Não há maior prova de amor…

A função do sono é, sem dúvida, repor as energias do corpo. É como se lá entrasse uma equipa de limpeza e manutenção para despejar o caixote do lixo das toxinas, reparar tecidos, fazer descansar os órgãos e filtrar os acontecimentos do dia. Alfred Vogel dizia que “o sono é o remédio do qual não podemos abdicar” e é por isso que andamos um terço da vida a dormir. Eu tenho de “aterrar” seis a oito horas por noite, caso contrário, ando por aí com “um melão na cabeça”, a abrir a boca como se fosse anormal. Já o nosso presidente Marcelo só dorme metade, tal como Napoleão e Margaret Tatcher. Para quem dorme tão pouco, a tarefa de recuperação fica difícil. E, das duas uma: ou a sua “equipa de manutenção” é mais numerosa ou trabalha de empreitada. Mas, dormir nem sempre é sinal de descanso, de recuperação da energia perdida. Quantas vezes não dormimos um número de horas tido como mais que suficiente e acordamos ainda mais cansados? Foi o que me aconteceu esta noite. De manhã estava tão cansado e com o corpo tão dorido, que mais parecia ter dormido a noite dentro da máquina de lavar roupa, aos trambolhões.

Por norma, depois de deitar a Luísa ainda fico pela sala até ela “pegar o sono”. Aproveito para ler, escrever ou ver se há algum filme de ação na televisão porque, como ela não aprecia, só tenho essa ocasião para ver. Se houver, deito-me tarde. E há uma boa razão para a deixar adormecer antes de me deitar: quero poupá-la ao sacrifício e tortura do meu “ressonar”, com que já sofreu quanto baste.

Sei que não sou caso único nem sequer o maior “roncador”, pois quase um quarto da população “toca trombone” à noite, se bem que a maioria não tem essa perceção (nem quer ter). Entre todos eles, há os que afirmam a pés juntos que não ressonam, ainda que não saibam se sim ou não. Depois, existe o grupo dos que admitem ressonar “ligeiramente” nos dias em que estão muito cansados ou quando “enfardaram” um jantar mais pesado. São as desculpas esfarrapadas do costume. Segue-se um grande grupo que ressona muito, mas não considera que isso seja um problema (para eles, não é). E, finalmente, os que têm consciência plena de que são “excelentes roncadores”, a tal ponto que se chegam a acordar a si próprios. Já passei por essa fase, mas agora estou mais contido, com “registo” suave. A Luísa já dorme bem … se adormecer antes de mim.

O ressonar (ronco) é um fenômeno natural, mas pouco agradável, que não é exclusivo dos humanos (a minha cadela Diana brindava-nos frequentemente com algumas “sinfonias caninas” …). Classifico os “roncos” em função da intensidade, começando pelos “sopradores”. Não são mais que respirações profundas tipo “vendaval” ou “bufo”, como quem está a soprar ao lume. Depois vêm os “diplomatas”. São roncos sem nível sonoro elevado e de registo variável. Incomodam, mas parece que não. Seguem-se os “motoqueiros”, pois o ruído que sai da boca dos “roncadores” mais parece o trabalhar de uma moto Harley Davidson em momento de aceleração. O barulho produzido passa a porta e chega ao quarto vizinho. Por fim, os “grunhidores”. Devem ter alguma costela de suíno pois o som produzido através da boca é uma boa imitação do GRRRRRR, GRRRRRR do porco, com os lábios a tremer tipo BRRRRRRRR. Às vezes misturam estes sons com bufos fortes, num GRRRRRR, GRRRRRR — FUUU, FUUU. O ronco atravessa a porta, chega à sala, faz ricochete e inunda a cozinha e tudo fica a vibrar. E então, se estiverem a dormir “de papo para o ar”, o aparelho sonoro vibra no máximo, fazendo o som ecoar pela casa toda, qual terramoto…

Ressonar pode perturbar tanto o sono de quem ronca quanto o da pessoa que dorme ao lado. De tal forma afeta o parceiro(a), que é a terceira causa de divórcio. Ora, só quem passa pela experiência pode avaliar da tortura que pode ser querer dormir ao lado de alguém com esse problema. A situação mais traumatizante que vivi colocou-me um roncador no outro canto do quarto onde dormia. Mal ele pôs a cabeça na almofada, adormeceu de imediato, sem me dar tempo a “passar para o lado de lá” e começou a “grunhir” com tal vigor, que já não consegui adormecer. Fiquei para ali de cabeça enfiada debaixo dos lençóis, coberta com a almofada, na tentativa de atenuar aquele som tenebroso no silêncio da noite. Já a hora ia adiantada e eu sem pregar olho, quando me lembrei duma situação que a Luísa viveu na viagem de comboio de Lisboa para o Porto. Um dos passageiros adormeceu e começou a ressonar, incomodando as outras pessoas. Uma jovem que viajava na mesma carruagem, levou o caso para a brincadeira e disse: “eu calo-o já”. Meteu os dedos à boca, sacou um assobio forte e o roncador calou-se logo. Mas, pouco depois, voltou a ressonar. E a moça assobiou de novo e continuou a assobiar ao longo da viagem, enquanto os outros passageiros se divertiam com a situação. Foi assim que naquele enorme quarto, a meio da noite, dei comigo a assobiar. E ele calou-se … mas voltou ao mesmo de seguida. Dei mais duas ou três assobiadelas e, não sei se foi por ele deixar de roncar ou se foi do cansaço, adormeci. Pensando bem, há uma certa analogia entre os humanos e os perus: ao ouvir um assobio, se nós estivermos a ressonar, calamo-nos. Os perus, sempre que ouvem o assobio, fazem em coro, “Glu, Glu, Glu … Glu, Glu, Glu”.

Outra forma de calar o parceiro(a) que dorme connosco é usando a técnica da cotovelada. Sempre que ele(a) ressone, aplique-lhe uma cotovelada. O roncador para e, normalmente, procura outra posição. Pode não resolver à primeira, mas ao fim de algumas cotoveladas, acaba por encontrar posição que não o obriga a “cantar”. Ou então está a evitar receber mais cotoveladas. Senhora amiga diz que “o cala a pontapé”. Aproveitem. Ao que parece, resulta…

Em conversa entre amigos, questionava-se qual é a maior prova de amor que alguém pode dar ao parceiro(a). Um dizia que é fazer uma declaração pública, de joelho no chão, oferecendo o anel de noivado. Outra, achava que seria ser surpreendida com uma viagem ao destino dos seus sonhos. Um terceiro entendia que o máximo, era um fim de semana romântico em casa, sem mais ninguém, com ele a levar-lhe o pequeno almoço à cama. Por fim, o homem mais velho, confessou o seu pecado: “A maior prova de amor é-me dada pela minha mulher todas as noites”. Os outros olharam para ele e ficaram à espera, para ver o que iria sair dali. E ele continuou: “O mais natural seria que ela, logo na primeira noite passada comigo e ainda antes de amanhecer, fizesse as malas e “se pusesse na alheta”, para não mais regressar. Porque deve ser um sacrifício terrível tentar dormir junto de mim. É que eu … ressono como um porco”.

