A evolução da retrete… (ou, da estrumeira à sala de banho)

Estava à dias sentado na sanita de uma casa de banho ultra moderna, com assento almofadado e tão macio que até me apetecia continuar ali para além do tempo necessário à função quando, face a tantos luxos para assentar o rabo, me vi a rever todo o tipo de instalações que conheci ao longo da vida, usadas para esse fim.

O rebobinar desse filme levou-me ao princípio, isto é, à infância, quando a maioria das casas da aldeia nem sequer tinha retrete. Só havia a “estrumeira”, um grande buraco feito em frente da porta da cozinha, cheio de fetos, pinho ou mato, e para onde se atirava tudo o que eram despejos, dejetos ou lixo. Ali eram feitas as necessidades de cada um dos moradores, diretamente na “estrumeira”, em pé ou agachado, ou indiretamente através do “penico”, que se usava debaixo da cama para utilização noturna.

Ao fim de alguns meses, normalmente a quando das sementeiras, a “estrumeira” era esvaziada, sendo o estrume utilizado como fertilizante orgânico no quintal da casa. E voltava a encher-se o buraco com fetos, pinho ou mato…

Na casa dos meus pais havia retrete, um espaço próprio fora da habitação mas com porta para o pátio e junto à porta da cozinha, o que já era tido como um privilégio. Lá estava aquela caixa de madeira com um buraco redondo, tapado por uma tampa com pega. Só tinha de levantar a tampa, sentar-me no buraco e “puxar”, sentindo as moscas e varejas a esvoaçar lá por baixo. E no final do serviço, dava-me ao luxo de me limpar a papel de jornal cortado aos bocados, coisa que só existia em muito poucas casas. Mas por ali, nunca consegui ler nada…

Na escola de Macieira, construída no Plano Centenário, já havia a sanita turca, uma que tem sítio para se colocarem os pés para nos agacharmos depois de descer as calças e tentar acertar no buraco estreito que está no chão, o que nem sempre acontecia. E até já tinha um cadeado para puxar o autoclismo, instalado lá no alto. Mas, quando fora da escola e na brincadeira no monte ou pelos campos, se a vontade chegava, era só procurar um qualquer recanto, fazer o serviço e limpar o dito com folhas de videira ou de couve, quando não com uma mão cheia de fetos (como são ásperos!!!…).

Já a estudar em Coimbra passei a dispor de sanitas em porcelana, mas sem tampa, “por razões higiénicas” diziam, desagradavelmente frias ao sentar. Encafuadas em cubículos estreitos, as paredes e porta estavam todas riscadas, com versos e todo o tipo de frases. A que me ficou gravada para memória futura dizia: “Neste lugar solitário, onde a vaidade se apaga, todo o fraco faz força e até o valente se c…”

No entretanto, as “estrumeiras” foram sendo substituídas por retretes colocadas num qualquer espaço exterior da casa, em geral no quintal, o que já era uma evolução.

O uso da sanita generalizou-se, democratizou-se, a retrete foi dando lugar ao WC, privado ou público, espaço de todo o tipo de leitura (não como quando o jornal era posto à frente do olho, nessa altura tinha outra função) e de escrita (nas paredes e portas)reveladoras do génio de grandes escritores e poetas, intelectuais que se terão perdido a “fazer força”. E, pela sua comodidade (e para matar o tempo de espera, que é variável de pessoa para pessoa), a sanita passou a ser um local privilegiado para ler o jornal, a revista ou o livro que se não quer perder, mesmo nesses momentos de “aperto”…

Com a melhoria das condições de vida a casa de banho passou a substituir o WC, uma designação mais abrangente, refletiva de um certo grau de desafogo financeiro, ainda mais expressivo nas salas de banho, sinal de opulência e prosperidade, crescendo em dimensão, na qualidade dos materiais de revestimentos (do azulejo ao mármore mais raro, da madeira ao cabedal), no tipo de louças sanitárias (das simples às mais rebuscadas ou até com assinatura).

As banheiras simples deram lugar aos jacúzis, que na maior parte dos casos ninguém usa mas que é bonito dizer que se tem. As casas de banho passaram assim a ser também uma exibição do luxo, da vaidade (e do dinheiro), apresentadas quase como monumentos à m……odernidade, um desperdício do vil metal ao querer-se que elas vão para além da sua função. Espalharam-se por toda a casa, muitas vezes em número superior ao dos quartos, prático para quem as usa, nada prático para quem as limpa.

Mas toda esta reflexão sobre a evolução da retrete, que foi mais extensa (embora nem sempre muito limpa…) mas que tive de resumir para a direção do jornal não me sanear, levou-me a uma questão que considero muito importante relativamente à nossa condição de seres humanos: Por mais rico ou poderoso que seja, por mais alto que suba ou mais longe que vá, por mais importante que se julgue ou mais arrogante que se mostre, todo o ser humano é colocado no mesmo nível quando sentado numa sanita, seja ela a estrumeira, a retrete, o WC, a casa de banho ou a sala de banho, numa posição de absoluta igualdade, independentemente da maior ou menor “força” que tenha de fazer, pela simples razão de que, QUANDO FAZEMOS, TODOS CHEIRAMOS IGUALMENTE MUITO MAL.

Sem uma única exceção… E será bom que nos lembremos disso, no dia a dia das nossas vidas, sobretudo quando temos a tentação de nos julgarmos superiores, diferentes ou “mais bem cheirosos” que os outros…

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