Quem tem coragem de se esquecer?

A dona do café estava muito surpreendida. Quase na hora de começar o jogo entre o Futebol Clube do Porto e o Liverpool para a Liga dos Campeões, o café continuava praticamente vazio. Ao contrário do que era habitual neste tipo de jogos, os clientes não apareceram. Desconhecendo a causa de tal debandada, comentou isso com uma colaboradora e amiga. E ela deu-lhe uma boa razão: “Hoje é o Dia dos Namorados. Tu achavas que os clientes tinham coragem de vir ver o futebol e deixar a namorada ou a mulher em casa, sem irem jantar fora? Desengana-te”. E, tirando um ou outro cliente mais idoso, certo é que a grande maioria de clientes habituais, não apareceu. O café ficou “às moscas”. Os que não gostam da equipa dos “dragões”, é natural argumentarem que os adeptos portistas já adivinham o “desastre” em casa e temiam apanhar uma “abada” como veio a acontecer, mas a realidade é que a razão foi mesmo a invocada pela amiga: “não podiam faltar ao compromisso, que implicava jantar fora com a namorada ou mulher. O resto, era conversa”.

Se recuarmos alguns anos atrás, o Dia de S. Valentim mais conhecido por Dia dos Namorados, era ignorado pela maioria da população e, tirando casos isolados de casais de namorados, passava despercebido ao comum do cidadão. Mas isso era há uns anos atrás. Agora entrou na moda sair e comemorar. Por isso, quem é que tem coragem de esquecer uma data destas? Ninguém. Melhor, nenhum homem.

Nós temos tendência para não dar importância a datas, esquecendo o aniversário da mulher, do casamento e da sogra, do dia em que conhecemos a cara metade, do dia da mulher e tantas outras que agora são tidas como datas importantes e têm de ser festejadas, doa a quem doer. E, entre essas datas, está o Dia dos Namorados. Quem é o homem que arrisca esquecer tal dia? Nenhum. Nem sequer os que são casados (e que na grande maioria já nada têm de namorados) se permitem correr o risco. Tal como a malta mais ou menos nova, têm de vestir a sua melhor “fatiota” para estar à altura da “toilete da madame” e ir jantar fora. No mínimo. Mas não pode ser a um sítio qualquer. Que é isso? “Ir comer àquele “restaurantezeco” da esquina? Não faltava mais nada”, diz a mulher ou a namorada.

E o homem, como macho convencido que quem manda lá em casa ou na sua relação é ele, tem sempre a última palavra: “Sim, querida. Vamos onde tu quiseres”. É que, nas “fofocas” com as vizinhas, quando uma mulher sabe que a outra vai ao restaurante X, ela decide logo que tem de ir jantar a uma quinta. Está-se a ver porquê…

Mas, há que ter em conta que é preciso reservar lugar “naquele” restaurante ou “naquela” quinta com muito tempo de antecedência, caso contrário, corre-se o risco de “bater com o nariz na porta” e ter de ir comer uma febra grelhada à Tia Maria ou um hambúrguer com maionese no MacDonalds e, mesmo nesses, esperando na “bicha”. E isso não ajuda nada ao “bom nome” do homem junto da mulher ou namorada. E estou a lembrar-me dos pais de uma pessoa amiga. Como o pai está a trabalhar no estrangeiro, quando veio gozar uns dias a Portugal, em cima da hora decidiram ir jantar fora. Mas era o Dia dos Namorados. Correram os restaurantes que conheciam e acabaram por jantar muito bem… em casa. Estavam todos esgotados. Por isso, é melhor fazer a reserva já para o próximo ano. Se até lá terminar com a relação, não se preocupe, pois pode servir-lhe para a relação seguinte ou mesmo ganhar alguns euros ao revender a sua reserva ao “desgraçado” que se tenha esquecido e esteja “à rasca” …

Mas se o homem pensa que levar a sua querida a jantar fora já é suficiente para o “manter em alta” na sua consideração, quem sabe com direito a “prémio” depois da janta, desengane-se. E o resto? Sim, o raminho de flores (e não pode ser um ramo qualquer)? Se não “andar da perna” e deixar a compra para a última hora, é certo e sabido que já não vai encontrar as rosas vermelhas de que ela tanto gosta e que são o símbolo do amor e da paixão. E depois? Oferece-lhe um ramo de cravos amarelos ou de jarros brancos? Mais valia pegar numa corda e enforcar-se, pendurado pela cintura (pelo pescoço não, porque lhe falta o ar …). E ficamos por aqui? “Alto e para o baile”. Há mais qualquer coisa. E a prenda? Sim, a prenda? Pode ser uma peça pessoal em ouro ou prata. Cai sempre bem e marca pontos junto da sua “mais que tudo”. Se a “massa” não sobrar muito depois de pagar o jantar, tem de saber escolher algo que permita um brilharete sem ultrapassar o orçamento. Como alternativa aos objetos pessoais, deve optar por uma dormida fora em hotel com spa. Pode acabar por ser um pouco mais caro, mas um dia não são dias e tem duas vantagens: por um lado, ela gosta (e vai a pensar nas massagens no spa) e por outro, o homem também gosta (e vai a pensar nas “massagens” noutro local, que não o spa…).

Na pressa dos dias, inventaram-se os dias com nomes para não haver pressas. E as empresas comerciais, através do marketing agressivo e da publicidade intensa, encarregaram-se de gravar a fogo na mente de todos nós, a imperiosidade de os comemorar condignamente. Ou não estejam elas interessadas no negócio que isso gera. É uma forma de escapar à pressão das rotinas diárias, que torna os dias iguais. E nisso, as mulheres estão aí para nos lembrar, quando algum de nós tem o atrevimento, a ousadia ou a coragem de se esquecer. É que, se o esquecermos, durante os próximos cem anos (se tanto durarmos) e nos momentos certos, vão cobrar-nos esse lapso de memória infeliz e atirar-nos à cara: “porque tu há cinquenta e dois anos, esqueceste-te de me levar a jantar fora no Dia” … É que elas nunca esquecem…

O cães “ladram” e a caravana…

Quando pela manhã consigo vencer a preguiça e arrastar o traseiro para fora da cama, visto o fato de treino, calço as sapatilhas (não percebo porque raio agora teimam em chamar-lhe “ténis”) e ponho um boné. A Becas, a minha nova cadelita, corre para mim com o rabo a abanar tanto que, qualquer dia, ainda se desaparafusa e cai. É a sua forma de exprimir alegria pelo passeio que se avizinha. E não acalma enquanto não lhe colocar a trela e caminhar para a porta da rua. Ao atravessar a soleira e dar os primeiros passos lá fora, a “sinfonia” começa de imediato, tocada pela “cãozoada” dos arredores: “Ão, ão, ão. Béu, béu, béu”. Gostava de saber como é que os cães, alguns deles distantes e em lugares de onde é impossível verem-nos, dão conta de que estamos a passear. Ou melhor, de que ela está a passear… E ao longo de toda a caminhada a cena repete-se constantemente, com cães grandes e pequenos, presos ou soltos, escondidos ou à vista, mais próximos ou mais distantes, todos a ladrar. Às vezes, até dou comigo a imaginar no que cada um estará a dizer, eventualmente em “conversa” com o cão vizinho porque, se for para ela, dá-se ao luxo de não lhes responder. Não sei se algum dos cães a cumprimenta com um “bom dia” ou “olá” ou se até tem o atrevimento de lhe atirar um piropo (que se cuide, pois ainda pode ser acusado de assédio sexual). Pela forma vigorosa e agressiva como alguns cães ladram, penso que as suas intenções não são nada simpáticas, postura de seguranças à entrada de discoteca. Calculo que os cães mais “convencidos”, talvez dececionados porque ela não lhes liga, vão dizendo entre dentes e rosnadelas para os que os rodeiam: “Esta cadela tem a mania e não nos liga nenhuma”. E “quem será esta meia-leca sarapintada”? Ou, num lamento latido, afirmam: “quem me dera poder também passear o meu dono, em vez de estar aqui amarrado o dia todo ao cadeado, sem água nem comida”. Há também os atrevidos, geralmente cães vadios, que se aproximam devagar para lhe cheirar o rabo, ladrar duas ou três vezes e urinar na parede mais próxima a marcar terreno. Chega a ser curioso observar os seus rituais, as reações com a cauda para cima (amistosa) ou para baixo (agressiva), o medo e a simpatia, a curiosidade e a indiferença. A Becas não se dá por achada. Só num ou outro caso é que se permite dar-lhes atenção, abanando a cauda de satisfeita. Caso contrário, cheira em volta e, em resposta, também “marca terreno”, urinando.