Reencarnar como mulher? Não…

Falava-se sobre as vantagens e inconvenientes de ser homem ou mulher e, apesar de estarem três mulheres cá em casa e eu ser o único do sexo oposto, no meio da conversa assumi uma vontade: se um dia vier a reencarnar e puder escolher, não quero ser mulher. Claro que tive de me haver contra a argumentação da “oposição”, o que não foi nada fácil pois, como se sabe, é difícil combater a sua dialética. Nada tenho contra as mulheres. Pelo contrário. Devo até confirmar que continuo a gostar muito do sexo oposto e não alinho em modernices nem “mudo de clube”. É um gosto para a vida. Para debate tão desequilibrado tive de usar argumentação forte, mas não as convenci. Reafirmaram que querem voltar como mulheres. Quem sou eu para as contrariar…

As mulheres acham-se sonhadoras, vaidosas, apaixonadas, bonitas e meigas. Muitíssimo mais do que nós. Fica-lhes bem defender a classe. Deve ser por isso que “enfeitam” carros nas exposições ou aparecem sempre que há promoção de chocolates, perfumes e outras coisas doces e bem cheirosas… E nós? Somos feios, brutos, desarrumados, forretas e chatos, e passamos a maior parte do tempo a pensar em sexo (como sendo obsessão masculina). Eu sei que a sociedade é mais tolerante com elas, talvez por serem tidas como o sexo fraco. Começa por lhes facilitar a vida ao terem sempre alguém que lhes abre a porta, as deixa passar à frente e até paga as contas, um “encargo” que fica ao nosso cuidado. Veja-se que, quando são traídas, o homem é um canalha, mas se o traído for o homem, é promovido a “corno” enquanto “o diabo esfrega um olho”. Ou seja, o homem é sempre o mau da fita, o bode expiatório, seja culpado ou inocente…

Eu gosto de ser homem porque entendo um jogo de futebol e não faço perguntas estúpidas como “o que faz aquele senhor vestido de preto com apito na boca”. Além disso, três pares de sapatos são mais do que suficientes para viver sem stress e nem tenho de experimentar vinte peças de roupa na loja para comprar só uma … ou nenhuma. E, além disso, para fazer uma viagem de cinco dias só preciso de levar uma mochila… se for sozinho. Se acompanhado da mulher, não sei se três malas grandes serão suficientes… Às vezes penso que devem levar nas malas alguma mobília de casa…

A conduzir, deteto quando um pneu está furado e sei como trocá-lo, sem que isso seja um drama nem tenha de telefonar à minha mulher para o vir substituir. O que já fiz muitas vezes, por não ser problema, coisa que por regra não fazem, pois é “um problema”. Aliás, não deixa de ser curioso que os homens são muito breves a falar ao telefone e estacionam num espaço pequeno. E a mulher? Precisa de falar muito tempo, uma necessidade inata, e de muito espaço para estacionar, uma dificuldade inata.

Não me gostava de ver como mulher, porque são complicadas. Muito complicadas mesmo. Em casa, sofrem do complexo da limpeza, que cada coisa tem um lugar e uma posição única que não pode desviar-se um milímetro sequer. E, na verdade, estão sempre a “descobrir” que “a jarra não está no sítio dela”, a toalha não está bem dobrada e mal posicionada no toalheiro e o culpado é o homem. Deve ser um martírio sofrer desta “doença” … Para nós, “está tudo bem” e “não se passa nada”. Quando saem, têm de controlar e esmiuçar o mundo à sua volta, especialmente “as outras”. Como vestem, o que calçam, se estão gordas (satisfação) ou magras (inveja). Deve ser um trabalho cansativo.

E como são mordazes com os “machos”, ao afirmarem que, ser virgem, só é defeito nos homens… ou então, ao insinuarem que

“os meus filhos, tenho a certeza que são meus, mas o meu marido não pode dizer o mesmo” …

Nós somos muito simples, diretos e práticos. Tomo banho em cinco minutos, o único creme meu na casa de banho é o de barbear (entre tanta frascaria) e não preciso de me maquilhar para sair à rua. Aos trinta anos ainda era solteiro e não andava preocupado com isso nem ninguém se importava. Mas mulher de trinta anos já é tia, solteirona e ninguém a atura. E todos ligam, olham e importam… Saio de casa de mãos nos bolsos, sem nada. Mulher não consegue sair à rua sem levar a sacola às costas, com tanta tralha que mais parece uma oficina de reparações ambulante. Ah, e ninguém fica a olhar para o meu decote enquanto conversamos. Mulher pode dizer o mesmo? Não creio…

Elas já se dizem satisfeitas por não precisarem de rapar os pelos da cara todos os dias. Ora, nós andamos muitíssimo mais agradados pois não precisamos de rapar os pelos … da cara para baixo, que é muito mais doloroso. Aliás, não gostamos de fazer sacrifícios em nome da beleza. Daí colocarmos uma grande distância entre cera quente e as partes íntimas… e nem temos complexos que nos obriguem a ter de fazer reduções ou aumentos de algumas partes sensuais do corpo…

Reencarnar em mulher dá-me pavor. Só o facto de pensar que viria com a obsessão da limpeza, das dietas, de que ninguém reparava em mim quando corto o cabelo ou uso um vestido novo e ter de pedir desculpa por estar tudo desarrumado sempre que alguém vai lá a casa, fico com os cabelos em pé. Como se homem se preocupe com isso. E acham que resolvem tudo com choro. É a estratégia crónica para conseguir o seu objetivo, ao tocarem a sensibilidade do homem. Depois, dizem que eles são brutos e insensíveis… Algo não bate certo.

Em sua defesa disseram que, quando forem velhinhas, serão vovós simpáticas e elegantes, em contraste connosco, que não passaremos de velhos tarados e chatos. Já nem questiono estes argumentos de desespero, porque são elas que têm problema com cabelos brancos e rugas (que para nós são charme). E com tampas de sanita…

A mulher é complexa, difícil de entender. Para ter sexo é preciso levá-la a jantar fora, oferecer-lhe flores, ir ao cinema ou dançar, levá-la às compras, dar-lhe uma prenda, elogiá-la, mimá-la, referir o penteado novo, a elegância do vestido, sussurrar-lhe ao ouvido e mil e uma coisas mais. Já o homem, só precisa … de um sítio.

