Quando fui estudar para Coimbra levava o rótulo de aluno sofrível, com notas a rondar o dez. Cheguei mesmo a reprovar no segundo ano do liceu (que equivalia ao sexto ano de agora). Apesar de ter sido um bom aluno na escola primária e de até ter feito o exame de admissão ao liceu com distinção, não gostava da maioria das disciplinas nem sequer me sentia estimulado pelos professores. Só gostava das aulas do doutor Abílio e da sua forma de explicar a matéria, tornando a matemática e a física atrativas. No resto, era um sacrifício. Por essa razão, cheguei a dizer aos meus pais que não queria estudar mais. Como sabiam que eu gostava da agricultura e para evitar que fosse por diante com a ideia de abandonar os estudos, estimularam-me a continuar o liceu para poder entrar na Escola Agrícola, o que viria a acontecer. Ora, logo no primeiro trimestre, de aluno sofrível do liceu transformei-me num dos melhores de um grupo de mais de sessenta alunos. Era uma sensação nova e estimulante, que me levou no final do primeiro período a assumir para mim próprio que iria fazer tudo para conseguir notas que me dessem acesso à bolsa de estudo que o estado concedia na altura, pois os meus pais estavam a fazer um enorme sacrifício comigo. A mensalidade era alta já que, além das propinas, incluía também o custo do internato. Foi um ano de estudo intenso, mas compensador. Quando no fim do primeiro ano me dirigi ao professor da cadeira mais difícil e lhe disse que precisava de um dezassete para poder candidatar-me à bolsa, no seu sorriso tímido, disse-me: “Não precisas de pedir nada. A tua nota final é dezanove”. Foi assim que, nos anos seguintes, concluí o curso a custo zero. A bolsa era total.
Enquanto estudei em Coimbra, no início de cada período escolar o meu pai dava-me uma “mesada” para fazer face às minhas despesas pessoais. E era sempre o mesmo valor: cem escudos… Nem mais, nem menos: cem escudos. E tinha de fazer com que rendessem para todo o período. Ora, “todo” esse dinheiro dava-me para pagar a viagem na camioneta da Pacense até à Avenida dos Aliados e, a partir da Estação de S. Bento, o comboio para Coimbra. E fazer o caminho inverso no final do trimestre. Sim, porque só regressava a casa e voltava a ver os meus pais e família no final do período. Mas a “mesada” também me permitia acompanhar os colegas mais endinheirados nas idas a Coimbra ao sábado à noite, uma ou duas vezes por mês.
E essa fuga até à cidade, normalmente tinha no programa uma ida ao Texas, um restaurante pequeno que acabara de abrir na Baixa, inspirado na comida americana. Sentado ao balcão onde só cabiam quatro ou cinco clientes, a comida era sempre a mesma: “um prego com batatas fritas e um ovo a cavalo”, uma originalidade que me era desconhecida até então. Depois disso, íamos ao cinema Sousa Basto ver um filme de cowboys, que estavam em voga. As duas coisas, proporcionavam-me um fim de semana em cheio. Mas, apesar dessas “extravagâncias”, ainda conseguia poupar algum dinheirito para as férias, a que juntava alguns cobres mais ganhos nos trabalhos que fazia aos colegas menos estudiosos, mas de carteira mais recheada… Enfim, os cem escudos que o meu pai me dava rendiam muito…
E lembrei-me dessa quantia porque, há dias, fui apanhar o comboio Alfa a Campanhã e, contrariamente ao que é normal, cheguei meia hora antes da partida. E ainda bem porque, o antibiótico que andava a tomar, deu-me volta ao intestino e tive de procurar uma casa de banho mal cheguei à estação. Para minha surpresa, tinha à entrada um torniquete e ao lado uma máquina do tipo “papa-moedas”, com a indicação de que precisava de cinquenta cêntimos (cem escudos na moeda antiga) para ter acesso àquela “catedral do alívio”. E, confesso, não gostei. Era a primeira vez que pagava este tipo de “portagem” em Portugal. Até então, só me cobraram a “entrada” em locais de turismo intenso no centro de Praga e Paris.
Por cá, nunca pagara bilhete para poder “arriar o calhau”. Mas, como em tudo na vida, há sempre uma primeira vez… E não tive outro remédio senão “soltar” a moeda. Já não “aguentava” até apanhar o comboio (presumo que nos comboios o “alívio” ainda continua a ser à borla). Sentado na sanita, como não dava para ir a lado nenhum, ocupei o tempo a meditar no assunto. E então ocorreu-me uma questão absurda: como era possível que a utilização de uma casa de banho pública por uma única vez, me custasse tanto como a “mesada” que o meu pai me dava para um trimestre escolar?
Ora, sentado na sanita da Estação de Campanhã, comparava os cem escudos dos meus pais com estes cem escudos (agora tornados moeda de cinquenta cêntimos) que tinha entregue de má vontade àquela máquina estrategicamente colocada por quem faz dinheiro à custa das nossas “necessidades”. E dizia cá para comigo: “Como as coisas mudam. Os cem escudos do meu pai, chegavam e sobravam para as minhas extravagâncias ao longo de um trimestre. Permitiam-me até fazer algumas refeições num restaurante e ir ao cinema. Em contrapartida, os cem escudos (cinquenta cêntimos) que agora me esfolaram, só vão dar para “despejar o saco” e nada mais”. Ou seja: os primeiros, davam para comer e ir várias vezes ao cinema. E os de hoje, só me permitiam pôr o cu naquela sanita uma única vez. Nada mais. Se estivesse de “caganeira” e precisasse de voltar lá minutos depois, já tinha de largar outro tanto.
Afinal, o que mudou? Já sei que me vão dizer que é a desvalorização da moeda, a inflação e outras tretas que tais. Já ouço falar nisso há uns quantos anos. Mas isso não aplacava a minha discordância, quiçá, a minha revolta. Só me restava uma coisa: vingança. E vinguei-me. Gastei um pedaço extra de papel higiénico para limpar e cobrir o bordo em porcelana da sanita sem tampo. E, uma vez ali sentado, só saí depois de a encher com tudo o que de mal cheiroso tinha dentro de mim…