Tudo isto não será muito diferente do comportamento dos seres humanos… Basta passearmos na rua e vemos logo que temos muito em comum, embora com procedimentos diferentes. Se homens ou mulheres passam na via pública, especialmente em meios pequenos como o nosso, como é que reagem as outras pessoas à sua passagem? “Ladram” também, não da mesma forma que o fazem os cães, mas à maneira humana.

Em regra, os cães são mais “transparentes”, pois exteriorizam bem alto a sua “fala”. Nós “ladramos” em surdina para alguém que esteja ao nosso lado, disfarçadamente, para os visados não nos ouvirem. Na minha (in)capacidade de tradução das “falas” caninas, os seus “comentários” à passagem da Becas são muito de regozijo por ela estar em liberdade, sinal de solidariedade canina, do que de inveja ou fofoca sobre a sua vida privada.

Ora, já o mesmo não se poderá dizer do “latido” dos humanos ao verem outro humano a circular na rua. Em regra, são muito mais críticos que simpáticos. Se for mulher, que passou a andar bem vestida, é algo assim: “Como é que esta gaja arranja dinheiro para andar tão bem arriada, se só ganha o salário mínimo? Há moiro na costa…” Ou algo como “já viste o corte de cabelo daquele? É tão ridículo…” E, “não sei de que é que este fulano vive”. Quando o visado é homem, pode ser: “este tipo comprou carro novo, mas não paga o que me deve”. Ou “vejam lá aquele senhor, com a posição social que tem e anda tão mal vestido”. Pior ainda, se um homem passa três vezes em frente da casa de uma mulher, mesmo que por acaso: “Aquele anda a rondar a porta da Maria. Aqui há gato” …

Para além disso, ao contrário dos cães que só ladram enquanto sentem a presença do outro cão, nós ficamos a “ladrar” do visado muito para além da sua passagem. E a duração do “corta e cose” só depende de ter ou não quem faça coro e alimente a conversa. Fala-se do que se vê e do que se não vê, do que se sabe e muito mais daquilo que se não sabe. Num ápice, conta-se a vida do transeunte mesmo que, de facto, nem se conheça. Relatam-se os locais onde se viu, o que disse, se sorriu ou chorou, com quem estava, o que fez e, com algum jeito, o que estava a pensar.

Os cães são frontais. Se não gostam, ladram. Se têm medo, ladram. Se estão contentes, ladram. E ladram sempre, sem subterfúgios, sem disfarces, sem alibis. Nós não. Temos dificuldade em ser diretos, em assumir os comentários que fazemos. Por isso, falamos escondidos atrás da vidraça, do balcão ou do muro, quase sempre baixinho e “à boca pequena”. “Ladramos pelas costas”, muitas vezes sem saber de quê e porquê. A necessidade imperiosa que temos de “desenferrujar a língua”, “de morder pela calada”, “de cortar na casaca” dos outros, põe-nos a matraca a dar, a dar.

Para quem passa “na caravana”, tem de agir como a minha cadelita: Levantar a cabeça e seguir em frente, sem dar importância ao ladrar da “cãozoada”, nem valorizar os cochichos e olhares indiscretos.

Os cães só cheiram o cu dos outros para os identificar. Porque é pelo cheiro que os reconhecem. Nós, não. Tentamos “cheirar” quem passa para saber da sua vida e “meter o nariz onde não somos chamados”.

Mesmo que seja no mesmo sítio onde os cães cheiram os cães…

 

Só com sacrifício e muito trabalho é possível realizar os sonhos…

Não sou dos que tem horror a chefes. Nunca tive qualquer complexo em relação a quem mandava em mim, porque sempre pensei que é muito importante haver quem mande. E saiba mandar. E uma boa parte da minha vida fui subordinado, tanto em organismos públicos (onde não parei muito tempo, felizmente), como em empresas. E recordo com saudade alguns dos meus chefes de serviço, com quem aprendi e de quem fui amigo. Mas há um por quem nutri uma admiração especial, pela sua história de vida, pela seu trabalho e luta para perseguir e atingir um sonho. Em tempos difíceis e ainda garoto, partiu para Angola, onde começou como marçano, servindo ao balcão de um estabelecimento comercial. Como não queria que fosse esse o seu futuro, foi estudando à noite, num regime de disciplina rigorosa até completar o liceu, o que viria a conseguir sem perder um único ano. Mas ainda não alcançara o seu objetivo, o seu sonho. Queria ser agrónomo. Matriculou-se na faculdade, continuou a trabalhar e estudar com um programa rigoroso onde definia ao minuto os tempos de trabalho, de estudo e lazer, sem ceder à tentação do desleixe ou do convite imprevisto. Cumpria o horário com rigor espartano, mas concluiu agronomia sem uma reprovação e com excelente média. Quando no final do curso um amigo lhe disse “tu tens cá uma sorte!!!”, ele só lhe conseguiu responder: “se tu soubesses quanto custa ter sorte”??? Sempre que me lembro dele, vem-me à memória a sua história de vida, da perseguição de um sonho que conseguiu somente à custa de trabalho, muito trabalho mesmo, a quem só a má fé ou ignorância poderia estupidamente chamar de “sorte”. Seria caso para dizer: “tive sorte uma ova…”

Mas, se a história do meu antigo chefe pode e deve inspirar qualquer um, há quem invoque argumentos facilitadores desse sucesso, como o caso de ter começado muito jovem e com emprego estável, que lhe permitiu um rendimento seguro. E não ter quaisquer compromissos nem responsabilidades, fatores que fizeram toda a diferença. Até certo ponto, são circunstâncias que deram o seu contributo para o sucesso. Mas não apagam de forma alguma o empenho e dedicação, que saem intocáveis e podem servir de modelo a muita gente.

São muitos os exemplos desse esforço para ir mais além em busca de um sonho, de uma vida melhor, de mais instrução. Em cada um há uma história com mais ou menos sacrifício, mais ou menos empenho, mas sempre com muito trabalho. Conheço uns quantos mais, que me merecem o maior respeito e admiração. Até porque nesse caminho de sacrifício, onde foram recebendo vozes de estímulo e alento, também encontraram inveja, raiva e maldade, onde só deveria haver apoio incondicional.

A senhora andava entusiasmada e feliz, pois conseguira passar a todas as cadeiras do primeiro período, o que era um acontecimento. E tinha muitas e boas razões para se sentir orgulhosa, embora não o demonstrasse, escondida atrás da sua simplicidade e humildade: fora dos poucos alunos que “limpara” o período, entre as dezenas que frequentavam aquele primeiro ano da faculdade, a grande maioria muito mais jovens do que ela; voltara a pegar nos livros quase duas décadas depois de deixar a escola secundária, tempo que dedicara a cuidar da família; para poder estudar e continuar a sustentar a casa, tem três empregos onde trabalha à hora a cuidar de idosos e doentes e até a fazer limpezas, sendo a sua única fonte de rendimento; e seria uma omissão grave não dizer que tem a seu cargo uma criança de que é mãe e de quem cuida com responsabilidade, zelo, carinho e amor, fruto de um casamento que acabou em divórcio há muito tempo. E isso fez com que tivesse de “agarrar a vida pelos cornos” para “poder dar conta do recado” e “levar a água a bom porto”. Por essas razões e muito mais, tinha bons motivos para se poder orgulhar. Foi com esse estado de espírito que encontrou uma amiga de longa data, que conhecia bem a sua vida de trabalho e sacrifício desde o colapso do casamento.