E há o estatuto. Quando nos referimos à humanidade, “o homem” é a referência. Podem dizer-me que isso é fruto da sociedade machista em que vivemos, mas não tenham ilusões. A sociedade foi machista (e muito), ainda o é e, quando um dia reencarnar, vai continuar a sê-lo. Provavelmente, ainda mais. Deixem que os islamitas sejam maioria na Europa (quem sabe, em Portugal) e não é preciso esperar muito… Até por isso. Se reencarnar, quero voltar “macho”.

Mas, para concluir, uma preocupação séria: desde a minha infância, em que a mulher era marcadamente secundarizada, verificaram-se avanços notáveis da nossa sociedade no caminho da igualdade de direitos, embora ainda longe de ser atingida. Não sei quanto tempo mais será preciso para tal acontecer, se é que chegará a acontecer. É necessário um esforço continuado e, mesmo assim, em qualquer momento desse percurso tudo pode ser revertido e “voltar à estaca zero”. Já aconteceu noutras sociedades, vai voltar a acontecer e nós não somos diferentes nem estaremos imunes…

Esperar, sim. Mas há limites…

Embora ninguém goste, esperar faz parte da vida. Todos esperamos de várias formas e em mil e um momentos. E, quase sempre, não gostamos. Estamos sempre à espera de alguma coisa: de um filho, uma oportunidade, um amor, uma decisão, um emprego, um sim, um negócio. Esperamos numa fila, uma chamada, resolver algo que nos atormenta, uma cirurgia. Há coisas simples de espera curta e outras mais complexas e demoradas. Se há esperas cujo fim depende de fatores aleatórios, outras estão balizadas nos seus limites, do que é razoável ou não. Quando um hospital público informa que consultas de especialidade estão com mais de cinco anos de espera ou nos fala um governante em “mil dias de espera”, algo não faz sentido e passa além dos limites. Ou é uma forma de reduzir os números da lista de espera, porque muitos já lá não chegarão. Esperar desgasta e cansa. E espera-se meses e anos por licença de construção, cirurgia, justiça…

Ao esperar por ideias para esta crónica, recordei a anedota sobre a mãe brasileira que estava com o filho à espera de ser consultado. A funcionária dos serviços de saúde aproximou-se e perguntou-lhe: “Desculpe, quem é que vai ter consulta, a senhora ou o seu filho”? E ela, de imediato, respondeu: “O meu filho”. A funcionária retorquiu: “Pois então, tem de ir com ele para o serviço de pediatria, destinado às crianças. Aqui, as consultas são só para adultos”. Sem manifestar intenção de sair, aquela mãe disse à funcionária: “Eu sei. Mas, como as consultas estão com tanto atraso, quando o meu filho for atendido já será adulto com toda a certeza. Por isso, estou no lugar certo” …

Diria que somos um país “bipolar”: se nalgumas áreas de atividade estamos na linha da frente a nível mundial e não ficamos a dever nada a ninguém, temos outras onde, pelo contrário, somos parecidos aos países do terceiro mundo. É excelente recebermos galardões de melhor destino para viajar e ver as ruas “inundadas” de turistas e negócio, com alguns até a mudar os “trapinhos” para cá. Mas alguém tem de fazer alguma coisa a sério e acabar com os “atrasos de vida” de que, quem cá mora, padece. Porque o Estado “que nos vende” a teoria de que é preciso aumentar a produtividade, é o principal “pedregulho no caminho” para a alcançar. E por incrível que pareça, há serviços públicos em Portugal que nos fazem esperar tanto ou mais do que a senhora da anedota. Verdade!!! Porém, na anedota, ela estava mentalizada para esperar enquanto nós, crentes de que isto aqui não é o país do Carnaval, não acreditamos que seja possível “apanhar uma seca” de todo o tamanho.

Seria errado generalizar o disfuncionamento dos serviços públicos porque alguns são excelentes, eficientes, onde respeitam os cidadãos e os seus direitos. Mas outros há … que Deus me livre.

A Luísa precisou de uma junta médica. Entre o momento em que me dirigi ao serviço competente para o efeito e o da sua realização, só decorreram quase … nove meses. Não foi uma gravidez, mas mais pareceu. Só para conseguir o relatório médico do hospital onde fora internada a quando do episódio de urgência, esperamos mais de três meses. Não sei se o problema é da falta de meios ou da organização. Eventualmente, das duas. Certo é que, com esta “pressa”, há quem já não venha a precisar …

Nalguns Serviços, esperar é a sina de todo o bom cidadão, num (mau) exemplo de como não deveríamos ser tratados. Mas somos. Visto de cócoras, a “culpa” é do sistema educativo que nunca nos “preparou” nem ensinou a esperar eternamente, a “sofrer com resignação” sem revolta nem espírito de “reclamante suicida”. Nem sequer nos treinou a fazer meditação: enquanto “ausentes da realidade”, não sofríamos o suplício da espera…

O Estado, através da EP-Estradas de Portugal, S. A., expropriou uma parcela de terreno para a construção da autoestrada. É normal e nada tenho a opor. Mas, já lá vão TREZE anos e ainda não recebemos um cêntimo. Nada. Razões? As do costume. Como não concordamos com os valores propostos porque, além do terreno expropriado também havia lugar à indemnização pela desvalorização da parcela restante, recorremos à justiça, que nos deu razão. Mas, como para pagar o que importa é “quanto mais tarde, melhor”, a EP-Estradas de Portugal, S. A. recorreu para a Relação. E perdeu. E continuaram a não pagar. O dinheiro não abunda nos cofres públicos e é preciso “empurrar com a barriga para a frente”. E recorreram para o Supremo. Contra o que é habitual, o Supremo disse que a desvalorização da parcela é assunto… do Tribunal Administrativo. Tudo isto ao fim de TREZE anos. E nós, para receber aquilo a que temos direito, tivemos de apresentar a ação no Administrativo. A segunda fase da “via sacra”. Quando contei o sucedido a um advogado amigo, perguntou-me: “está preparado para esperar outros tantos anos ou mais? O último caso que tive nesse tribunal só demorou… dezoito anos”. Fiz logo as contas de cabeça: juntando os TREZE anos que já esperamos a mais DEZOITO anos que podemos ter de esperar, é uma espera louca, digna de candidatura ao Guiness. Consegue ser superior à espera da senhora brasileira da anedota. Não dá só para o filho ficar adulto. Dá até para fazer um, criá-lo, educá-lo e deixar que ele nos dê um neto. E para envelhecer e “bater a bota”.

