Só vemos o que eles querem

Ir à feira de Lousada nos anos cinquenta era entrar num mundo mágico, visto pelos olhos de uma criança. Para além de pequenas guloseimas, ficava encantado com os vendedores da banha da cobra e os propagandistas que começavam por atirar pentes ao povo para atrair a sua atenção, no meio de uma multiplicidade de sons e ruídos, pregões e chamadas pelo freguês.

Entre a multidão de compradores ou simples moçoilas – de cordão de ouro ao pescoço e faces rosadas (das papas quentes que comiam antes de irem para a feira atrair namorado) – eram os jogadores da “vermelhinha” que me despertavam mais curiosidade. Metido entre o círculo de homens à volta do jogador, ficava como que hipnotizado pela sua perícia a manusear as três cartas sobre o guarda chuva aberto e pousado no chão, tentando adivinhar onde estava a das pintas vermelhas. E se nas primeiras jogadas a descoberta era fácil e intuitiva, truque usado para convencer os basbaques de que era fácil ganhar, quando as apostas subiam ao nível pretendido a ilusão era tão bem feita que nunca acertava. Nem eu nem os “patos” que ali eram depenados.

Uma das formas que os ilusionistas usam para praticarem os seus truques é fazerem com que nos concentremos numa mão, como se fosse ali que tudo vai acontecer(focar a atenção), para fazerem o que pretendem com a outra, sem vermos nada. E foi isso que me aconteceu há dias.

Um miúdo chegou junto de mim e colocou-me o seguinte enigma: “Tu conduzes um autocarro, na primeira paragem entram 30 passageiros, na segunda entram 20 e saem 10, na terceira entram 10 e saem 5 e na quarta entram 5 e saem 8. Que idade tem o condutor?” A minha resposta foi tão rápida quanto a velocidade a que fiz as contas de cabeça: “42”, respondi eu. O miúdo deu uma gargalhada de quem apanhou um incauto: “Eu disse, Tu conduzes um autocarro…” Lembrei-me então de ter usado há uns anos atrás este estratagema, colocando a verdade à frente dos olhos para não ser vista. Eis a história.

Era diretor da ACML e tinha de organizar eventos diversos para angariar fundos . Para além das provas de perícia, o António Avelino convenceu-me a realizar também torneios de tiro aos pratos, prestando-se a dar-me apoio técnico e logístico para as provas.

Começamos por organizar um primeiro Torneio no campo de futebol de Lousada, de relativo sucesso financeiro, para a qual ele emprestou uma máquina de lançar pratos. Após o segundo torneio, aconselhou-me a comprar uma nova, tendo em conta que a que emprestara já avariara várias vezes e podia vir a ficar “pendurado” em plena prova.

Então fomos a Vigo, “onde as máquinas eram muito mais baratas” dizia ele. Acabamos por comprar uma por um bom preço no “El Corte Inglês” e regressamos em direção à fronteira depois de um almoço rápido. Colocou-se-nos então um problema: Como conseguir passar na alfândega? É que nessa época o controle fronteiriço era muito apertado e a guarda fiscal revistava tudo, não dando hipóteses de escapar. Paramos cerca de dois quilómetros antes da fronteira de Valença para pensar no que fazer. Sugeri então que a máquina deveria ser desmontada e as peças espalhadas no meio do furgão vazio em que viajamos, bem à vista, misturadas com as poucas ferramentas da viatura. Assim fizemos, mas ele fez questão de esconder a alavanca de armar a máquina debaixo do assento do condutor.

No controle fronteiriço o guarda fiscal mandou-nos sair e como dissemos que não tínhamos nada a declarar, revistou o furgão de ponta a ponta durante uns longos vinte minutos e… apanhou-nos. Foi assim que tive de pagar taxa e multa pela… … alavanca que ele descobrira debaixo do assento. É provável que a alavanca tenha sido importante neste caso pois serviu de “distração” , até porque esta é tida como uma forma elegante de controlar a atenção.

Se no jogador da “vermelhinha” é tudo uma questão de habilidade, onde o importante não é o que olhamos mas sim o que vemos (ou pensamos ver), já no caso da máquina confirmou-se que as pessoas são susceptíveis de cegueira por desatenção, neste caso por bloqueio ou focagem na alavanca debaixo do assento.

Os mágicos dominam perfeitamente a questão da atenção e sabem que o nosso cérebro só pode processar uma coisa de cada vez, por isso usam a cegueira por desatenção, isto é, a incapacidade de notar algo de inesperado quando a atenção está focada noutra coisa. Daí que muitas vezes não vemos algo que está mesmo à nossa frente. E ao pensar nisto, não deixo de me inquietar com a forma como as nossas vidas foram comandadas nas últimas décadas por “mágicos” de boas falas, ora mansas ora inflamadas, que nos distraíram com “palavreado barato e demagógico” enquanto faziam todo o tipo de “habilidades” diante dos nossos olhos, ao ponto de nos limparem a carteira, o emprego, os direitos e, pior… a própria esperança. E ao longo de todos estes anos, só vimos o que eles quiseram que víssemos…

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