Falaram disto e daquilo e, na sua simplicidade, disse-lhe que ganhara coragem e voltara a estudar, matriculando-se no curso com que sempre sonhou. E que tinha passado em todas as cadeiras do primeiro período. Enquanto contava o que lhe estava a acontecer, a “amiga” foi perdendo o tom alegre com que alimentara a conversa, esmoreceu e depressa se foi embora. Não voltaria mais a procurá-la. Inicialmente surpreendida, viria a reconhecer nela o sentimento de perda, por já não a ver na “mó de baixo” e não ser mais a “coitadinha”. Para além da inveja, que terá feito com que a “amiga” se fosse… E o mais triste, é que esta mistura de sentimentos negativos, de raiva e inveja, tanto ela como a mãe já os têm encontrado noutras pessoas, até mesmo na família, como se o seu sucesso educativo as diminua, como se fosse crime “levantar a cabeça” e querer olhar mais além.  Porque, bom, bom, era vê-la a trabalhar de segunda a segunda, todas as semanas do ano, sem descanso semanal nem mensal como o vinha fazendo desde que se divorciara, feita “gata borralheira” enfiada no canto, aquele canto onde não se provoca invejas nem se faz sombra a ninguém. Como se já não lhe bastasse a vida de trabalho e estudo, para ter ainda de “aguentar” estes “atrasos de vida” …

Ao conhecer este caso, não posso deixar de lembrar o sentimento que descobri entre agricultores de uma região do país há bastantes anos, que me deixou incrédulo: “Não estavam preocupados, nem sequer interessados em ter bons campos de milho. O que os deixava verdadeiramente felizes e lhes bastava, era que os campos de milho dos vizinhos fossem piores do que os seus” …

Após a revolução de Abril e em pleno período de convulsões, um dos militares que assumiu mais protagonismo mediático foi convidado para realizar uma conferência na Suécia. No final, um dos elementos da organização, perguntou-lhe qual era para ele o principal objetivo da revolução portuguesa. A resposta foi imediata: “Acabar com os ricos”. Ao que o sueco contrapôs: “Pois a nossa intenção por cá é de acabar com os pobres” …

Esta nossa tendência para o “fado da desgraçadinha”, de ver sempre o “copo meio vazio” e puxar para baixo quando se devia empurrar para cima, foi motivo de anedota nesse período revolucionário. “Um operário americano, quando via passar o patrão no Cadillac, dizia: “Um dia vou ter um carro maior do que o teu”. Já na Inglaterra, o operário ao ver o patrão num Rolls Royce, comentava: “Vais ver que um dia, se não tiver um carro igual ao teu, não vou andar longe”. E em Portugal, o operário ao ver o patrão no Mercedes, previa o seu futuro comum: “Um dia, vais ter de andar a pé como eu”.

Porque será que há quem fique desconfortável e com medo que “o outro” persiga ou realize o seu sonho e atinja o Céu???

A vingança das vacas…

A vida não é justa e, por mais que a gente berre, vai ser sempre assim. Que o digam as vacas. Sim, as vacas, esses animais enormes, lentos e com grandes cornos (para ser politicamente correto, deveria dizer “chifres”), que foram explorados das mais diversas formas ao longo de séculos. Mas não é preciso recuar tanto no tempo. Quando miúdo, a sua força era usada para transportar objetos muito pesados e puxar o arado, vindo só a deixar tal tarefa quando chegaram os tratores, embora ainda há algumas regiões onde continuam a “alombar”. Além disso, foram e são uma fonte de fornecimento de numerosos bens de consumo e entram no fabrico de múltiplos produtos, tornando-se assim mais valiosas que qualquer animal de estimação. Por essa razão, há até quem diga que a vaca devia ser promovida a “melhor amigo do homem”, destronando o cão. Essa deve ser a razão pela qual os indianos ou, mais propriamente, os hindus, as chamem de “segunda mãe” (e até nem se importam que a mãe seja uma “vaca”…). Como as adoram, não as matam nem lhe comem a carne. Porque são sagradas. No entanto, acreditam que tudo o que vem delas é uma bênção. Até mesmo a urina e a bosta…

Andei uma vida a gozar com os indianos por viverem em situações de carência alimentar enquanto aqueles “pedaços de carne” se passeiam pelas ruas sem serem incomodadas, mas eles lá têm as suas razões. No respeito pela vida do animal, e apesar da recusa em comer a sua carne, consomem tudo o que podem tirar dela. Até os dejetos, vulgarmente conhecidos por “bosta”, usam como fertilizante nas terras de cultivo, no fabrico de incenso e, depois de secos, queimados para produzir energia.

Mas nós, também “esmiframos” as vacas “até ao tutano”. Usamos o leite, tanto no consumo em natureza como no fabrico de lacticínios. Comemos-lhe a carne, da cabeça ao rabo, do lombo à “mão de vaca”. Utilizamos a pele no fabrico de sapatos, carteiras, estofos, roupa e sei lá bem que mais. E até são ingrediente para gelatina, cosmética, fita adesiva, chicletes e medicamentos em cápsulas. Do sebo fabricamos sabões e sabonetes, detergentes e shampôs, rações, lápis e tinta. Os ossos, são usados no artesanato, cabos de talheres, botões, pentes, velas e outros. E até os chifres servem para o fabrico de adubos (se bem que há quem os use só para “enfeitar”).

Durante séculos, foi o animal perfeito para o ser humano, como base da alimentação e matéria prima para todas estas coisas. Só que, assim como acontece nos casamentos, ao fim de séculos “descobrimos” que não são “perfeitas”. As “brigas” começaram quando alguém, começou a dizer que a lactose do leite é “culpada” de provocar alergias a muita gente. “Mas que culpa temos nós que o leite lhes provoque gases (e vão ter de dar uns “traques” em locais inapropriados), comichões e outras maleitas”, questionam as vacas? “Até aqui, o leite sempre foi o alimento perfeito para o ser humano. O que mudou? O mundo ou o ser humano? É que, as vacas, são as mesmas”.

Não satisfeitos com “isto”, os homens (provavelmente com falta de dentes), inventaram novo problema: Não podemos comer “carnes vermelhas” que é como quem diz, não se pode comer carne de vaca. É vermelha”. Até podemos comer as brancas, as pretas e as mestiças, mas as “vermelhas”, não. É caso para perguntar: Afinal, como é que ainda não morremos todos ao longo destes anos, em que andamos a “papar” bifes mal passados e costeletas na grelha? Só agora é que passaram a fazer mal? Quem será que faz campanha contra as vacas, ao ponto de já não lhe darmos a honra e o privilégio de terem lugar à nossa mesa? Já não podemos apreciar uma “boa vitela”?

Como se isso não bastasse, os ambientalistas querem-nas riscar do planeta. Acusam-nas de consumirem mais espaço e água do que as sementeiras de cereais e que, para as alimentar, o homem tem de destruir muita floresta. Ora, tudo isto é injusto para quem tanto fez pelo ser humano. E agora, é esse mesmo ser humano a retirar-lhes importância e a fazer delas bode expiatório. Não têm elas motivos para se revoltar? Claro que sim. Pois, a revolta já começou…

Sem que a imprensa nacional e internacional o soubesse, reuniram-se em “plenário” num descampado do Brasil (porque é o país com maior número de vacas e, por isso, exportam-nas para todo o mundo. Por cá, já tiveram “muita saída” … E não fiquem a pensar que me refiro a outro tipo de “vacas”. Não. É mesmo à picanha e outros bons pedaços de carne…). Num referendo “vacário” realizado durante a noite e à socapa, entre mugidos, marradas e por unanimidade, decidiram levar a efeito a “conspiração das vacas”, para se vingarem do bicho homem, através de uma ação de toda a família bovídea, para boicotar a Terra, lançando para a atmosfera gases com “efeito de estufa”, naquilo a que chamam “peido coletivo”. Se bem o pensaram, melhor o fizeram. E aí estão elas a lançar para a atmosfera milhões e milhões de metros cúbicos de metano por segundo, pondo os ambientalistas com a cabeça à roda, a começar por Al Gore, já que o Trump (em bom português lê-se “Trampa”) não acredita nos malefícios da poluição.