A justiça só é proveitosa a cidadãos e empresas se for executada em tempo útil. Caso contrário, pode chegar quando já não faz falta nenhuma. Ou, como diz o povo, “quando chegar a palha, já o burro está morto”. Que me importa uma sentença favorável se, quando for decidida, eu tiver “cansado de esperar” ou nem sequer já andar por cá para usufruir dela? Repito: há serviços públicos exemplares, mas outros há que são como “estrada sem fim”, fazendo cair o labéu da burocracia, da ineficácia e uma imagem de país de terceiro mundo sobre toda a administração pública. Injustamente. Porque se “toma o todo pela parte”, generalizando-se. E não é correto.

Senhora amiga sofre de cancro e está a fazer quimioterapia. Como se lhe não bastasse o sofrimento e o turbilhão de incertezas que carrega dentro de si, para marcar uma consulta, obter a baixa médica a que tem direito e outras coisas mais, tem ouvido “passe amanhã”, “venha para a semana”, “só no próximo mês” e outras piores, aguentando a espera em silêncio. Não é justo. Para cúmulo, nas últimas sessões de tratamento de quimioterapia, traumatizantes e nada fáceis, chegou a esperar horas já no local onde ia ser feito, porque “a sua medicação ainda não chegou”. Se calhar, descobriram agora que a espera cura o cancro! Que se faça esperar o cidadão que está saudável, vá que não vá. Ele já conta com isso e podia estranhar se o não fizessem. Mas, pelo menos, haja respeito pelos que estão em sofrimento extremo, porque “esse”, já lhes é mais que suficiente…        

O dinheiro e as tretas do costume…

Dizem que “o dinheiro não dá felicidade”, mas ainda não encontrei ninguém que não queira experimentar. Até já me disseram que, “se não dá felicidade, pelo menos paga tudo do que ela gosta”. Há quem diga que “essa história de que o dinheiro não dá felicidade é um boato espalhado pelos ricos, para que os pobres não tenham muita inveja deles”. Se calhar, é. Se virmos bem, não é mais feliz aquele que tem 100 milhões de euros do que o que só tem … 99 milhões. Certo é que, se “o reino dos céus é regido pela justiça este reino onde temos os pés se rege pelo dinheiro”. Quem negar esta evidência ou está a mentir ou a enterrar a cabeça na areia para não ver a realidade. Ter dinheiro, é bom, dá confiança e tranquilidade. Problema é de quem não o tem. Alguns estudiosos, que provavelmente não têm mais nada que fazer, para medir a influência do dinheiro no grau de felicidade e depois de muitos inquéritos, chegaram à conclusão que setenta e sete mil euros por ano é a quantia mínima para atingir a satisfação que garante a felicidade. Já com quarenta e nove a sessenta e um mil euros anuais, só se consegue obter “o bem estar emocional”. Não vi no estudo nada sobre os que ganham pouco. Não contam. Por estas estatísticas, em Portugal há pouca gente feliz. Afinal, isto confirma que é preciso algum dinheiro para a gente se sentir minimamente bem. Não propriamente por ele, mas por aquilo que proporciona.

Sempre tive uma relação de amor/ódio com o “vil metal”, estando bastante empenhado em conseguir o necessário para viver, mas sem ser seu escravo nem viver só para ele. Há muito mais vida para além do dinheiro… Mas cedo comecei a aproveitá-lo bem ao ser pago pela presença nos chamados “atos únicos”: Funerais. Quando integrava a “cruzada”, recebia uma “coroa” (cinco tostões). Em cerimónia triste, para nós, miúdos de então, era uma alegria. Uma coroa!!! Punha logo a minha a “render”, “investindo” na loja do Tio Peixoto na compra de rebuçados com cromos de jogadores de futebol. Mas, para atingir a “felicidade suprema” (completar a caderneta), precisava de muitos funerais, como quem diz, muitas “coroas” … Em Coimbra fiz trabalho de “mercenário” aos colegas mais endinheirados e nada empenhados no estudo, a troco de dinheiro, apesar de algumas “borlas” a colegas mais “lisos” do que eu. E quando entrei na vida profissional, saltei de uma situação para outra na procura de melhores condições e … mais dinheiro.

Para a sociedade, dinheiro significa poder, aceitação social, conforto e segurança. Muito dinheiro dá estatuto, prestígio e prazer. Torna o cretino inteligente, o escroque homem sério e o estúpido esperto. E, sem se perceber porquê, até o feio vira bonito e o covarde herói. Pelo dinheiro se mata, se engana, ludibria, mente e trai. O que importa é consegui-lo. O como, não interessa. Com o dinheiro compra-se o pão, o azeite, as batatas e o bacalhau, tal como se compra a bicicleta o carro ou o avião. E também se compra gente de todas as profissões e estratos sociais, de porteiros a políticos, de dirigentes a servidores. “Se é fácil dobrar uma nota de quinhentos euros, um monte delas dobra qualquer um”.

Na cidade de Cabedelo, no Brasil, houve golpe no baú do dinheiro da prefeitura. De onze vereadores, cinco foram presos e outros cinco “afastados”. Sobrou um e nem se sabe bem porquê. Perguntam os

Munícipes: “Cadê o Dinheiro Que Tava Aqui”? Como de costume, ninguém sabe. Mas sabe-se que dinheiro é tentação e facilmente corrompe. A vontade de ganhar muito e depressa vence preconceitos e princípios, faz esquecer valores em troca de outro valor palpável.

O meu chefe, que também era deputado na Assembleia da República, dizia-me muitas vezes: “Todo o homem tem um preço. Eu só ainda não sei qual é o meu”.

Óscar Wilde foi um escritor irlandês, mestre do sarcasmo e da ironia. Escreveu: “Quando eu era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje, tenho a certeza”. Ele deve ter percebido que, quem tem dinheiro, tem muitos amigos. Ou, melhor, comensais. É o mesmo que juntar amigo com dinheiro emprestado: é razão para perder os dois. Daí não ser a melhor atitude emprestar dinheiro. Mais vale dá-lo. Quando se dá, faz-se um ingrato. Mas, ao emprestar, arranja-se um inimigo.

