumentando a “renda” … Mas não era suposto sermos só “donos”? Se a casa for do senhorio, ele que pague. O problema é dele. Mas, se nós formos tidos por “donos”, quem é que “está à pega”? Nós. Pagamos e não bufamos.

Também pensamos que, ao construir uma casa grande, vamos gozar a vida melhor, com os filhos… Eu disse filhos? Enquanto estão no berço, talvez. Estão por perto. Mas, mal crescem (e crescem muito depressa, talvez devido às vitaminas, à poluição, às hormonas e às alterações climáticas…), descobrimos que estamos sós, os velhos, a viver numa parte da casa porque o resto, já sobra. Mas continuamos a pagar “renda” da casa toda … “Ah, mas assim vamos deixar um património para os filhos, uma casa para viverem”, dirão alguns. Como? Para eles morarem? Só se não tiverem mais para onde ir. Caso contrário, não vão querer um casarão e vai ser um problema nas partilhas entre eles. O habitual. Se os pais que já partiram tivessem permissão para vir do “Além” corrigir um único erro dos muitos que fizeram em vida, é certo e sabido que, na grande maioria, desfaziam-se dos bens, a começar pela casa de família. Evitariam desavenças familiares e partilhas pela via judicial.

Cá por mim, há muito que perdi as ilusões e deixei de me considerar “dono” da minha casa. De maneira nenhuma. Não fui, não sou, nunca serei. Porque acho mesmo que “ela”, a casa, é que é dona de mim. De tal forma que, um dia destes, sem me pedir opinião, “despacha-me para o Além” e troca-me por outro “dono”. E eu não tenho direito a ter opinião, a reclamar e dizer que não quero ir, que eu ainda mando. Porque não é verdade. Eu vou e ela fica por cá, já com outro “pateta” a pensar, tal como eu o fiz, que é o “dono”. Como se fôssemos “donos” de alguma coisa…

Como andamos enganados. E iludidos!!!

Um americano foi à Índia ouvir os conselhos de um “Guru”. Ao entrar na sua casa, encontrou-o sentado numa esteira. Não havia mobília. Estranhando, perguntou ao “guru”: “Onde estão os seus móveis”? Mas ele respondeu-lhe com outra pergunta: “E onde estão os seus”? O americano, sem hesitar, disse: “Mas eu estou aqui de passagem”. E o indiano (e homem sábio), rematou a conversa: “Também eu”.

Não o calamos? Haja quem o faça…

O que se consegue fazer com este pequeno aparelho que os homens trazem sempre no bolso e as mulheres na carteira, é impressionante. Ao ver as inúmeras capacidades dum telemóvel, agora na versão “smartphone”, dou comigo a pensar que sou do “tempo da Idade da Pedra”. Só pode. Os muito poucos telefones que existiam na minha infância cá na terra, eram uma novidade. Para se telefonar, dava-se à manivela para chamar a telefonista que estava no edifício dos CTT na Vila e pedia-se a ligação para o número pretendido. Ela estabelecia a conexão de um telefone com o outro, enfiando a cavilha da extensão da uma linha no ponto de ligação do número pedido. Tudo manual. Por isso, estar agora sentado no meio da serra e poder fazer uma ligação direta para o meu filho na Colômbia, com imagem, é algo de surreal. Para quem veio de uma sociedade agrícola e com rudimentos de tecnologia, ainda parece inconcebível.

Também sou dos que andam com ele sempre enfiado no bolso das calças, com exceção dos fins de semana em que fica a “dormir” na sala. Estou (quase) sempre “on”. É bom? Não, não é. Apesar da utilidade, já tenho idade para ter juízo e usar o “animal” só mesmo quando é preciso. No entanto, ainda penso que os filhos podem precisar de mim ou tenha de resolver alguma coisa com urgência. Uma mania como outra qualquer. Se fosse à cinquenta anos, em que as comunicações à distância eram quase só por carta, resolviam-se os assuntos à mesma.

Hoje, o telemóvel faz parte da própria identidade da pessoa, havendo quem sofra e se sinta desconfortável sempre que não o tem à mão. “É como se estivesse nu”, dizia um jovem adolescente. Daí o problema que as escolas têm com o seu uso no espaço escolar. E não deve ser nada fácil conciliar posições tão divergentes sobre o proibir ou ser permitido em tal espaço. Mas existem muitas situações onde, das duas uma: Ou não há respeito pelo lugar onde se está e pelas pessoas ou é-se muito distraído ou… burro. Porque não há outra explicação.