Ora, segundo os entendidos nestas coisas, o metano vai para o ar e cria buracos no “ozono”, a camada que nos protege. Pelos buracos, os raios ultravioleta aquecem o planeta e derretem os glaciares, a temperatura sobe, o clima muda e fica tudo maluco (e não está já?). É assim que vem a seca e as ondas de calor, que nos provocam escaldões, fazem crescer os pelos e as peles e… É isso mesmo, “a vingança das vacas”.

Ora então, vamos lá deixar de provocar as vaquinhas, esses animais tão lindos e uteis. Não é preferível consumirmos leite, ainda que seja só no “leite creme”? E comer a vaca, mesmo que tenha de ser às escondidas? É que, se a “revolta das vacas” continua, não ganharemos para protetores solares… E teremos de nos render. E nenhum homem se quer render a uma vaca qualquer, ainda por cima com cornos grandes. Seria o seu pior pesadelo…

O que se faz com cem escudos?

Quando fui estudar para Coimbra levava o rótulo de aluno sofrível, com notas a rondar o dez. Cheguei mesmo a reprovar no segundo ano do liceu (que equivalia ao sexto ano de agora). Apesar de ter sido um bom aluno na escola primária e de até ter feito o exame de admissão ao liceu com distinção, não gostava da maioria das disciplinas nem sequer me sentia estimulado pelos professores. Só gostava das aulas do doutor Abílio e da sua forma de explicar a matéria, tornando a matemática e a física atrativas. No resto, era um sacrifício. Por essa razão, cheguei a dizer aos meus pais que não queria estudar mais. Como sabiam que eu gostava da agricultura e para evitar que fosse por diante com a ideia de abandonar os estudos, estimularam-me a continuar o liceu para poder entrar na Escola Agrícola, o que viria a acontecer. Ora, logo no primeiro trimestre, de aluno sofrível do liceu transformei-me num dos melhores de um grupo de mais de sessenta alunos. Era uma sensação nova e estimulante, que me levou no final do primeiro período a assumir para mim próprio que iria fazer tudo para conseguir notas que me dessem acesso à bolsa de estudo que o estado concedia na altura, pois os meus pais estavam a fazer um enorme sacrifício comigo. A mensalidade era alta já que, além das propinas, incluía também o custo do internato. Foi um ano de estudo intenso, mas compensador. Quando no fim do primeiro ano me dirigi ao professor da cadeira mais difícil e lhe disse que precisava de um dezassete para poder candidatar-me à bolsa, no seu sorriso tímido, disse-me: “Não precisas de pedir nada. A tua nota final é dezanove”. Foi assim que, nos anos seguintes, concluí o curso a custo zero. A bolsa era total.

Enquanto estudei em Coimbra, no início de cada período escolar o meu pai dava-me uma “mesada” para fazer face às minhas despesas pessoais. E era sempre o mesmo valor: cem escudos… Nem mais, nem menos: cem escudos. E tinha de fazer com que rendessem para todo o período. Ora, “todo” esse dinheiro dava-me para pagar a viagem na camioneta da Pacense até à Avenida dos Aliados e, a partir da Estação de S. Bento, o comboio para Coimbra. E fazer o caminho inverso no final do trimestre. Sim, porque só regressava a casa e voltava a ver os meus pais e família no final do período. Mas a “mesada” também me permitia acompanhar os colegas mais endinheirados nas idas a Coimbra ao sábado à noite, uma ou duas vezes por mês.

E essa fuga até à cidade, normalmente tinha no programa uma ida ao Texas, um restaurante pequeno que acabara de abrir na Baixa, inspirado na comida americana. Sentado ao balcão onde só cabiam quatro ou cinco clientes, a comida era sempre a mesma: “um prego com batatas fritas e um ovo a cavalo”, uma originalidade que me era desconhecida até então. Depois disso, íamos ao cinema Sousa Basto ver um filme de cowboys, que estavam em voga. As duas coisas, proporcionavam-me um fim de semana em cheio. Mas, apesar dessas “extravagâncias”, ainda conseguia poupar algum dinheirito para as férias, a que juntava alguns cobres mais ganhos nos trabalhos que fazia aos colegas menos estudiosos, mas de carteira mais recheada… Enfim, os cem escudos que o meu pai me dava rendiam muito…

E lembrei-me dessa quantia porque, há dias, fui apanhar o comboio Alfa a Campanhã e, contrariamente ao que é normal, cheguei meia hora antes da partida. E ainda bem porque, o antibiótico que andava a tomar, deu-me volta ao intestino e tive de procurar uma casa de banho mal cheguei à estação. Para minha surpresa, tinha à entrada um torniquete e ao lado uma máquina do tipo “papa-moedas”, com a indicação de que precisava de cinquenta cêntimos (cem escudos na moeda antiga) para ter acesso àquela “catedral do alívio”. E, confesso, não gostei. Era a primeira vez que pagava este tipo de “portagem” em Portugal. Até então, só me cobraram a “entrada” em locais de turismo intenso no centro de Praga e Paris.

Por cá, nunca pagara bilhete para poder “arriar o calhau”. Mas, como em tudo na vida, há sempre uma primeira vez… E não tive outro remédio senão “soltar” a moeda. Já não “aguentava” até apanhar o comboio (presumo que nos comboios o “alívio” ainda continua a ser à borla). Sentado na sanita, como não dava para ir a lado nenhum, ocupei o tempo a meditar no assunto. E então ocorreu-me uma questão absurda: como era possível que a utilização de uma casa de banho pública por uma única vez, me custasse tanto como a “mesada” que o meu pai me dava para um trimestre escolar?

Ora, sentado na sanita da Estação de Campanhã, comparava os cem escudos dos meus pais com estes cem escudos (agora tornados moeda de cinquenta cêntimos) que tinha entregue de má vontade àquela máquina estrategicamente colocada por quem faz dinheiro à custa das nossas “necessidades”. E dizia cá para comigo: “Como as coisas mudam. Os cem escudos do meu pai, chegavam e sobravam para as minhas extravagâncias ao longo de um trimestre. Permitiam-me até fazer algumas refeições num restaurante e ir ao cinema. Em contrapartida, os cem escudos (cinquenta cêntimos) que agora me esfolaram, só vão dar para “despejar o saco” e nada mais”. Ou seja: os primeiros, davam para comer e ir várias vezes ao cinema. E os de hoje, só me permitiam pôr o cu naquela sanita uma única vez. Nada mais. Se estivesse de “caganeira” e precisasse de voltar lá minutos depois, já tinha de largar outro tanto.

Afinal, o que mudou? Já sei que me vão dizer que é a desvalorização da moeda, a inflação e outras tretas que tais. Já ouço falar nisso há uns quantos anos. Mas isso não aplacava a minha discordância, quiçá, a minha revolta. Só me restava uma coisa: vingança. E vinguei-me. Gastei um pedaço extra de papel higiénico para limpar e cobrir o bordo em porcelana da sanita sem tampo. E, uma vez ali sentado, só saí depois de a encher com tudo o que de mal cheiroso tinha dentro de mim…

 

As calças que têm a ver com o …

Nas questões de “andar na moda”, estou sempre desatualizado. Não leio nada sobre o assunto, nunca sei quais são as tendências do momento ou da próxima estação e só um acaso me faz entrar nessa onda e me veste de acordo com o modelo mais em voga. A minha opção é sempre pelo mais confortável, sem saber sequer jogar com as cores, perceber que camisa “diz bem com aquelas calças”, que gravata liga com o casaco. E sou capaz de repetir as mesmas roupas semanas a fio, trocando entre dois conjuntos só enquanto um deles vai para lavar, como se não houvesse mais nada no roupeiro. Até mesmo no calçado. E é preciso que alguém me vá chamando a atenção para os colarinhos que estão puídos, as camisolas com fios puxados ou os polos descorados pelo uso.

