A (in)gratidão: A herança rejeitada

A gratidão é o ato de reconhecimento a alguém de quem se recebeu um favor, uma ajuda, um benefício. É o não esquecer uma dívida para com outro e a forma de o demonstrar. Sendo fácil de compreender este sentimento tão nobre, torna-se raro executá-lo e retribui-lo pela vida fora.

Diz-se que a gratidão tem memória curta, que envelhece rapidamente e morre. Daí o ditado “O dia do benefício é a véspera da ingratidão”, completado com “Faz o bem e não olhes a quem”, filosofia acertada mas difícil de praticar pela fraqueza humana que olha mais para os interesses imediatos, o materialismo.

É verdade que a gratidão de alguns não passa de uma forma de continuar a receber favores, situando-se a meio caminho entre um favor recebido e um favor esperado. Pitigrilli dizia que “agradecidos são aqueles que ainda têm algo a pedir”. Já tive experiências do género e chegam a ser convincentes.

Quando pretendemos um favor parece-nos que não o esquecemos mais mas, quando o alcançamos, desaparece da nossa mente. É que a vaidade tem horror a tudo o que desperta lembrança da nossa indigência, pois aborrecemo-nos de quem nos faz bem porque ficou a saber das nossas necessidades. São poucos os que reconhecem que só se paga um benefício com outro ainda maior e que, quando não se pode pagar, ficaremos sempre a dever.

Quem faz um favor não pode ficar à espera de que lhe sejam gratos senão, “bem pode esperar sentado”. É que, se recolheres um cachorro faminto e lhe deres comida, água fresca e carinho, ele não te morderá, mas se o fizeres com os homens, não podes ter essa certeza. Nunca se agradece com tanto fervor como quando se espera um novo favor, pelo que os homens estimam-se não pelos favores que tenham prestado, mas pelos que possam vir a prestar. Daí o esquecimento, a desconsideração e a ingratidão por tantos que tanto deram, como é o caso dos aposentados, dos idosos e outros que já não podem ser úteis nem fazer mais jeitos.

Dizia Tácito que “os homens apressam-se mais a retribuir um dano que um benefício, porque a gratidão é um peso e a vingança um prazer”. Se é certo que quem recebe um favor não o deve esquecer, também quem o faz nunca o deve lembrar. O gesto de agradecimento está muito mais nos pobres e nos humildes enquanto a ingratidão é dos soberbos e ambiciosos.

Ser-se grato é uma virtude das almas boas, é uma medida do caráter de alguém com quem se pode contar e confiar, é um pouco de humildade que nos faz reconhecer o outro como parte da nossa alegria, sem bajulação, servilismo ou lisonjas.

O simples ato de dizer “Obrigado” a alguém pode ser importante, não só para essa pessoa como para quem o diz. E tão poucas vezes se diz essa palavra com o coração… Costumo dizer que tenho de dar graças a Deus pelo que tenho em vez de me lamentar pelo que não tenho. Apesar disso, não manifesto esse agradecimento vezes suficientes pelos bens que Ele me concede, mas recorro vezes demais à Sua bondade nos males que me afetam. Penso até que devemos estar-Lhe gratos por não nos dar tudo o que lhe pedimos.

A gratidão é prática que se recomenda até porque, não sendo natural no ser humano, precisa de ser cultivada, sobretudo entre os mais novos, na sua formação. A sua prática não tem contra indicações, dado que ser-se grato não é uma manifestação de submissão nem de inferioridade, pelo contrário, tem um toque de nobreza e de grandeza da alma. E ao longo da nossa viagem há tanta gente que nos deu a mão, matou a sede, nos levantou quando caímos, atos e gestos que tantas vezes olvidamos com sinais de ingratidão. De entre todos, os nossos pais são aqueles a quem mais devemos estar agradecidos em regra geral, pelos sacrifícios por que passaram para nos criar, educar e ajudar, abdicando de si mesmos para nos colocar sempre em primeiro lugar.

Por isso, de nós filhos exige-se respeito, carinho, reconhecimento e gratidão para com eles, muito especialmente na sua velhice, para compensar a debilidade física e mental. E que vemos nós? Pais espoliados pelos próprios filhos dos bens de uma vida e rejeitados ou abandonados à caridade; idosos recolhidos em instituições sociais mas esquecidos pelos seus, onde a verdadeira família passa a ser o pessoal do lar; falta de tempo para os velhos (se nem tempo têm para os filhos…); maus tratos físicos e psíquicos (mas não se esquecem de lhes ficar com o dinheiro da reforma…); vergonha da sua condição de humildes (mas a quem devem o ser “grandes”…); etc., etc..

Um dia disseram-me que “os filhos esperam receber sempre alguma coisa dos pais mas estes não podem esperar nada dos filhos”. Talvez por isso, a gratidão seja uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário (é a parte da herança que rejeitam). E se esquecem os pais em vida, com certeza não os esquecem na morte, aparecendo como necrófagos, sem vergonha nem remorsos, litigando pelos restos. E diz-se que a gratidão é a virtude das almas nobres e a memória do coração!!!… Quando o coração quer ter memória…

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