Estava numa missa fúnebre com a igreja repleta de gente, onde imperava um silêncio pesado, só interrompido pelas palavras do celebrante e pela resposta dos fieis. Quando o padre fez o sinal da cruz para dar início à celebração, no silêncio da igreja ouviu-se uma música roqueira saída de um telemóvel, algures no meio dos fieis. A música tocou quatro ou cinco vezes e a maioria dos presentes ficou sem saber se foi interrompida pelo dono do telemóvel ou se quem chamou se cansou de esperar. O padre fingiu não ouvir e continuou, enquanto ao meu lado um homem tirava o telemóvel do bolso e o colocava no silêncio. O toque do outro lembrou-lhe que não “calara” o seu e deveria ter servido de aviso para todos os presentes. Situação normal, que pode acontecer a qualquer um, embora não devesse acontecer… Um pouco antes do padre fazer a homilia, no fundo da igreja ouviu-se outro a tocar, desta vez com um toque clássico de telemóvel. Senti mais uma mexida entre algumas pessoas, talvez para desligar ou verificar se estava desligada a sua “caixa de ruído”. Durante o resto da missa, “só” tocaram mais três telemóveis. Quanto ao primeiro, até admito que houvesse um esquecimento ou distração, que não deveria ter existido. Vamos dar-lhe o benefício da dúvida. Mas os outros… Com franqueza, não podia acontecer. Ou são surdos – e nesse caso ficaram a saber que têm de ir ao otorrino fazer um exame de audiometria para confirmar se há necessidade de prótese auditiva – ou são irresponsáveis – e pensaram ser aceitável e normal deixar que o telemóvel tocasse num lugar daqueles e naquela cerimónia – ou já conseguiram ser promovidos a imbecis. Será que não ficaram sequer um pouco incomodados quando tocou o primeiro telemóvel? Não se deram conta do “incidente”? Ou acharão mesmo que os telemóveis são para ser usados, seja em que espaço for? Não era nada comigo e senti-me constrangido…

Mas já assisti a outra situação semelhante, mas mais embaraçosa. Quando o celebrante distribuía a comunhão e no momento em que um homem abria a boca para receber a hóstia, do seu bolso saiu o malfadado toque musical, em jeito de contestação. E ele ficou tão “encavacado”, que já não sabia se havia de receber a comunhão ou “cortar o pio” ao telemóvel que, teimosamente, continuava a “berrar” dentro do seu bolso. Confrangedor… é o mínimo que se pode dizer. Tenho de reconhecer que a dignidade tem estado do lado dos celebrantes. Em regra, não reagem ou, quando muito, suspendem por instantes a celebração, como que a dar tempo (e oportunidade) para o “infrator” tomar consciência e desligá-lo. Só numa ocasião houve reação verbal do padre. Com muita subtileza, disse que “este não é o melhor momento nem o melhor local para se atender o telemóvel. Por isso, recomenda-se que esteja no silêncio ou desligado”.

Mas o mesmo acontece em sessões solenes e cerimónias diversas, onde os aparelhos electrónicos não são convidados nem devem ter voz… mas têm. E quando não é conveniente. Não adianta, somos como somos. Na realidade não somos um bom exemplo no respeito pelos outros e pelo local onde estamos em certos momentos. Talvez porque o telemóvel esteja primeiro. É sagrado.

Só encontro uma saída para resolver estes incidentes. Por muito que nos custe, devemos ser tidos por irresponsáveis compulsivos e, por isso, ser tratados como tal. Assim, só colocando um equipamento técnico que bloqueie todas as comunicações dentro do espaço que se pretende livre de “intrusões” indesejadas será possível acabar de vez com elas. Senão, vem sempre a desculpa do “esqueci-me”, “pensava que estava no silêncio”, “estava à espera de uma mensagem”.

Diz o povo que, “para grandes males, grandes remédios”. E isto precisa de um remédio. E grande…

Quem decide o que compramos? Nós?

