O último pudor…

Os pensadores do nosso tempo são claros: Os pudores do século XXI, de que somos herdeiros, deixaram de ser corporais e estão mais nos sentimentos. E há um em especial de que continuamos a ter muita dificuldade em falar, de encarar com naturalidade porque faz parte da vida de todos nós como seres vivos que somos: O da morte.

Ao longo dos últimos anos tenho observado mais de perto essa rejeição da morte como ponto de destino, a dificuldade em se falar dela, o pudor na sua abordagem.

Há momentos para viver mas também há momentos para morrer, uma lei da natureza e da vida. E quando esse momento é inevitável, importa olhá-lo com tranquilidade e tendo a preocupação de dar qualidade de vida ao doente retirando-lhe o sofrimento, esse sim, desnecessário, para que possa usufruir dos últimos dias com dignidade junto dos que o rodeiam.

Sei que é difícil ver partir alguém que amamos e estamos sempre com a esperança de um milagre para que se mantenha entre nós. E sei do que falo, porque perdi um irmão com 24 anos. Quando faleceu, o meu irmão António chegou junto de mim, deu-me um abraço e olhando-me nos olhos disse-me emocionado: “Hoje foi o Álvaro mas amanhã posso ser eu. Se isso me acontecer, quero que encares isso como um facto tão natural como foi o meu nascimento, que sigas em frente com a tua vida e que penses em mim como se eu estivesse vivo, porque eu continuarei contigo”.  Até parece que adivinhava o que vinha aí porque, pouco tempo depois e antes de completar os 33 anos de idade, morreu de forma fulminante.

Foi então o meu pai a dar-me ânimo, apesar de muito doente. No entanto, pouco tempo mais sobreviveu aos filhos, arrastando-se num sofrimento terrível nos últimos meses de vida, cego e com dores violentas, levando nesse martírio os que o rodeavam, especialmente a minha mãe.

A medicina evoluiu muito, ajudando-nos a aumentar a esperança de vida, que veio crescendo nas últimas décadas. E tal prolongamento quando acompanhado de qualidade de vida, é louvável e desejado, mas quando não faz mais do que manter o ser humano em estado vegetativo, artificialmente, sem esperança de coisa alguma, porque se recusa a possibilidade desse final inevitável, tantas vezes adiado sem sentido, sem humanidade e com tanto sofrimento?

É por isso que faço a apologia dos Cuidados Paliativos, um serviço de apoio às pessoas com doenças incuráveis, terminais ou em estado adiantado, cujos principais objetivos são prevenir e aliviar o sofrimento dos doentes e família, para que possam alcançar a melhor qualidade de vida possível. É a forma civilizada de atender estes doentes, em oposição à obsessão terapêutica e à eutanásia.

Hoje não estamos familiarizados com a morte, até porque a ideia de morte nos angustia e nos deixa indefesos. O que não se deseja é senti-la.

Quando alguém sabe que a sua doença é incurável, sente medo à dor. Mas há uma alternativa para a dor e para o medo, como também para o prolongamento artificial e inútil da vida do doente e essa alternativa passa pelos Cuidados Paliativos e pelos progressos conseguidos na última década no campo dos medicamentos para a dor. Mas para isso é essencial viver com a consciência certa de uma morte próxima, para usufruir dos últimos momentos da existência de uma maneira digna e plena.

Por tudo isso, a criação de uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital de Lousada seria um sonho que gostaria de um dia ver tornado realidade, embora essa realidade me diga no momento que o sonho tem de esperar, mas o sonho continuará.

É com vergonha e pudor, provavelmente o último grande pudor, que se fala da morte, tornada tabu, como se falar dela seja razão para a atrairmos. Temos de a encarar como  de algo que não desejamos mas que é inevitável, parte integrante da nossa condição de mortais. Ao encará-la com tranquilidade, estamos a criar a consciência de que devemos aos que lhe estão próximo o direito a um fim digno, humano, sem reservas nem sofrimento. E até porque ninguém merece estar só, muito menos morrer sozinho, sem o afago de uma mão amiga, sem o conforto da palavra de alguém.

E seria bom que na consciência de cada um não pesasse o estigma de ter prolongado o vale de sofrimento do ente querido para além do razoável, mas sim o alívio de sentir que tudo fez para que esses momentos fossem passados com serenidade e livres do sofrimento que ninguém quer. É que não é da morte que a maioria dos seres humanos tem medo, mas sim do sofrimento, sobretudo do sofrimento inútil e sem esperança.

E lembremo-nos sempre que a vida dos mortos permanecerá na memória dos vivos.

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