O dinheiro é o motor da economia, mas não tem “cartão de cidadão”, identidade, nem responsabilidades legais pelos problemas que nós geramos. Cabe-nos a nós a responsabilidade de o conseguir, de saber como, quanto e de que forma. E, sobretudo, de o saber usar. Porque não é rico quem ganha muito, mas quem muito poupa. Com alguma ponta de inveja, um amigo falava-me de uma pessoa que tem vindo a acumular património à custa de muito trabalho e sacrifício, como se fosse caso único. Tive de lhe “lembrar” que podia ter um património ainda maior do que o outro, pois ganhara muito mais dinheiro que ele, não fosse tê-lo “derretido” em jogo, mulheres e carros, a ilusão normal do dinheiro fácil. E o problema, é que se transmite aos filhos o hábito do consumismo desenfreado e irresponsável, dando-lhes a ideia que o dinheiro cai das árvores sempre que se precisa, bastando um pequeno abanão, que é como quem diz, “oh pai, dá-me dinheiro”. E o pai dá, sem conta, peso e medida. São erros que nós pagamos, são lições erradas que as gerações seguintes sempre vão pagar.

O dinheiro é um ditador que tanto faz apelo ao trabalho, à força de vontade, à dedicação, ao sacrifício, à persistência e a tantos atributos positivos do ser humano, como aos mais baixos instintos, levando a que não se olhe a meios para atingir um único fim: ter dinheiro, até muito dinheiro ou talvez muito, muito dinheiro. Como se o acumular dinheiro seja o fim em si, o objetivo e não um meio para…

Nos cemitérios, encontramos jazigos onde se perpetua a memória dos que ali estão sepultados, com epitáfios diversos, lembrança dos entes queridos. Nesta corrida infernal pelo dinheiro, só me falta ver num desses jazigos: “Aqui jaz o homem mais rico do cemitério”.

Mas, com a competição feroz que há, é título que se pode perder a qualquer momento…

Esta mania de “meter o bedelho onde não se é chamado”…

Os dois automóveis chegaram quase em simultâneo vindos de lados opostos e, ao encontrarem-se em pleno cruzamento, pararam já que cada um queria virar à esquerda, cortando a linha de trânsito do outro. De repente, como que impelidos por um comando único, arrancaram ao mesmo tempo e chocaram de frente. O estrondo foi grande, alguns os estragos e espectadores… nenhum. Só os dois condutores “viram” o acidente. Com o barulho da colisão o dono do café próximo e os poucos clientes, movidos pela curiosidade, saíram a correr para ver o que se passara, rodeando os carros sinistrados. De dentro de um deles, muito combalido, saiu um homem de idade enquanto no interior do outro a jovem condutora deitava as mãos à cabeça incrédula. Logo a seguir, dois automobilistas encostaram à berma e pararam, ao verem que havia acidente. E juntaram-se “à festa”, querendo saber o que acontecera. Instalou-se uma grande confusão quando a mulher de meia idade que saíra de um dos carros apontou o automóvel da jovem sinistrada e acusou: “Aquela é que foi a culpada, porque não parou no cruzamento” … Mas não ficou sem resposta, pois o rapaz de cabelo encaracolado encostado ao carro da adolescente, saiu em sua defesa: “Você não vê que foi ele que não lhe deu passagem”? Quase todas os que iam passando, de carro ou a pé, paravam e juntavam-se ao grupo, fazendo engrossar a multidão ao redor dos sinistrados: “O que foi que aconteceu”? “De onde vinha”? “Quem foi o culpado”? “É alguém conhecido”? “Para onde ia”? E, umas vezes devagar, outras vezes “de cabeça”, entravam na conversa, quando não na discussão, em que cada um já contava a sua própria versão do acidente e tomava partido por um dos sinistrados, como se tivesse presenciado e fosse testemunha ocular do acidente.

Somos assim. Faz parte da natureza humana este desejo mórbido de “meter o bedelho onde não somos chamados”, de espiolhar a vida dos outros. Daí o sucesso do “Big Brother” e outros programas que tais. Porque queremos saber dos podres dos outros (talvez para esquecer os nossos). Nos acidentes, não só queremos estar informados do que aconteceu, como aconteceu e porque aconteceu, ainda que ninguém nos consiga elucidar. E até tomamos partido e tendemos a inclinar-nos a favor de um dos lados, como quando vemos um jogo de futebol em que não conhecemos nenhuma das equipas. Ao fim de poucos minutos, estamos a desejar que ganhe uma delas, seja pela cor das camisolas, pela cara de um jogador, por uma ou outra atitude que nos tocou. É difícil ficar neutro.

Também num acidente onde se chegou atrasado, normalmente toma-se partido e tantas vezes sem saber qual a razão. E depois de “colher a informação completa”, as pessoas vão-se embora e replicam a história do acidente com muitos outros “acidentes” à mistura, transformando um pequeno sinistro neutro e vulgar, numa história com enredo próprio de guião de filme. E ao fim de contarem a história do acidente uma dúzia de vezes, cada vez mais alterada, resulta em algo como: “Conheces aquela senhora de cabelo ruivo, comprido e liso, que anda a passear todas as manhãs na rua com um cão pequenino e que tem uma tia velhota a viver por cima da senhora Miquelina, que mora ao lado daquele senhor doente que anda sempre a tossir, pai daquela solteirona de cabelo preto? Ora, a prima dela, que trabalhou na casa de roupa de criança que fica perto dos Bombeiros e agora faz limpeza na loja da esquina, casada com um homem grande e barrigudo que tem um Mercedes preto, entrou no cruzamento da sapataria sem dar sinal, bateu com a frente ao de leve num Skoda azul que vinha da esquerda conduzido por um coxo que é primo daquela boazona que está naquela loja de roupa …”

Num acidente, o grande perigo de que temos de nos precaver vem dos mirones. Param de qualquer maneira, sujeitos a provocar ou ser vítimas de alguém que não consiga parar a tempo. Porque, ao ver um acidente qualquer, mesmo que já lá esteja alguém a dar assistência, a curiosidade manda parar para saber o que aconteceu. Fazemos disso questão de honra para depois contar aos amigos em primeira mão, como se tivéssemos assistido ao acidente em lugar privilegiado e sejamos o “juiz” mais habilitado para contar, comentar, julgar e condenar o culpado.

O meu amigo Zé teve um acidente. Em conversa afável o condutor da outra viatura deu-se como culpado e aceitou o acordo amigável. Tudo estava bem até ao momento em que os “mirones” entraram em cena. Tomaram partido e fizeram com que o culpado “desse o dito pelo não dito” e se recusasse a assinar a declaração amigável que acordara. Com a interferência dos mirones alheios ao ocorrido, foram parar a tribunal e … perderam os dois. O habitual… Como se não bastasse, ao parar para satisfazer a curiosidade inata ao comum dos portugueses, também se tem de tomar posição e defender convicções de culpado ou inocente, mesmo sem ter visto nada.