Sábado de tarde. Tive de ir a três supermercados cá da terra para comprar aquilo que desejava. E não enchi nenhum carrinho de compras. Eram só quatro artigos. Numa das superfícies comerciais encontrei o senhor João, que já não via há alguns anos, desde que se reformou. Entre cumprimentos, perguntar pela família e o que faz, fiquei a saber que vai lá três dias por semana, uma delas ao sábado. Para quê? Para ver os produtos em promoção e comprar o que lhe interessa. Mas só mesmo aquilo de que precisa. A reforma é pequena e tem de aproveitar os descontos para ir fazendo as compritas, conseguindo assim um abatimento na conta mensal. Mas não se deixa iludir nem entusiasmar. No entanto, observa isso noutras pessoas que conhece. “Não podem ver um desconto acima dos trinta e cinco por cento. Tentam-se logo, mesmo que seja uma coisa que não usam. Eu cá não embarco na publicidade. Tenho uma lista mensal e só vou comprando o que me falta. Nada mais”.

Os “shoppings” são tidos como as catedrais do consumo mas os supermercados não lhes ficam atrás. Para além dos produtos de consumo básico e essenciais, pouco a pouco foram alargando a oferta a outros artigos, muitos deles supérfluos mas que, posicionados em pontos estratégicos da loja e com preço promocional em grande destaque, acabam por ir parar à maioria dos carrinhos de compras. Não precisam daquilo mas “o preço é tão baixo, que vale a pena comprar. É uma oportunidade…”

O primeiro passo começa com os folhetos despejados nas caixas de correio em nossas casas, com regularidade semanal. Abri-los e dar-lhes uma vista de olhos, já é meio caminho andado para ceder à tentação. Se os lermos com cuidado, descobrimos a razão: Logo na capa do folheto, em letras grandes, anuncia “5 Super oportunidades. Desconto imediato de 50%”. E os artigos são interessantes… Já não falo nas outras frases de impacto: “Super Fim de Semana”, “Se encontrar mais barato, devolvemos a diferença”, “Só domingo, 50% em toda a loja” ou então “Preços à prova de qualquer comparação”. Alguns folhetos têm sequências bem conseguidas. Assim, na folha dos congelados dizem: “Aqui, os preços também estão congelados”. Na peixaria, “São preços baixos, sem espinhas”. No talho, “Os preços estão bem cortados”. Na perfumaria, “Cheira a preços baixos”. E na padaria, “Preços baixos são o pão nosso de cada dia”. Por outro lado, as fotografias e a apresentação dos produtos são atrativas. É assim que está lançada a semente da “necessidade”, ainda que falsa.

A segunda fase é na loja. Não se entra por qualquer lado. Tem de ser por “ali”. Se a intenção é comprar só um quilo de arroz, temos de atravessar a loja toda para o fazer. O arroz, como todos os bens de primeira necessidade, está ao fundo. Para lá chegar, passamos por um mar de “pechinchas”. Que nos querem impingir. (Quase) tudo o que não nos faz falta. “Olha que… E é tão barato. Vou aproveitar”. E vai para o carrinho das compras. Quando chega ao fundo da loja, já não há espaço para o pacote de arroz… Quem resiste ao “Mega preço”, ao “Super desconto” ou ao “Preço imperdível”? “Vejam lá que nem chega aos trinta euros” (o preço é de 29,99 €)!!!

A tudo isto, juntam-se os cartões, os descontos em cartão, os pontos acumulados, os selos, as mensagens para o telemóvel que arranjam mais “corredores” para a loja que a Maratona de Lisboa ou o anúncio de “ganhe um carro novo ao volante de um carrinho de compras”. É tentação a mais para um homem/mulher só…Como pode resistir? E para não falar na associação de descontos, e grandes, no sector de artigos de confecção ali mesmo ao lado, onde há muito que ver e comprar… E no sector dos eletrodomésticos… E nas bicicletas de montanha… E nas malas de viagem… E nos combustíveis…

Vivemos “acampados” na sociedade de consumo, onde o problema não está na capacidade de produção mas sim na dificuldade de venda. Capacidade produtiva não falta, daí haver excesso de produtos que é preciso escoar de qualquer jeito. “Compre três paga dois”. “Um custa 20 e dois 30”. “Compre uma caixa de seis garrafas, duas são de graça”. Tudo isto, para “impingir” mercadoria. E nós vamos carregando para casa e acumulando… lixo. Porque é aquilo que somos: Acumuladores de lixo.