No meu ponto de vista, a moda procura dar satisfação a duas necessidades fundamentais: por um lado, à permanente insatisfação do ser humano, a necessidade de mudança, de andar diferente de ontem e amanhã. E dos outros. Por outro, para satisfazer a indústria de confeção e o seu desejo de que o ser humano continue a ter sempre vontade de mudar … de vestuário, atirando para o caixote do lixo a roupa “fora de moda”, para poder continuar a produzir e ter quem compre. Ora, por muito mais que me digam, eu não sinto essa atração. Nem me importo de “andar fora de moda”. Qual é o problema? Porquê ser obrigado a desfazer-me de roupa nova e confortável só porque quem decide as “tendências” da moda assim o ordena? Mas aceito que haja quem goste e faça disso uma obsessão. Reconheço ainda que a vida é feita de mudança.

Já passei por modas que o foram, caíram no esquecimento e voltaram à ribalta por mais que uma vez. As calças. Foram moda apertadas em baixo, depois largueironas, voltaram a ser justas e alargaram para além do razoável. No comprimento, já arrastaram pelo chão, ficaram curtas do tipo “para regar” ou medida normal, subindo e descendo, apertando e alargando conforme a vontade dos “ditadores”. Diz-se que “na moda, só é novo o que está esquecido”. E é verdade. Hoje os modelos são mais que muitos, para satisfazer todo o tipo de gostos, dos mais clássicos aos radicais, dos ousados aos excêntricos. Podem ser de corte clássico, chino, skinny, elefante, hip hop, street style, harém, cargo, casual cintura alta, média ou baixa, militar, saruel e muitos mais. Só não me parece que estejam na moda o “boca de sino”.

Foi nesta minha ausência do que “está na moda”, que um dia destes uma pessoa amiga me falou das “calças à cagão”. Pensei que estivesse a brincar comigo e que fosse o nome que ela, pessoalmente, dava a um determinado modelo. Mas, vim a confirmar que é a designação corrente. Então, movido pela curiosidade, quis ver que calças eram essas com nome tão “sugestivo”.

Procurei na internet e encontrei vários modelos e depois, mais atento, vi na rua diversos jovens com esse tipo de calças. Ao vê-los, fiquei convencido: a escolha do nome foi acertada. Revelou até perspicácia, pois a sensação que se tem ao ver alguém sair da casa de banho com “calças à cagão”, é de que “tudo o que fez” ficou nas calças. Talvez nos bolsos, sei lá, a fazer peso. Daí a malta andar com a cintura pelo meio da “padaria”, como se um peso extra puxe as calças para baixo, deixando à mostra uma boa parte das cuecas, quase sempre de cores apelativas. Ao ver as calças a “fugir” do rabo de um adolescente, não pude deixar de concordar com o “à cagão”. Revelam a irreverência e excentricidade próprias dos jovens.

Sendo um defensor da roupa prática e funcional, acho que seria o modelo certo para eu usar quando andava na escola primária, especialmente quando tinha de ir à retrete. Como lá havia sanitas turcas (aquelas que são rasas, com dois apoios para colocar os pés e um buraco onde é conveniente acertar), seriam excelentes para a função pois não era preciso desapertar os botões ao “arriar as calças”. Bastava aninhar-me e, nesse movimento para me colocar na “posição de tiro”, elas desciam de forma automática, o suficiente para poder “fazer o serviço”. Sem mais. Seriam muito funcionais. “E as cuecas”, perguntam-me? Não seriam problema. Bastava usar o “modelo do Amílcar”. “E que modelo é esse”, querem saber? Bom. O Amílcar era o vocalista do nosso conjunto (leia-se “banda” na versão atual) no início da década de setenta. Deixou a faculdade e dedicou-se à música, mas era um tanto “apanhado do clima”. Tornou-se tão bom, que chegou a tocar com o Cat Stevens, embora mais tarde se viesse a perder nos caminhos da droga. Um dia, o grupo tocava na Assembleia Penafidelense. Ao ajustar as calças no intervalo, o Amílcar mostrou ligeiramente a parte de cima das cuecas. O Nelo meteu-se com ele: “Oh Amílcar, tens umas cuecas giras”. Tímido e meio a gaguejar, respondeu-lhe: “Não são cuecas. É só o elástico…” E mostrou que, abaixo do cinto, não havia mais nada… Ora, aproveitando o “modelo” do Amílcar, as cuecas completavam na perfeição a funcionalidade das “calças à cagão”.

Se eu me satisfaço com a comodidade e simplicidade da roupa, tenho de concordar que há quem prefira a excentricidade e irreverência, tornando este nosso mundo mais colorido, original e alternativo. E a indústria, como toda a sociedade de consumo de que fazemos parte, precisa disso pois, por mais estranha e ousada que seja a moda, por mais esquisita ou feia (e o feio é relativo e às vezes, de tão feio que é, passa a original e de original a bonito), vai haver sempre quem adira e consuma… E cá estaremos nós a “olhar de lado” a excentricidade, quando não a dizer: “olha que até são giras e ficam-lhe bem” …

Alto e para o baile. Apalparam…

Num tempo em que namorar com uma moça tinha regras apertadas de comportamento, para além da vigilância serrada da mamã, dançar agarradinho era coisa doutro mundo. Mas raro, muito raro. Porque eram muito poucas as raparigas que o permitiam. Estrategicamente, colocavam o braço esquerdo sobre o nosso ombro direito e, à menor tentativa de a puxarmos mais para nós, esse braço esquerdo impedia o “avanço” e mantinha-nos “descolados”, à distância. A vigilância da família e não só, eram obstáculos de peso. Mas a rapaziada tentava sempre, à espera que lhe saísse a sorte grande…

Na minha infância só conhecia as danças populares nas desfolhadas e outras atividades e festas da aldeia. E foi nas Festas Grandes que vi pela primeira um baile através da janela da Assembleia Lousadense, que era um espaço de acesso muito restrito. Já adolescente, tive de aprender um tanto à pressa os primeiros passos da valsa, do tango e do cha cha cha, quando alguém me convidou para um baile em casa particular. Eram os melhores. Organizados em casas onde havia “meninas casadoiras”, tinham sempre um segundo aliciante nesse tempo de “escassez”: além das raparigas, havia comida “à fartazana”, angariada através de “multas” aos convidados, especialmente às mulheres. Os donos da casa eram os “guardiões morais”, a quem as mamãs entregavam a responsabilidade das filhas. Mas, quando em bailes de coletividades como as Assembleias Recreativas ou Clubes e bailes de Finalistas, os pais das “meninas” tinham mesa própria de onde controlavam as “pequenas” e, especialmente, os candidatos. Em muitos casos, até eram seletivos ao aprovarem ou não o “rapaz”. Contava-se uma história ou anedota sobre esse controle: em plena dança, um dos papás gritou: “Alto e para o baile. Apalparam o c. à minha filha”. O visado, terá reagido de imediato: “Fui eu, mas quero casar com ela”. O pai da rapariga desarmou logo e gritou: “Siga o baile…” Os interesses do pai estavam assegurados.