É este voluntarismo ingénuo e espontâneo que nos caracteriza, onde em regra se põe o coração e não a razão, que nos torna especiais. E nos permite comentar sem ver, criticar sem conhecer e julgar sem saber. O curioso é que, anos mais tarde, quando já ninguém se lembra do que aconteceu nem como aconteceu, alguns destes mirones ou outros que nem sequer o foram, são arrolados como “testemunhas isentas e sérias” por um daqueles sinistrados, para jurarem a pés juntos e pela saúde da sua rica mãe”, que viram o acidente, relatando-o com pormenores de romance policial e fazendo inclinar a balança para o lado da “injustiça”, sem que nada lhes pese na consciência. E até se compreende, porque só pode acontecer a quem a tem …

Por favor, não “inferem” a Becas…

A raiva é uma infeção provocada por um vírus e transmite-se através do contacto da saliva, por mordedura. Foi erradicada em Portugal há muito tempo, mas como precaução, a vacina é obrigatória para cães com mais de três meses de idade. E a Becas, a minha nova cadelita, está vacinada e protegida. No entanto, tenho andado preocupado, muito preocupado mesmo, porque corre sérios riscos de poder vir a ser infetada com uma nova “variante” desse vírus mortal e não sei como protegê-la. O novo “vírus” tem-se espalhado a uma velocidade incrível, maior do que a dos incêndios do verão passado no centro do país, tornando-se já uma epidemia que o Ministério da Saúde deve reconhecer a qualquer momento. E o meu grande receio é que um dos infetados apanhe a Becas distraída e lhe pregue uma mordidela “à falsa fé”.

O problema é grave e todos os dias podemos ver gente infetada com o novo “vírus”. Basta assistir a qualquer programa de televisão sobre futebol e ouvir comentadores “isentos”, para ver as manifestações da “doença,” em convulsões violentas. Arreganhando os dentes de forma agressiva, “infetam” todos os que não estão imunes às “mordeduras”, transmitindo o “vírus” pessoa a pessoa, em contágio sucessivo, dos cafés ao emprego, das tertúlias aos tascos. Os dirigentes inflamam os adeptos e estes as redes sociais, onde vertem o “vírus”, convencidos de que são opinião avalizada e não sectária, disseminando a doença de forma avassaladora. E são tantos os “infetados” que, nesse jogo da bola, “mordem” com violência, sem já se aperceberem que o fazem. Como se fosse natural.

Mas, se passarmos do futebol à política, as manifestações de “raiva” são mais que muitas, porque não são admitidas opiniões contrárias. Há que denegrir os adversários, atingi-los na sua vida pública ou pessoal com tudo o que há de pior, “mordendo” de qualquer jeito e em qualquer sítio para tentar abatê-los e diminuir a concorrência. E “ataca-se” com a estratégia da “alcateia”, em grupos organizados, não se limitando a “morder” só os inimigos externos, de outros “credos”, mas também os próprios companheiros de grupo que possam ser um estorvo para as suas ambições pessoais. Da Assembleia da República às Assembleias Municipais, dos Congressos partidários aos comícios, a doença está disseminada. Ouvi-los e vê-los, é assistir ao contágio do “vírus” em direto e a cores, nalguns casos na forma mais “virulenta”. E infetam legiões de seguidores, que o reproduzem com mais ou menos intensidade, num “efeito bola de neve”.

É por isso que não deixo a Becas ver televisão, ler jornais ou ouvir rádio. Muito menos entrar nas redes sociais e ler opiniões inflamadas e agressivas, ofensivas da boa educação. São “mordeduras” graves e muito contagiosas, que a podem “infetar”. E sei que a “raiva” pode degenerar em ódio, um derivado ainda mais perigoso e fatal porque atrai a vingança, num círculo de “ferro e fogo” que não para.

Os acessos de “raiva” não são um exclusivo do mundo do futebol, da política e das redes sociais. Nada disso. A “infeção” já alastrou a toda a sociedade e é visível em manifestações mais ou menos públicas. Algumas delas são feitas às escondidas, com o “raivoso” a “morder pela calada”, atrás do anonimato cobarde e mesquinho.

Um amigo, dirigente conceituado de uma instituição social à qual dedicou parte da sua vida, desabafou comigo, triste e revoltado, por ter recebido uma carta anónima onde o acusavam de vários absurdos inimagináveis. Estava chocado com tanta maldade e mentira, que só tinha um pensamento: demitir-se. Ele, que dera uma boa parte da sua vida à instituição como voluntário, era vítima da “raiva” vertida por um “covarde”, que só o queria destruir. Quando li a carta, não reagi e ele, ansioso, perguntou-me: “Não achas revoltante? Porque é que eu tenho de aturar isto”? Vou-me embora e não quero ouvir falar mais na Instituição” … Não foi fácil, mas consegui acalmá-lo. Mas ainda o ouvi: “Eu pensava que dediquei a minha vida a cuidar de desgraçados e, afinal, o desgraçado sou eu”. Tive então de lhe dizer umas quantas coisas a que ele estava alheio. É que, nem sequer sabia que as cartas anónimas viraram praga e os dirigentes das IPSS são os mais visados. Usa-se e abusa-se desse meio para, a coberto do anonimato, denegrir, vilipendiar e tentar manchar a reputação de gente séria que dá o seu melhor ao serviço dos outros. A vez dele chegara, como chegara a de tantos outros. E vai continuar.

A delação dos informadores no tempo da PIDE era criticada e hoje a lei alimenta e protege os “bufos” que condenava no tempo da ditadura. O que não deixa de ser curioso… E disse-lhe ainda que eu também já tive o “privilégio” de receber umas quantas cartas anónimas enquanto dirigente da instituição a que presido. Para mim, são um bom indicador. Se não as tivesse recebido, era sinal de que era “um banana”, “um gajo porreiro”, mas que não zelara pelos interesses da Instituição. Já me acusaram de bater nos idosos do Lar, de os roubar, dar-lhes fome e outras mentiras mais que mirabolantes, que só uma mente em delírio seria capaz de inventar. E até enviaram cópias ao Presidente da República, Polícia Judiciária, Segurança Social e outras entidades.