Alguém dizia: “Na sociedade de consumo, o marketing e a publicidade são uma espécie de máquinas que abrem buracos em nós, as “falsas necessidades” que nos fazem tomar o desejo pela falta”. E acabamos por sentir a “falta” desses bens supérfluos como se fossem essenciais. E compramos, para tapar o “buraco”, a “necessidade desnecessária”. Quase sempre os produtos são “embelezados” pela publicidade, como sendo portadores do bem estar e da felicidade: “Compre e terá estatuto social”. “Compre e terá a mulher dos seus sonhos”. E nós até pensamos (se é que pensamos) ser verdade, que temos de comprar para nos sentir bem, porque é uma excelente oportunidade. E é… para quem vende.

Mais do que nunca, tal como o senhor João, cada um tem de criar as suas próprias defesas a esse assalto que a publicidade e o marketing fazem às nossas mentes, ao nosso inconsciente. Caso contrário, não passaremos de marionetes em “mãos” que nos manipulam, embora estando convencidos que somos livres de escolher o que queremos. Mas não somos…

Já tenho com quem caminhar…

O escritório, que a Teresa e o Luís “dirigem e onde eu, às vezes, até trabalho”, é um misto de empresa imobiliária com atividade na compra e venda de propriedades e de sede provisória da Associação Lousadanimal, para além de “família de acolhimento” da “Clarisse”, uma cadelita abandonada e maltratada por um energúmeno que a cegou intencionalmente. Ora, tendo no escritório a Teresa, elemento da direção da Associação, extremamente dedicada à causa e uma defensora acérrima dos direitos dos animais e da sua proteção, tinha a certeza que não iria passar muito tempo após a morte da minha cadela Diana sem que ela “sugerisse” ser a altura de adoptar um novo animal. Não podia esperar outra coisa, até porque a Associação que representa tenta promover a adopção de vários animais ainda sem dono e que estão entregues a “famílias de acolhimento”. E, diga-se de passagem, apesar do pouco tempo de existência e da falta de recursos, tem sido extraordinário e digno dos maiores elogios, o trabalho da instituição, bem visível nas cerca de duas centenas de adopções já concretizadas. É obra!!!

Pois bem. A Teresa deixou correr o tempo para que eu fizesse o luto da Diana e um dia disse-me: “Temos uma cadelita numa família de acolhimento, que recomendo lá para casa. Encontrava-se num estado miserável mas já está recuperada. É meiga, sossegada e muito afetiva. Acho que a devia levar por uns dias, à experiência”. Foi desta forma que começou o “filme” da vinda de um novo membro para o seio da nossa família que, transitoriamente, se chamou “Bela”, durante uns dias ainda deu pelo nome de “Pintas” e “Pintinhas” e acabaria por se vir a chamar “Becas”. Independentemente do nome, já estamos todos apaixonados por ela… Quem não ficaria? É de uma doçura fora do comum, afetuosa e com um olhar muito profundo. Só lhe falta falar… Mas não precisa, porque diz muito com o seu olhar… Começou a acompanhar-me nas caminhadas matinais ou, pensando melhor, arranjei alguém a quem posso fazer companhia… Porque é ela que, no entusiasmo do passeio, me puxa com força, como quem arrasta um peso morto. E só é “metade de um cão”… Eu explico: Pesa menos de metade da Diana, daí a “metade…”. De raça “Epagneul Breton”, com pelo curto, branco e muitas pintas castanhas no corpo todo (daí o nome Pintas).

Só mais tarde me contaram a história da “Becas”, ela também um animal abandonado. E é uma história que merece ser partilhada…

Terá sido um caçador que, provavelmente por achar que não era bom cão de caça, se quis ver livre dela. Para o efeito, amarrou-a com uma corda a um pinheiro no meio da mata e ali deixou abandonada. Ora, um animal abandonado, amarrado a uma árvore no meio do nada, sem comida nem água, só pode esperar uma coisa: Morrer. E com muito sofrimento… Mas ela não se entregou e lutou pela vida, até conseguir roer a corda que a amarrava e que lhe deixou marcas visíveis da luta que travou para se soltar do pinheiro. Quando foi recolhida, ainda trazia a “gravata” de corda, bem justa no pescoço… O curioso é que, depois de se soltar, não abandonou o local onde foi deixada pelo dono. Como um bom cão de caça, permaneceu firme à espera que “ele” a viesse buscar. Porque ela não sabia nem sabe que os homens fazem coisas que os cães não fazem: Traem quem neles confia, abandonam quem se lhes entrega e matam quem já não lhes serve. Enquanto durante o dia se mantinha no lugar onde fora atada, à noite ia de contentor em contentor junto às casas, à procura de comida, para regressar ao mesmo local e continuar a espera. E assim se manteve ao longo de dois anos até que, um acaso da sorte (e aqui pode-se verdadeiramente dizer que “há cães que têm sorte”…) a recuperou para a vida: Em Maio, a Farmácia Fonseca organizou uma caminhada em Lousada. Num ponto do percurso, já em Meinedo, alguns dos participantes desviaram-se do trilho e, ao atravessar um monte, encontraram duas cadelas num estado lastimável. Mãe e filha. Muito desnutridas e completamente parasitadas, “eram uma dor de alma”. A informação passou de imediato e nesse mesmo dia já lhe fizeram chegar comida e água para, de seguida, serem resgatadas por dois voluntários da Lousadanimal.