Dançava-se o tango, o slow, o passo doble e a valsa, agarrados, não tanto quanto os rapazes queriam, mas o quanto as circunstâncias e elas permitiam. Mais tarde apareceria o rock e o twist, essas sim, dançadas com um para cada lado. Eram boas para animar o ambiente mas, gostosas, gostosas, eram as outras… Para um adolescente como eu, o baile era sempre algo de especial, uma oportunidade para ter nos braços a mulher de quem gostava. Mas nem sempre concretizada. Porque, nos bailes públicos, estava-se sujeito a apanhar “uma nega”. Quando começava a tocar a música, tinha de ir até à mesa onde a moça estava sentada com a família e fazer um aceno de cabeça para “formalizar” o convite. Se ela aceitasse (e tivesse autorização da “vigilante”), levantava-se para dançar. Caso contrário, olhava para o lado ou fingia que não via. Para um adolescente tímido, a recusa era um golpe na autoestima. Para os “sabidolas” e descarados, já muito habituados a esse contratempo, não era problema. Quando uma moça se mostrava demasiado seletiva, armavam bagunça, como aconteceu em Santo Tirso num baile do tipo “arraial minhoto” onde fui com um amigo. Encontramos lá um conterrâneo mais velho. Durante o baile, tanto eu como o amigo que me acompanhou tentamos dançar com uma moça loura, de cabelo comprido, mas fomos rejeitados. O nosso conterrâneo não gostou e fez questão de a ir convidar, fazendo-lhe uma vénia a curta distância. Ao receber também um não, deu um passo atrás e, em voz alta, bradou: “Que me diga que não dança, está no seu direito. Mas, mandar-me à m… é que não”. E deu meia volta, com a dignidade de quem tem razão. Toda a gente ao redor ficou a olhar. E ela sentiu-se tão envergonhada, que saiu logo de seguida.

Os bailes eram relativamente restritos, até porque não havia muita gente a saber dançar as chamadas “danças de salão”. Para além disso, como uma boa parte dos bailes eram em casas particulares onde só ia quem fosse convidado, mais limitado ficava tal acesso. Nos bailes em instituições, em que as Assembleias Recreativas eram as mais ativas, a entrada era igualmente condicionada…

Fomos mais de meia dúzia os convidados por um amigo comum para rumar a uma aldeia de Santo Tirso numa noite de fim de ano, onde ia haver dança. O anfitrião era um tio desse nosso amigo, que tinha duas filhas a ultrapassarem o “prazo de validade” (e nesse tempo o limite situava-se entre os vinte e os vinte e cinco anos), pelo que urgia fazer alguma coisa. A condição exigida ao grupo que ia cá de Lousada era cantar as Janeiras. Por isso, paramos no alto de Lustosa para ensaiar uma música do conjunto de António Mafra e versos feitos por mim para o efeito, à luz dos faróis. Devia ser um quadro lindo… Apesar de tudo estar “nos conformes”, o baile não correu muito bem. Uma das raparigas convidadas era muito bonita e tinha uma particularidade: a dançar, a sua camisola azul celeste “colava-se” ao par, irradiando um calor anormal. Com isso, a rapaziada fazia fila para ver quem era o felizardo da dança seguinte… E o anfitrião não gostou de ver as filhas “sem clientela”, enquanto “aquela galdéria” tinha a malta toda presa pelo beicinho. Ia sendo um problema dos diabos, que teve de ser resolvido com alguma diplomacia…

Em poucos anos, a vigilância e controle das moças foi abrandando e sendo substituída por uma liberdade condicionada, até chegar a não ter condições. Os bailes, ponto alto de entretenimento, encontro e prazer, onde tudo começou para muitos casais, perderam o encanto e foram substituídos pelas discotecas e bares, em que já não se valoriza as pequenas conquistas, mas somente o tudo ou nada. O prazer dos avanços e recuos no “assalto ao castelo”, perdeu-se nas facilidades da “rendição sem luta”. E os locais, como as Assembleias Recreativas e Clubes, também perderam a mística, a “clientela”, o brilho e o (quase) exclusivo dos bailes.

Mas as mamãs, tinham e continuam a ter um papel importante na vigilância e segurança das filhas adolescentes, agora mais ajustada à realidade do século XXI: “Tomaste a pílula? Como vais ao cinema com o António e vai acabar tarde, fica em casa dele. Mas não se esqueçam de usar preservativo. Pratica o sexo seguro” …

Clima temperado. E passamos frio…

“Está um frio de rachar”, dizem-me quando entro numa loja. Não sei o que é que ele “racha” mas, na realidade, esta manhã tive de colocar várias camadas de roupa para proteger este corpinho daquele vento gelado que parece atravessar-me os ossos. Não é tanto o frio que nos gela. O pior é quando ele aparece agarrado ao vento, uma dupla que mete medo. Até me faz crer que ando nu na rua, tal a facilidade com que trespassa a roupa e a carne.

Felizmente, hoje já temos vestuário adequado para as intempéries, coisa que não havia quando ia a pé para a escola primária. Nesse tempo, sim, havia mesmo frio, porque não havia com que o parar. A maioria ia descalça a pisar a terra levantada pela geada, com calças rotas (que nesse tempo eram sinal de pobreza e hoje estariam na moda) ou remendadas, uma camisa velha e, com sorte, camisola feita à mão lá em casa. Para proteger da chuva e do frio, uma “capa” com o saco de sarapilheira. E era preciso ter um saco de sarapilheira, o que não era para todos…

Mas o frio também se fazia sentir bem forte dentro das casas, sem condições de habitabilidade. A maior parte delas tinha o pavimento em terra batida. Húmidas e frias. O vento e o frio entravam pela cobertura em telha vã e pelas largas frinchas de portas e janelas. Só o peso dos cobertores (para quem os tivesse), enganava o corpo, que ficava dividido entre dois problemas: o peso dos cobertores e o frio. Para os que tinham mais posses, uma botija de água quente, feita em lata pelo latoeiro da terra, dava um grande conforto, a não ser que se rompesse a solda… Os pobres, como não tinham como comprar tais botijas, aqueciam um pedregulho na lareira e enfiavam-no entre os cobertores embrulhado em trapos…

Os “Kispos”, desse revolucionário do nosso modo de vestir conhecido pelo nome de Hans Isller, para além de nos darem um ar desportivo, descontraído e colorido (acabando com o cinzentão das roupas de então), também nos vieram dar proteção contra a chuva, o vento e o frio, de forma irreversível. Bem agasalhados, até passou a dar prazer andar ao arrepio dos elementos, como as crianças quando teimam em dar saltos numa poça de lama.

A riqueza trazida pela industrialização permitiu-nos ter casas novas, com outro aparato que não o da casa de pedra tradicional. Modelos importados da “estranja”, caixilhos de alumínio e outras modernices, ficavam bonitinhas depois de pintadas em cores garridas. E, para os mais abastados, nasceram casas maiores, casarões e outros que tais, que enchiam de orgulho os donos pelo aparato, pela beleza exterior, mas cuja comodidade pouco correspondia ao aspeto. A preocupação maior era sempre, e só, com a beleza da moradia e muito pouco com a comodidade. A qualidade do isolamento térmico e acústico não existia e, quando se começou a falar nisso, fingia-se, brincando aos isolamentos, ao colocar na caixa de ar das paredes exteriores placas de esferovite com um a dois centímetros de espessura, como se isso resolvesse alguma coisa. Resultado: as casas novas tinham problemas velhos: Frias, quando não, húmidas. Sem aquecimento a sério, enganava-se o inverno e o frio com o aquecedor a gás ou elétrico, a lareira ou uma salamandra na sala. E nos quartos?  Um montão de cobertores na cama e botijas de água quente, agora de borracha…

Há cerca de trinta anos fiz uma viagem a França com a família e quis visitar uma prima que morava em Lyon. Estávamos no mês de Agosto e, ao meio dia, a temperatura ultrapassava os trinta e cinco graus. Ao encontrar a casa de rés do chão, muito simples, disse à Luisa: “vamos assar lá dentro”. Mas nada disso aconteceu. Fui surpreendido por uma temperatura amena, onde se estava muito bem. Perguntei-lhe se tinham ar condicionado. “Não, o que temos é um bom isolamento térmico”. E, quando me referiu a espessura das placas de isolamento, tanto no interior das paredes como na cobertura, disse para comigo: “isto, é isolamento a sério”. Ainda hoje, apesar de obrigados pela lei, estamos longe de usar espessuras de isolamentos como eles o fizeram.