Preocupado? Nada, nem sequer um pouco. Estou de consciência tranquila, tal como os restantes dirigentes da Instituição. Com esta autoridade moral, participamos ao Ministério Público e informamos a Segurança Social porque, “quem não deve não teme”. Há que alertar as autoridades para o perigo de mentes “raivosas” à solta. E temos de proteger os calcanhares…  Por isso, o meu amigo só podia sentir-se ofendido por ter recebido uma única carta anónima. Já tinha estatuto para ter mais no currículo…

Cartas anónimas são habituais quando a Instituição está bem e é ano de eleições. Porque, quando está mal, ninguém lhe pega. Carregam a “raiva” e, ao mesmo tempo, a cobardia dos seus autores, incapazes de denunciarem os factos (se os tiverem) nos locais próprios e de cara destapada, como gente de bem. Que não são. Ao ouvirem relatos de ilícitos numa ou outra instituição, “medem todos pela mesma bitola” e julgam os outros em função daquilo que eles próprios são.

Se os “acessos de raiva” que vemos na televisão e redes sociais são o sintoma triste e deprimente de que parte da sociedade é intolerante e doente, as cartas anónimas são reveladoras de gente com “raiva” e incapaz de se assumir, o que a torna mais perigosa para a Becas. É que, jovem e ingénua como é, pode deixar-se “morder pelas costas” por “cão raivoso que não dá a cara”. Por isso, vou ter de protegê-la com a única vacina que conheço ser eficaz contra esse perigo: “Uma consciência perfeitamente tranquila” …

Pelo sim, pelo não, árvores abaixo…

Ando muito atarefado e já quase não tenho tempo para escrever a crónica da semana. E isso traz-me uma preocupação: a possibilidade de ser despedido pelo diretor do jornal e ficar sem emprego. E sem ordenado… A razão principal está nas árvores do meu jardim e no malfadado decreto de limpeza das florestas. Não tenho uma floresta à volta de casa, mas tenho árvores que se tocavam umas às outras e cuja copa estava perto de casas, a começar pela minha. Como sou burro e não sei interpretar a lei, ao que parece tal como os seus autores, pelo sim pelo não achei que era melhor deitar abaixo a maior parte das árvores que plantei já lá vão quarenta anos, com muito amor e carinho. Algumas têm troncos que não consigo abraçar. É a forma de me ver livre de autoridades à porta de casa e de receber um “papelinho” de que ninguém gosta, para ir pagar um certo valor em euros, que me faz mais jeito a mim do que ao estado (embora este tenha uma dívida bem maior do que a minha). Quem está feliz com esta decisão é a minha família. Já estavam fartos de me repreender, pois não querem que ande pendurado nelas, feito macaco, a esgalhá-las e limpá-las, às vezes a mais de quinze metros de altura. Chegam a dizer-me que tenho idade para ter juízo. Feliz também está minha a mãe porque, com o abate das árvores, de porte considerável, vou arranjar-lhe uma boa rima de cavacos (porque eu não gasto).

Ao abatê-las, fico dividido. Triste por ter de matar aquilo a que dei vida. Plantei-as há tanto tempo e deram-me muito, em sombra, verde, sinfonia de pássaros, beleza, frescura de verão e prazer. Daí que não seja nada fácil uma decisão destas. Mas, na sua morte, encontro a compensação de usar a força dos braços para cortar, serrar e rachar os troncos em cavacos. E, por estranho que pareça, gosto de rachar lenha. É uma mania como outra qualquer. Tenho jeito para pegar no machado, o que não é de admirar, porque o “carrego” todos os dias… no nome.

Como ainda ficaram quatro ou cinco em pé, vou ter de decidir se mando tudo abaixo e deixo o terreno mais careca do que eu ou se arrisco, deixando alguma delas já sem “família”, plantadas na encosta sem ter quem as proteja dos ventos fortes que vêm do lado do mar em dias de tempestade. E são cada vez mais. Também tenho de decidir o que fazer com os arbustos, trepadeiras e tufos de ervas rasteiras, pois dizem que o terreno tem de estar limpo, não sei se igual ao interior da moradia ou como nalgumas casas de banho públicas em dia de feira…

Bom. Não fiquem preocupados porque ainda não perdi o juízo. Gosto do meu jardim e são outras razões, que não as de um decreto lei feito à pressa para “tapar olhos”, que me leva a medidas tão drásticas. Mas é certo que, isto de limpar os terrenos florestais bem limpos até ao dia quinze de Março, tem muito que se lhe diga. E eu não acredito e ninguém acredita, que o país vai fazê-lo da forma que o governo quer e obriga (será que sabem o que querem dos cidadãos?). Para limpar uma faixa de dez metros de largura ao longo das estradas deste país já é tarefa impossível. Seriam precisos meios que não temos, dinheiro que não há e gente que está lá fora (e não está cá). E tempo. Por outro lado, é uma estupidez pegada querer que a limpeza seja efetuada até quinze de Março. É que, lá para meados de Agosto, os terrenos terão outra vez mato e todo o tipo de infestantes tão desenvolvidas, que vai ser necessária nova limpeza, com novos custos. E quem vai passar a vida a fazer limpeza e gastar dinheiro nos terrenos que produzirão nada? Serão só um custo que não gera rendimento. É melhor dá-los a quem queira gabar-se de ser proprietário, se houver quem. Caso contrário, será conveniente entregá-los ao estado… e o estado que os mande limpar, se é que o vai fazer. Que se saiba, não o faz naquilo que já tem. Basta ver bermas e taludes de estradas que são propriedade sua, já para não falar nas matas nacionais…

A nossa região é caracterizada por aquilo que se chama “povoamento disperso”. Isto é, há casas “plantadas” por todo o lado. Ao contrário de outras regiões onde as construções estão concentradas em pequenas ou grandes povoações, nós espalhamos as habitações ao longo das estradas à medida que elas se foram abrindo, fosse no interesse das populações ou dos proprietários… Por isso, é fácil encontrar essa mistura explosiva de casas e matas (não costumamos chamar-lhe floresta, até porque raramente as matas são de grande dimensão), o que, à luz da lei, vai obrigar os proprietários a limpar tudo num perímetro entre cinquenta e os cem metros a partir da parede exterior das casas (o que acho ser muito pouco. Seria preferível o raio de um quilómetro e, mesmo assim, num incêndio como o de Outubro passado, não era suficiente).

Ora, como as matas não são grandes, é certo e sabido que algumas pessoas vão pensar que têm uma bouça, de onde, eventualmente, podem retirar algum rendimento. Mas, na realidade, o que têm é um problema, pois pode estar toda dentro do tal perímetro e lá se vai o rendimento, mas fica o custo.