Recolhidas numa caixa, foram de imediato levadas a um Centro Veterinário, alimentadas e tratadas. Já depois de efetuada a sua recuperação, viriam a ficar numa família de acolhimento até há pouco tempo.

Ao longo dos dois anos que permaneceu naquele monte, teve quatro ninhadas que foram recolhidas por alguns dos moradores próximos, excepto uma das cadelitas da última gestação, a que a acompanhava quando foi encontrada, para quem a Associação já conseguiu família…

Hoje ainda lhe noto alguns medos, os fantasmas de uma vida à espera do dono que, afinal, a rejeitara. Mas depressa nos conquistou e está a adaptar-se e a tomar conta do seu espaço. E de nós…

É legítimo que qualquer pessoa, por um ou outro dos imponderáveis da vida, possa não ter condições para continuar a ter o seu cão. Sem problemas. Pode acontecer a qualquer um. Mas já é criminoso fazer o que o dono desta cadelita lhe fez. O que é que ele merecia se fosse identificado? Que se apresentasse queixa ao Ministério Público? Presumo que a lei e a pouca tradição judicial nestes casos iriam, na melhor das hipóteses, aplicar-lhe uma pequena multa. Por isso mesmo, o que a sociedade devia fazer era amarrá-lo ao mesmo pinheiro onde deixou a cadela, também sem comida, nem água, mas com açaime, para não roer a corda nem morder a quem passasse. E de mãos atadas atrás das costas, para não se poder coçar quando os parasitas o cobrissem e mordessem, como cobriram a cadelita.

Infelizmente, não é caso único. Todos os dias somos confrontados com este tipo de crimes, porque de crimes se tratam, sem que os seus mentores sofram as consequências, até porque a sociedade ainda pouco ou nada os penaliza. Mais ainda, fazem questão de passar esta “cultura” aos filhos, como sendo “educação a preservar”. Porque há impunidade. Por isso, rezemos para que acabe depressa…

É que os animais não podem continuar a ser vítimas de todo o tipo de crimes e esperar por uma justiça adiada…

Hoje sou catalão. E independentista

Hoje sou catalão. Catalão e independentista. E só não tenho a bandeira oficial da Catalunha, a “Estelada”, pendurada na janela ou num mastro do jardim porque, se a colocar, vão pensar que… sou adepto do Estoril. E não sou. Sou catalão por uma questão de princípio, mas também pelo respeito à Constituição Portuguesa e ao seu artigo 7, número 3: “Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão”. E diz-me a história que a Catalunha é uma nação, um povo com cultura e língua próprias, que sempre foram reprimidas de forma mais ou menos violenta pelo poder de Madrid. Como o fazem os poderes centrais, alegando a lei, mas não a democracia… E se a Catalunha não é uma nação independente há muito tempo, deve-se somente ao facto de ter sido traída pelos ingleses em 1714 (por aqueles que sempre se disseram nossos amigos e que de nós se aproveitaram…), faltando-lhe na hora da verdade…

Também o sou por solidariedade de português para catalão. É que, quando em 1640 nos revoltamos contra o domínio espanhol e foi restaurada a nossa independência, tal parece dever-se, e muito, à Catalunha, que também estava num processo semelhante. Castela terá enviado a maioria das suas tropas para lá, enfraquecendo a frente ocidental contra Portugal, o que nos permitiu recuperar a soberania. Hoje, como no passado, o autismo de Madrid ignora o grito de um povo, apesar da democracia… e usa a Constituição, a justiça e, sobretudo, a força bruta, que não faz mais do que ativar o incêndio do separatismo.

