Não tenho qualquer memória sobre o dia do meu nascimento, apesar de ter participado como protagonista principal desse “filme”. E nem sei se estive de olhos abertos ou fechados, se vi a cena “do lado de quem sai” ou se não tive tempo nem disposição para ver nada. É que, bom, bom, é andar na barriga da mãe: Não temos de nos preocupar com tomar banho, comer, vestir, trabalhar, ouvir discursos chatos, aturar estúpidos, nem correr atrás do dinheiro. Nada. Assim, quando tudo nos empurra para atravessar a “porta” que nos traz a este mundo, quem é o tolo que vem de boa vontade? Nenhum. É por isso que a “ganapada” entra toda nesta vida a berrar. Pudera. Lá dentro é que se está bem, sem necessidade de “ter de fazer pela vida” …
Aterrei neste mundo e vi a luz do dia em casa dos meus pais e só o sei porque a minha mãe me contou. Não havia maternidade e o hospital era para outros males. Também fiquei a saber que saí a berrar, como os outros. Não fui diferente. Sou feito da mesma massa. E, mais ainda, que a minha avó materna foi quem ajudou a “puxar-me” cá para fora (provavelmente com medo que eu fizesse “finca pé” e não saísse), assumindo o papel de parteira. Nesse tempo, em que a assistência médica no parto era residual. Quem “ocupava o lugar” de parteira era, em regra, uma mulher com muitos filhos. E a avó teve uns quantos. É que, aquela que tivesse muitos filhos, pela lógica, tinha experiência prática, aquilo a que hoje se chama “currículo” … Era um curso da vida, sofrido, muito sofrido pela experiência própria. Tanto o era, que as mulheres nem sequer “davam à luz”. Pariam.
Também não sei se nasci com os genes do Bem e do Mal. Não me lembro, não me perguntaram e o ministério público não investigou nada desse assunto. Mas também é uma discussão que não tem fim, pois há muitas teorias. Da treta? Talvez. Umas dizem que o homem é mau e nasce mau. Outras, defendem o contrário: que os homens nascem livres de qualquer maldade. E há ainda as que acham que nascemos como um livro em branco, sem nada escrito, sem maldade nem bondade. Ora, nas minhas memórias mais remotas, vejo-me a ser solidário com outras crianças. Nesse caso, um sinal de que já tinha o Bem comigo. O que é bom. Mas também me recordo nessa altura, de andar à “batatada” com o Tónio. Outro indicador, de que o Mal já cá estava também. O que é mau. Tinha cinco a seis anos e já carregava os dois: O Bem e o Mal. Mas, pergunto eu, quando nasci, naquele preciso momento em que berrei ao ver a luz do dia, já trazia os dois em mim? Fica-me a dúvida, apesar de todas as teorias que nada têm de consensual e que só aumentam as minhas interrogações.
Não posso negar que, ao longo dos anos, os meus atos e atitudes foram consequência da maior ou menor influência de cada um desses dois “manipuladores”, sem nunca me ter conseguido libertar por completo do segundo, apesar de me esforçar e da arma que os meus pais usaram para o eliminar: A Educação.
Na minha linguagem e desde o tempo de criança, praticamente nunca usei palavrões, inclusive os mais vulgares cá na região. É que, a minha mãe, bem cedo avisou que me punha pimenta na língua se me ouvisse dizer um palavrão sequer. Levei de tal forma a ameaça a sério, que excluí o calão mais ordinário do meu vocabulário. Até hoje, apesar da enorme pressão feita pela malta que estudava comigo. E isso também aconteceu com os cigarros: para a “maralha”, quem não fumasse, não era homem. Por isso, eu tinha de fumar como os outros, para poder ser integrado e … ser homem. Mas resisti. De tal maneira, que nunca meti um único cigarro à boca. E, que eu saiba, “cheguei a homem” …
O meu pai ensinou-me a cumprir a palavra. Se acordava com alguém alguma coisa, bastava um aperto de mão para selar o acordo e ficar refém da palavra. Não era preciso papel escrito. E ambos fizeram questão de me ensinar ainda a respeitar os professores, os mais velhos, as autoridades e as pessoas em geral. Respeitar, diziam, para poder ser respeitado ou para exigir respeito. E a ter valores.
Mas, apesar da educação que me incutiram baseada na “liberdade com responsabilidade”, não deixei de ter o meu lado negro, como toda a gente. Quando na escola o Tónio, mais velho e maior do que eu, me fez uma patifaria, dei-lhe um valente pontapé no traseiro, que me deixou a sensação de o ter levantado do chão. Ainda hoje pergunto como é que lhe acertei tão bem no “centro”!!! Felizmente para mim, não reagiu como seria de esperar. Já rapazote, a jogar futebol pelo Macieira, um adversário rasteirou-me, fazendo-me estender ao comprido, indo com os joelhos a raspar no areão do campo. Ficaram a sangrar. Levantei-me e não vi mais nada além do “inimigo”. Corri atrás dele com a raiva estampada no rosto e sede de vingança, dando uma volta ao campo de futebol sem o conseguir apanhar. Era o meu lado “Mau” a comandar a minha reação. E esta luta sempre existiu em mim quando perante casos de agressão, prepotência, violência ou qualquer tipo de injustiça. O lado negro reclamava por vingança e justiça. Resisti sempre? De maneira nenhuma, não tenho nada de santo. Mas tenho orgulho ao dizer que, a educação que os meus pais me deram, resguardou-me e protegeu-me de muitos desses apelos. Ela foi fundamental na escolha do trilho e ainda bem que não a deixaram ao cuidado de outros. Tive influências de companheiros de caminhada? Claro que sim. Mas naquilo que era essencial, segui pela via que os meus progenitores me indicaram.
Para os pais de hoje, os desafios são muito maiores que os daquele tempo. Mas não são impossíveis. Têm, à partida, mais preparação, mais informação e meios. Não podem demitir-se da responsabilidade, nem sequer delegar em terceiros, muito menos em quem tem só a missão de instruir, porque não lhes cabe educar, apesar de fazerem o que podem quando existe esse vazio. Aos que não estão disponíveis para tal responsabilidade, um único conselho: é melhor não terem filhos. Eles não têm culpa.
Circula na internet que um recluso condenado à pena de morte e a aguardar pela execução solicitou, como último desejo, papel e lápis. Escreveu alguns minutos e depois chamou pelo guarda prisional, pedindo-lhe que a carta fosse entregue à mãe. A carta dizia:
“Mãe, se houvesse justiça no mundo, seríamos os dois executados e não apenas eu. És tão culpada quanto eu sou pela vida que tenho levado. Lembras-te quando roubei e levei para casa a bicicleta de um menino como eu? Tu ajudaste-me a escondê-la, para que o meu pai não descobrisse. Lembras-te quando roubei o dinheiro da carteira do vizinho? Tu foste comigo gastá-lo ao centro comercial que havia mais perto. Lembras-te quando discutiste com o meu pai e ele se foi embora? Ele só queria corrigir-me por ter roubado o exame final do curso, em que acabei por ser expulso.
Mãe, eu era só uma criança. Pouco tempo depois tornei-me um adolescente problemático e agora sou homem muito mal formado. Mãe, eu era uma criança que precisava de correção e não de aprovação. Mas, mesmo assim, perdoo-te, mãe.
Só peço que faças esta carta chegar a todos os pais do mundo, para eles saberem que o que faz todos os homens tornarem-se pessoas de bem ou criminosos, é a educação ou a falta dela” …