O doutor Abílio Moreira foi meu médico e professor. Graças a ele, fiquei com o gosto pela matemática. Era bom médico, um excelente professor, um excecional ser humano e dele guardo muitas e boas recordações. Já com idade avançada, quando lhe dizia “o senhor doutor está com bom aspeto”, dava-me uma daquelas respostas que tinha sempre na ponta da língua e que lhe eram tão características: “Se eu sofresse do aspeto”!!!…
Ontem disseram-me que “eu estava com má cara”. Fiquei a pensar no que diria o doutor Abílio. Provavelmente, levantaria a dúvida se “estava com má cara” ou se “era mal encarado”. Ora, tendo em conta o que me disseram, coloquei-me diante do espelho para verificar se levava a cara que costumo usar no dia a dia ou se era emprestada por alguém com “má cara”. É que, normalmente, ando com “cara que se veja”. No entanto, não posso negar que passei mais de um ano sem falar com ninguém, sem dizer uma única palavra. É verdade, mais de um ano!!! Isso, sim, pode ser preocupante ou querer dizer alguma coisa… Aconteceu durante o meu primeiro ano e tal de vida…
Há coisas que ouço algumas vezes e me deixam intrigado: “Estás com cara de caso”. Será que os “casos” têm cara para que a minha seja comparada à deles? Nunca conheci nenhum “caso”, melhor, nunca conheci nenhum “caso” com cara. Se ouvir dizer que “o Afonso teve um caso com a Miquelina”, qual é a cara do “caso”? Do Afonso e da Miquelina posso conhecer, mas do “caso” não, não lido com ele. Os advogados sim, tratam de casos, mas também não me parece que lhes conheçam a cara…
Diz-se que “o mal e o bem à cara vem”. Provavelmente, deve ser por isso que algumas vezes ficamos com “cara de parvos” diante de algo que nos deixa surpreendidos. Ou mesmo com “cara de burro quando foge”, apesar de não ser fácil ver a cara de um burro a fugir… Só não concordo quando me dizem mesmo, que “tenho cara de burro”. Não concordo, nem gosto. E, por mais que me olhe ao espelho, não vejo aquelas orelhas grandes e espetadas, nem sequer o característico focinho de burro.
No entanto, recordo-me que um “amigo da onça” me disse uma vez que “me ia partir o focinho”. Será que nesse dia levava focinho e não sabia? Nem o meu cabelo é assim parecido com o de um burro. Pelo contrário. Uso uma risca larga, muito larga até. E ao meio. O que me dá algum sossego, pois parece que está provado cientificamente, “não haver nenhum burro careca” …
Mas se há coisa que não consigo ver na cara de quem quer que seja, é quando dizem “tens cara de cu”. Miro e remiro e não noto parecenças, embora exista um fator comum: tanto uma como a outra cara, têm bochechas. Duas cada uma. Será daí que veem as semelhanças? Para mim, nem olhando de pernas para o ar… Mas há mais pessoas a ver coisas onde eu não as vejo. Por exemplo, quando conseguem “ler na cara como num livro aberto”. Até posso imaginar ali um livro e ainda admito que esteja aberto. Mas, ler? Não vejo nada escrito na testa ou nas “bochechas”. Como posso ler? No entanto, aceito que haja caras em que me é possível ver coisas, que me permitem tirar conclusões. Quando digo “és a cara do teu pai chapado”, é porque há traços no rosto que me levam a concluir de quem é filho. Isto é motivo para um pai ficar orgulhoso? Em princípio, sim, mas pode tornar-se um problema, se revelar aquilo que se quer manter em segredo…
Quando se tem cara bonita, dizemos que “tens cara que se veja”. No entanto, no caso inverso em que a cara não é nada apelativa, quase sempre para ferir a sensibilidade de quem anda com ela todos os dias, muda-se o discurso para “devias andar com a cara enfiada num saco”. Como se fosse grande feito dizer uma coisa destas “cara a cara”. Quem faz uma afirmação destas, provavelmente “não tem vergonha nenhuma na cara”. Apesar de que, também é caso para se perguntar, como é que se consegue detetar a vergonha na cara? Se eu fosse chamado à polícia para identificar entre meia dúzia de “melros” aqueles que têm ou não vergonha na cara, não conseguia.
Claro que caracterizamos as pessoas muito em função da cara e dos estereótipos. “Aquele tem cara de bom homem” ou então, “aquele tipo tem cara de ladrão”. Mas não passa de um juízo que muitas vezes não passa disso mesmo e não corresponde à realidade. Já não é a mesma coisa quando afirmamos “tens cara de sono”. Só o afirmamos porque o dono boceja com frequência (pode indiciar cansaço) ou precisa de uns palitos para manter os olhos abertos.
Trabalhei numa empresa onde um dos chefes andava sempre de sobrolho franzido, manifestamente com “cara de poucos amigos”. Um colega de trabalho gostava de o catalogar como “cara de pau”, tendo em conta de que era incapaz de um simples sorriso. Dizia-me ele: “É incapaz de sorrir porque a madeira não tem flexibilidade”. Um dia encontramos numa rua de Londres uma mulher vestida com “burka”, aquela roupa em que nem se consegue ver o rosto. Ele aproveitou logo para pôr em causa a minha teoria das caras e perguntou-me: “Como é que consegues ver que lhe está tudo na cara”?
O homem diz da sua mulher: “és muito cara”. Mas também se refere a algumas pessoas: “tens boa cara para apanhar um par de estalos”. E distribui elogios e apupos ao classificá-los com “cara de anjo” ou com “cara de demónio”, se bem que, como dizia um tio meu, “há caras para todos os gostos e feitios”.
Neste mundo de mil caras, dizem os especialistas em linguagem gestual que “está tudo na cara”. Todos nós somos de fácil leitura, pois transportamos para o rosto o bom e o mau, a alegria e a tristeza e, se os olhos são o espelho da alma, a cara é o reflexo das nossas emoções. Está lá tudo. Em muitas ocasiões tentamos encobrir o sentimento, a emoção, usando o sorriso como disfarce. Mas não é eficaz. Apesar do ditado dizer “que quem vê caras não vê corações”, como somos maus atores, continua a “estar lá tudo”. É só uma questão de estarmos bem atentos e saber “ler”. Porque somos humanos.
Afinal, parece que somos mesmo como um livro aberto…