Mas, a luta do povo da Catalunha inspirou-me para dar alento a outros povos, a outras comunidades, algumas até dentro das nossas fronteiras.

É o caso do Algarve. Já há muito tempo se justifica a sua independência dos poderes de Lisboa, por muitas e boas razões, que qualquer português atento pode atestar. E eu atesto. Já têm língua própria. Pois é, todos sabemos que lá, (quase) só se fala o inglês. Ah, e um dialeto que é uma “algaraviada”. Em qualquer restaurante, seja “gourmet” ou uma tasca algarvia, somos brindados pelo empregado mais foleiro com um arrazoado em inglês. “Mas que raio se passa. Pensava que estava em Portugal…”, digo eu com os meus botões. Como se isso não bastasse, temos de ter em conta que os residentes são todos “estrangeiros de fora”, formando uma comunidade eclética (fica bem a palavra?) onde poucos portugueses encaixam. Algarvios de Portugal, muito poucos. Já só se veem no interior serrano, junto de jumentos, burros e do lince ibérico, para turista ver. Algo como as “reservas de índios” na América e noutras Américas do mundo…

Mas há mais razões. Houve tempos em que qualquer um de nós ia da sua terrinha ao Algarve sem ter de atravessar “fronteiras”, até porque os preços ali praticados estavam ao nosso alcance. Agora, até parece que lá, o euro tem metade do valor. É outro mundo. Aquilo já não é para o nossa carteira… Mais uma razão para haver cada vez menos portugueses. Nos hotéis, somos raros. Tão raros, que é mais fácil encontrar uma barata num hotel do que um português. Já não temos carteira para aquela vida… Ora, se já não somos capazes de comprar estadias curtas, morar lá está fora de questão. Em absoluto… E grande parte do património há muito tempo pertence a gente da “estranja”. Por isso, cá por mim, independência imediata. Pode ser que depois fique mais barato ir lá de férias. Nas promoções. E nos saldos. E, se formos, podemos exibir-nos e fazer inveja aos amigos, dizendo que fizemos férias no estrangeiro…

Do Alentejo, não tenho dúvidas. Já devia ser independente desde os tempos da reforma agrária, por razões menos abonatórias. Mas, nos dias de hoje, há algumas razões comuns ao Algarve. O Alqueva é dos espanhóis e os milhares de hectares de propriedades dedicadas ao cultivo de framboesas, são internacionais e trabalhadas por gente vinda dos quatro cantos do mundo. Sobreiros ainda há muitos, mas não votam (ou será que votam?). Está na moda, tem mais azeite, vinho e reformados. Pode tornar-se independente porque assim, quando contarmos anedotas sobre a lentidão dos alentejanos, estaremos a gozar com estrangeiros e não portugueses como nós.

Dos transmontanos, nem vale a pena falar. Desde que me conheço que os ouço dizer: “Para cá do Marão, mandam os que cá estão”. Que não precisam do resto do país até porque, se houver incêndios, ninguém lhes vai acudir. Se o não fizeram no centro do país, ali tão perto, como vão dar alguma ajuda lá, “para trás do sol posto”? E poderia falar de mais umas quantas regiões do país a quem é legítimo o direito (ou torto) à autodeterminação, ainda que não saibam o que fazer a seguir (mas esse é o desígnio de qualquer governo nacional…).

Mas tudo isto, para chegar a uma conclusão: Quero proclamar a independência da minha casa. Não quero estar mais sob a tutela de governos que me são estranhos e que só me metem a mão no bolso em nome de políticas desastrosas, sem que os conheça de lado nenhum (nem da televisão pois, quando aparecem, mudo de canal). Não quero estar mais dependente de políticos que têm o dever de assegurar a nossa segurança e deixam o país arder e dizem que nós, cidadãos, é que somos culpados. Nós e o passado. Que nos dizem que temos de criar meios de autodefesa e que se lamentam por não terem ido de férias (para ficarem a estorvar a Proteção Civil). E que não pedem desculpa, nem lamentam os mortos. São mortos, já não votam. Nem demitem os ministros incompetentes. Também são mortos, só que ainda não o sabem.

Por isso, quero proclamar a independência da minha casa e chegar a presidente. E ser chefe do governo do meu país, que é a minha casa, para assumir os méritos e as culpas, sem ter de esconder a incompetência e a falta de decoro, com desculpas para o não fazer.

Porque a culpa não pode morrer solteira…