A verdade é que somos um país de clima temperado, onde se passa mais frio dentro de casa do que em qualquer casa de um país frio da Europa central ou norte. O que é um paradoxo. Até se compreende no caso das famílias que construíram a habitação com muito sacrifício e não disponham de meios para um sistema de aquecimento e a sua manutenção. Mas, para muitos outros, não faz sentido nenhum.

Nos países frios, o aquecimento é uma prioridade imprescindível, sejam ricos ou pobres. Os prédios de apartamentos têm aquecimento coletivo. E já vi isso na antiga Checoslováquia há mais de trinta anos…

Um amigo serralheiro, quando foi pela primeira vez a França colocar a caixilharia numa moradia, ficou muito admirado porque a casa só tinha os alicerces e as paredes exteriores em tosco, com os blocos à vista. Nem telhado. Nunca vira nada daquilo e disse ao empreiteiro que não a podia assentar. Naquelas paredes toscas, sem reboco, só havia os buracos para portas e janelas. O construtor disse-lhe para colocar a caixilharia porque os acabamentos viriam depois. E ele fez o que lhe mandaram. Mais tarde pode ver como se acabava a casa. Só precisaram de um quinto do cimento que nós gastamos e ficou com tal comodidade que, em pleno pico do inverno, andavam lá dentro descalços e em t-shirt, como se fosse verão. Porque a preocupação deles é a comodidade e o conforto.

O sistema construtivo conhecido por “capoto” melhorou muito o isolamento das casas que hoje construímos, mas ainda temos muito caminho a percorrer. Quanto a aquecimento? Ainda ficamos muito pela pré-instalação e depois usamos aquecedores elétricos ou o que calha, que consomem dinheiro, sem proporcionar comodidade e conforto. E nestes picos de frio, anda-se agasalhado em casa como na rua…

Temos um clima temperado. Mas, as nossas opções em relação à climatização caseira, nem sempre são temperadas… pelo bom senso. Questão de prioridades…

Já agora, para quê tanta pressa?

 

Apesar de gostar da comodidade do “meu canto”, quando preciso (e tem de ser), vou ao Porto. Aquele aglomerado de “pressas” já não me motiva a ser mais um “com pressa”. Na última ida à capital do Norte, foi uma confusão danada, porque só vi gente apressada. O trânsito estava caótico, as pessoas impacientes por chegarem a sítio nenhum, os carros, esforçados do “para e arranca”, continham os “cavalos de potência” que não lhes servia de nada naquela teia de desencontros. Mesmo os polícias, depressa se escaparam da confusão. Sem pressa, mas querendo chegar, feito observador em palanque, assisti ao vai e vem de grandes vagas de carros no mar agitado do trânsito, ao som febril de buzinas inquietas, pressionadas por condutores com pressa, irritados e impacientes por “marcar passo”, quando já queriam estar algures, mas atrasados para nenhures…

É nestes dias que mais nos apercebemos que anda toda a gente com pressa, essa doença da vida moderna. Já Fernando Pessoa há muito tempo identificou o problema: “Movemo-nos muito rapidamente de um ponto onde nada se faz, para outro onde não há nada para fazer e chamamos a isto a pressa febril da vida moderna. Não é febre de pressa, mas sim pressa de febre. A vida moderna é um lazer agitado, uma fuga ao movimento ordenado por meio da agitação”. Se há mais de cem anos Pessoa já fez este diagnóstico, é caso para perguntar o que diria ele agora, em que tudo acelerou de forma descontrolada, como quem passa do passo de boi para a velocidade da luz?

A pressa é um dos grandes males das sociedades modernas e conduz as nossas vidas a uma agitação e preocupação permanentes. Somos por isso dominados pela ansiedade, apesar de usufruirmos de meios tecnológicos que deveriam facilitar-nos a vida, como os transportes rápidos, o computador, a internet, o telemóvel e tantos outros. Estranhamente, acabamos sempre por andar atrasados, correndo de um lado para o outro e sem ter tempo para nada.

A qualidade da nossa vida é afetada pela pressa constante, refém de agendas sobrecarregadas como se o dia tivesse mais de vinte e quatro horas. Aliás, estamos ligados e em serviço todas as horas do dia e até mesmo de noite. Onde fica o lazer, o descanso e, mais que isso, o “viver”? Relegados para o canto do “mais tarde” ou “quando for possível” ou ainda “quando me reformar”, como se a felicidade só vá chegar na velhice… Mas não vai.

Já pouco ou nada usamos o relógio que trazemos no pulso, talvez por estarmos em conflito com ele. É tempo de fazer as pazes com o ritmo de vida e usufruir das coisas boas, simples e calmas. Não fomos feitos para andar sempre acelerados, nem viver “a cem à hora”. Não temos paciência, esperar irrita-nos e achamos que a espera é só para quem não tem nada que fazer. Queremos tudo agora, agora mesmo. Porque temos urgência de chegar, como se tivéssemos urgência de chegar ao fim, como se no fim estivesse a felicidade…

Manuel Barros é um poeta brasileiro. Na sua filosofia, valoriza as insignificâncias e questiona as opulências. Dava mais importância aos passarinhos do que aos senadores. Tinha cisma com lesma, por achar que ela andava muito depressa. Dizia uma verdade que deveríamos guardar e até seguir: “A gente só chega ao fim, quando o fim chega! Então, para quê atropelar”?

Apesar do homem ter trocado os braços pelas asas, as pernas pelas rodas, a calma pela pressa e o perto pelo longe, está sempre atrasado, não conseguindo cumprir a agenda e os horários. Incapaz até de ter tempo para os filhos, para a família, para os amigos. Já não se dá tempo ao tempo, porque tudo tem de ser feito antes do tempo, como se o tempo não tivesse um tempo. Mas tem o seu tempo…

No supermercado, zangamo-nos connosco porque escolhemos a fila errada, fulminamos o cliente à nossa frente, porque é lento e não tem o dinheiro à mão para pagar logo e encaramos mal o caixa, porque não é despachado. Como se ninguém visse que temos pressa… Toda a semente tem um tempo para germinar, crescer, dar flor, frutificar e amadurecer o fruto. No ciclo da vida vegetal, ainda não há forma de saltar etapas, de fazer florir antes de germinar ou de colher antes sequer de se semear. E não adianta ter pressa. Apesar de recusarmos fazer da vida como no ciclo do reino vegetal: semear, regar, adubar e cuidar para colher.

Conta-se que o célebre pintor francês Renoir, já em idade avançada, foi procurado por um jovem admirador, muito interessado em aprender a arte do desenho. Porém, alegando ter pouco tempo para a tarefa da aprendizagem, o apressado discípulo queria saber quanto tempo demoraria a empreitada, pois ficara assombrado ao ver que o mestre fez uma bela pintura com uma rapidez espantosa. Perante tanta pressa, Renoir disse-lhe: fiz este desenho em cinco minutos, mas demorei sessenta anos para consegui-lo”.

Todas as últimas descobertas vão no sentido de acelerar a nossa vida e os nossos atos. Comunicamos à velocidade da luz, voamos acima da velocidade do som, inventamos o computador para nos resolver em segundos problemas que demoravam anos e inventamos máquinas para nos substituírem no trabalho. Mas estamos mais escravos da pressa, do ter de fazer mais ainda e mais rápido, porque não basta fazer. E nessa pressa, despachamos à pressa as coisas importantes da vida, porque temos pressa do resto, de ter o que não temos antes mesmo de usufruirmos daquilo que já temos.

