Primavera, dos cantos e dos encantos

Estamos a meio de Maio e pensei que estávamos na Primavera, mas parece que me enganei. Lá fora chove que se farta e faz frio e, em diversos pontos do país, até cai neve. Isto vai lindo… Se eu fosse velho diria: ”O tempo já não é o que era, porque no meu tempo”… Mas não digo, até porque no meu tempo na Primavera eu estava mais preocupado com a mudança de brincadeiras, deixando de jogar ao “espeto” e ao “pica” para jogar o “peão”, a “bilharda”, ir às cerejas e aos ninhos de fisga no bolso.

Sempre foi a época do ano minha preferida, não só pelo rejuvenescer das árvores, pelas flores e, sobretudo, pelos pássaros, a quem me dedicava muito. E com a melhoria das condições climáticas, já tinha mais liberdade para percorrer campos e montes, um passatempo que me dava muito prazer.

Cedo aprendi a subir às árvores, copiando o jeito de uma rapariga que o fazia com extrema habilidade: A Ana, da Albertina (Albertina era a mãe), essa maria/rapaz que não teve tempo de ser menina por ter de ser responsável antes do tempo. A necessidade de quem nada tem e para quem o pouco já era muito, fez com que ela cedo fosse apanhar sacos de pinhas para acender o lume em casa dos pais e para vender, para o que ia quase todos os dias ao monte, quando muitos proprietários nem sequer deixavam apanhar as “tonas” dos eucaliptos ou o “pinho”. Envolvia as pernas num saco de serapilheira para se proteger da casca áspera dos pinheiros (e dos olhares indiscretos dos rapazes) e, com uma ligeireza invulgar, trepava até aos mais altos – e nessa altura havia-os bem grandes .

Enquanto ela subia à procura das pinhas, eu subia atrás dos ninhos de pega, do tamanho de um cesto, ou de rola, essa preguiçosa que põe tão poucos gravetos que ás vezes as ovas até caem pelos buracos, ou de gaio, esse pássaro de cores bonitas. E arrisquei a subir também a alguns em que os meus bracitos não conseguiam envolver todo o tronco, só o suficiente para cravar as mãos na casca e conseguir segurar-me. Aprendi a conviver com todos os pássaros da região, a conhecê-los bem e a conhecer-lhes os hábitos, o canto e até o voo.

Era um prazer descobrir os ninhos dos “chascos” no meio do mato, uma espécie de quebra cabeças, de encontrar um ninho de ferreirinho nos poços ou de poupa em casas velhas, feito de trampa.

Gostava de observar através da janela do meu quarto os bandos de pintassilgos com canários à mistura pendurados nos cosmos, as flores que a minha mãe semeava atrás de casa, ou localizar os ninhos de tantas outras aves como as toldeias nos carvalhos, os tanjarros nos pinheiros, as “cerejinhas” nas ramadas, os petos em buracos escavados nas árvores, das andorinhas, das lavercas, dos pintarroxos, dos piscos, etc., etc..

Se eram as carriças e os rouxinóis os mestres do canto, eram os melros que mais me atraíam. A sua coloração preta e o bico amarelo dão-lhes um ar de solenidade, mas a sua variedade de cantos, desde a fase do namoro, mais requintado e complexo, à fase em que já têm filhotes, um som quase gutural, permitia-me conhecer pormenores da sua evolução.

E era a partir da cerejeira da Emilinha “Séria”, onde iam apanhar os frutos mais maduros, que os seguia para descobrir o ninho algures num silvado ou entre os rebentos de um lodo. Não havendo dinheiro nem mercado para comprar aves exóticas, o melro era o pássaro mais criado em gaiolas (eu nunca o consegui fazer) e o Tónio “Riço”, o empregado da minha avó, era especialista nessa criação, chegando mesmo a ensinar um a assobiar a música do “Avé”, de Fátima.

Ao observar os ninhos, às vezes era surpreendido ao dar com um filhote diferente da ninhada, geralmente maior, Era o preguiçoso cuco que ia aos ninhos dos outros comer um dos ovos e pôr um seu, deixando a terceiros o trabalho de chocar e criar o seu sucessor. Já adulto, viria a descobrir que entre os humanos também existe essa prática de pôr ovo em ninho alheio…

Mas tudo isto porque há dias voltei a ouvir uma notícia que já ouvira por diversas vezes: A de crianças que desenham o frango conforme o veem no supermercado, porque não o conhecem vivo.

E isso levou-me a refletir nesta tristeza de educar crianças desligadas da natureza de que fazem parte. É curioso que até lhe serão familiares através da TV aves exóticas como o flamingo e outras, mas não sabem nada sobre as “vidas” das que as rodeiam, vidas de seres que embelezam o cenário do seu dia a dia e que fazem parte do seu mundo, aliás, seres que fazem parte do mesmo ecossistema a que elas próprias pertencem, mas que lhes são invisíveis. Mas pensando bem, porque é que me devo admirar se nós mesmos hoje já não conhecemos a maioria dos nossos vizinhos?

Acaba por confirmar-se que “santos da casa” continuam a “não fazer milagres”. Mas seria bom que nos lembrássemos de que “antes de querermos conhecer os outros, devemos começar por nós”, neste caso, pelo pequeno mundo que nos rodeia e do qual somos parte integrante.

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