Até temos pressa de chegar ao amanhã. De o antecipar. Como se fosse o que mais importa. A tal ponto, que até nos esquecemos de viver o presente, o dia de hoje, o agora. Bem vistas as coisas, no fundo, no fundo, até nos esquecemos de viver…

Te quero, Bem. Não te quero, Mal…

Não tenho qualquer memória sobre o dia do meu nascimento, apesar de ter participado como protagonista principal desse “filme”. E nem sei se estive de olhos abertos ou fechados, se vi a cena “do lado de quem sai” ou se não tive tempo nem disposição para ver nada. É que, bom, bom, é andar na barriga da mãe: Não temos de nos preocupar com tomar banho, comer, vestir, trabalhar, ouvir discursos chatos, aturar estúpidos, nem correr atrás do dinheiro. Nada. Assim, quando tudo nos empurra para atravessar a “porta” que nos traz a este mundo, quem é o tolo que vem de boa vontade? Nenhum. É por isso que a “ganapada” entra toda nesta vida a berrar. Pudera. Lá dentro é que se está bem, sem necessidade de “ter de fazer pela vida” …

Aterrei neste mundo e vi a luz do dia em casa dos meus pais e só o sei porque a minha mãe me contou. Não havia maternidade e o hospital era para outros males. Também fiquei a saber que saí a berrar, como os outros. Não fui diferente. Sou feito da mesma massa. E, mais ainda, que a minha avó materna foi quem ajudou a “puxar-me” cá para fora (provavelmente com medo que eu fizesse “finca pé” e não saísse), assumindo o papel de parteira. Nesse tempo, em que a assistência médica no parto era residual. Quem “ocupava o lugar” de parteira era, em regra, uma mulher com muitos filhos. E a avó teve uns quantos. É que, aquela que tivesse muitos filhos, pela lógica, tinha experiência prática, aquilo a que hoje se chama “currículo” … Era um curso da vida, sofrido, muito sofrido pela experiência própria. Tanto o era, que as mulheres nem sequer “davam à luz”. Pariam.

Também não sei se nasci com os genes do Bem e do Mal. Não me lembro, não me perguntaram e o ministério público não investigou nada desse assunto. Mas também é uma discussão que não tem fim, pois há muitas teorias. Da treta? Talvez. Umas dizem que o homem é mau e nasce mau. Outras, defendem o contrário: que os homens nascem livres de qualquer maldade. E há ainda as que acham que nascemos como um livro em branco, sem nada escrito, sem maldade nem bondade. Ora, nas minhas memórias mais remotas, vejo-me a ser solidário com outras crianças. Nesse caso, um sinal de que já tinha o Bem comigo. O que é bom. Mas também me recordo nessa altura, de andar à “batatada” com o Tónio. Outro indicador, de que o Mal já cá estava também. O que é mau. Tinha cinco a seis anos e já carregava os dois: O Bem e o Mal. Mas, pergunto eu, quando nasci, naquele preciso momento em que berrei ao ver a luz do dia, já trazia os dois em mim? Fica-me a dúvida, apesar de todas as teorias que nada têm de consensual e que só aumentam as minhas interrogações.

Não posso negar que, ao longo dos anos, os meus atos e atitudes foram consequência da maior ou menor influência de cada um desses dois “manipuladores”, sem nunca me ter conseguido libertar por completo do segundo, apesar de me esforçar e da arma que os meus pais usaram para o eliminar: A Educação.

Na minha linguagem e desde o tempo de criança, praticamente nunca usei palavrões, inclusive os mais vulgares cá na região. É que, a minha mãe, bem cedo avisou que me punha pimenta na língua se me ouvisse dizer um palavrão sequer. Levei de tal forma a ameaça a sério, que excluí o calão mais ordinário do meu vocabulário. Até hoje, apesar da enorme pressão feita pela malta que estudava comigo. E isso também aconteceu com os cigarros: para a “maralha”, quem não fumasse, não era homem. Por isso, eu tinha de fumar como os outros, para poder ser integrado e … ser homem. Mas resisti. De tal maneira, que nunca meti um único cigarro à boca. E, que eu saiba, “cheguei a homem” …

O meu pai ensinou-me a cumprir a palavra. Se acordava com alguém alguma coisa, bastava um aperto de mão para selar o acordo e ficar refém da palavra. Não era preciso papel escrito. E ambos fizeram questão de me ensinar ainda a respeitar os professores, os mais velhos, as autoridades e as pessoas em geral. Respeitar, diziam, para poder ser respeitado ou para exigir respeito. E a ter valores.

Mas, apesar da educação que me incutiram baseada na “liberdade com responsabilidade”, não deixei de ter o meu lado negro, como toda a gente. Quando na escola o Tónio, mais velho e maior do que eu, me fez uma patifaria, dei-lhe um valente pontapé no traseiro, que me deixou a sensação de o ter levantado do chão. Ainda hoje pergunto como é que lhe acertei tão bem no “centro”!!! Felizmente para mim, não reagiu como seria de esperar. Já rapazote, a jogar futebol pelo Macieira, um adversário rasteirou-me, fazendo-me estender ao comprido, indo com os joelhos a raspar no areão do campo. Ficaram a sangrar. Levantei-me e não vi mais nada além do “inimigo”. Corri atrás dele com a raiva estampada no rosto e sede de vingança, dando uma volta ao campo de futebol sem o conseguir apanhar. Era o meu lado “Mau” a comandar a minha reação. E esta luta sempre existiu em mim quando perante casos de agressão, prepotência, violência ou qualquer tipo de injustiça. O lado negro reclamava por vingança e justiça. Resisti sempre? De maneira nenhuma, não tenho nada de santo. Mas tenho orgulho ao dizer que, a educação que os meus pais me deram, resguardou-me e protegeu-me de muitos desses apelos. Ela foi fundamental na escolha do trilho e ainda bem que não a deixaram ao cuidado de outros. Tive influências de companheiros de caminhada? Claro que sim. Mas naquilo que era essencial, segui pela via que os meus progenitores me indicaram.

Para os pais de hoje, os desafios são muito maiores que os daquele tempo. Mas não são impossíveis. Têm, à partida, mais preparação, mais informação e meios. Não podem demitir-se da responsabilidade, nem sequer delegar em terceiros, muito menos em quem tem só a missão de instruir, porque não lhes cabe educar, apesar de fazerem o que podem quando existe esse vazio. Aos que não estão disponíveis para tal responsabilidade, um único conselho: é melhor não terem filhos. Eles não têm culpa.

Circula na internet que um recluso condenado à pena de morte e a aguardar pela execução solicitou, como último desejo, papel e lápis. Escreveu alguns minutos e depois chamou pelo guarda prisional, pedindo-lhe que a carta fosse entregue à mãe. A carta dizia:

“Mãe, se houvesse justiça no mundo, seríamos os dois executados e não apenas eu. És tão culpada quanto eu sou pela vida que tenho levado. Lembras-te quando roubei e levei para casa a bicicleta de um menino como eu? Tu ajudaste-me a escondê-la, para que o meu pai não descobrisse. Lembras-te quando roubei o dinheiro da carteira do vizinho? Tu foste comigo gastá-lo ao centro comercial que havia mais perto. Lembras-te quando discutiste com o meu pai e ele se foi embora? Ele só queria corrigir-me por ter roubado o exame final do curso, em que acabei por ser expulso.

Mãe, eu era só uma criança. Pouco tempo depois tornei-me um adolescente problemático e agora sou homem muito mal formado. Mãe, eu era uma criança que precisava de correção e não de aprovação. Mas, mesmo assim, perdoo-te, mãe.

Só peço que faças esta carta chegar a todos os pais do mundo, para eles saberem que o que faz todos os homens tornarem-se pessoas de bem ou criminosos, é a educação ou a falta dela” …