Isto não vai resultar? Vai… durante os dois primeiros anos. Enquanto não há nada para arder. E depois? Logo se verá. Tal como não vai dar certo ter meia dúzia de sapadores por aí, a trabalhar oito horas por dia pelo que se diz, como num escritório. Ao que sei, os incêndios não param de “lavrar” para ir dormir… E se não resolver? Os governantes têm joelhos que servem de mesa e é fácil lançar novas medidas e com elas outros custos para os mesmos (que somos todos, especialmente os proprietários). E já ninguém se lembrará destas medidas avulso, a não ser aqueles que as pagaram e que vão ficar sem os “cavaquitos” para o inverno. Em bom abono da verdade, não é um mal para todos. Que o digam chineses e espanhóis, quando tivermos de consumir mais um bocado de eletricidade para não “raparmos” frio, vendida pelas suas empresas. Eles agradecem, cobram… e nós pagamos.

Quem tem coragem de se esquecer?

A dona do café estava muito surpreendida. Quase na hora de começar o jogo entre o Futebol Clube do Porto e o Liverpool para a Liga dos Campeões, o café continuava praticamente vazio. Ao contrário do que era habitual neste tipo de jogos, os clientes não apareceram. Desconhecendo a causa de tal debandada, comentou isso com uma colaboradora e amiga. E ela deu-lhe uma boa razão: “Hoje é o Dia dos Namorados. Tu achavas que os clientes tinham coragem de vir ver o futebol e deixar a namorada ou a mulher em casa, sem irem jantar fora? Desengana-te”. E, tirando um ou outro cliente mais idoso, certo é que a grande maioria de clientes habituais, não apareceu. O café ficou “às moscas”. Os que não gostam da equipa dos “dragões”, é natural argumentarem que os adeptos portistas já adivinham o “desastre” em casa e temiam apanhar uma “abada” como veio a acontecer, mas a realidade é que a razão foi mesmo a invocada pela amiga: “não podiam faltar ao compromisso, que implicava jantar fora com a namorada ou mulher. O resto, era conversa”.

Se recuarmos alguns anos atrás, o Dia de S. Valentim mais conhecido por Dia dos Namorados, era ignorado pela maioria da população e, tirando casos isolados de casais de namorados, passava despercebido ao comum do cidadão. Mas isso era há uns anos atrás. Agora entrou na moda sair e comemorar. Por isso, quem é que tem coragem de esquecer uma data destas? Ninguém. Melhor, nenhum homem.

Nós temos tendência para não dar importância a datas, esquecendo o aniversário da mulher, do casamento e da sogra, do dia em que conhecemos a cara metade, do dia da mulher e tantas outras que agora são tidas como datas importantes e têm de ser festejadas, doa a quem doer. E, entre essas datas, está o Dia dos Namorados. Quem é o homem que arrisca esquecer tal dia? Nenhum. Nem sequer os que são casados (e que na grande maioria já nada têm de namorados) se permitem correr o risco. Tal como a malta mais ou menos nova, têm de vestir a sua melhor “fatiota” para estar à altura da “toilete da madame” e ir jantar fora. No mínimo. Mas não pode ser a um sítio qualquer. Que é isso? “Ir comer àquele “restaurantezeco” da esquina? Não faltava mais nada”, diz a mulher ou a namorada.

E o homem, como macho convencido que quem manda lá em casa ou na sua relação é ele, tem sempre a última palavra: “Sim, querida. Vamos onde tu quiseres”. É que, nas “fofocas” com as vizinhas, quando uma mulher sabe que a outra vai ao restaurante X, ela decide logo que tem de ir jantar a uma quinta. Está-se a ver porquê…

Mas, há que ter em conta que é preciso reservar lugar “naquele” restaurante ou “naquela” quinta com muito tempo de antecedência, caso contrário, corre-se o risco de “bater com o nariz na porta” e ter de ir comer uma febra grelhada à Tia Maria ou um hambúrguer com maionese no MacDonalds e, mesmo nesses, esperando na “bicha”. E isso não ajuda nada ao “bom nome” do homem junto da mulher ou namorada. E estou a lembrar-me dos pais de uma pessoa amiga. Como o pai está a trabalhar no estrangeiro, quando veio gozar uns dias a Portugal, em cima da hora decidiram ir jantar fora. Mas era o Dia dos Namorados. Correram os restaurantes que conheciam e acabaram por jantar muito bem… em casa. Estavam todos esgotados. Por isso, é melhor fazer a reserva já para o próximo ano. Se até lá terminar com a relação, não se preocupe, pois pode servir-lhe para a relação seguinte ou mesmo ganhar alguns euros ao revender a sua reserva ao “desgraçado” que se tenha esquecido e esteja “à rasca” …

Mas se o homem pensa que levar a sua querida a jantar fora já é suficiente para o “manter em alta” na sua consideração, quem sabe com direito a “prémio” depois da janta, desengane-se. E o resto? Sim, o raminho de flores (e não pode ser um ramo qualquer)? Se não “andar da perna” e deixar a compra para a última hora, é certo e sabido que já não vai encontrar as rosas vermelhas de que ela tanto gosta e que são o símbolo do amor e da paixão. E depois? Oferece-lhe um ramo de cravos amarelos ou de jarros brancos? Mais valia pegar numa corda e enforcar-se, pendurado pela cintura (pelo pescoço não, porque lhe falta o ar …). E ficamos por aqui? “Alto e para o baile”. Há mais qualquer coisa. E a prenda? Sim, a prenda? Pode ser uma peça pessoal em ouro ou prata. Cai sempre bem e marca pontos junto da sua “mais que tudo”. Se a “massa” não sobrar muito depois de pagar o jantar, tem de saber escolher algo que permita um brilharete sem ultrapassar o orçamento. Como alternativa aos objetos pessoais, deve optar por uma dormida fora em hotel com spa. Pode acabar por ser um pouco mais caro, mas um dia não são dias e tem duas vantagens: por um lado, ela gosta (e vai a pensar nas massagens no spa) e por outro, o homem também gosta (e vai a pensar nas “massagens” noutro local, que não o spa…).

Na pressa dos dias, inventaram-se os dias com nomes para não haver pressas. E as empresas comerciais, através do marketing agressivo e da publicidade intensa, encarregaram-se de gravar a fogo na mente de todos nós, a imperiosidade de os comemorar condignamente. Ou não estejam elas interessadas no negócio que isso gera. É uma forma de escapar à pressão das rotinas diárias, que torna os dias iguais. E nisso, as mulheres estão aí para nos lembrar, quando algum de nós tem o atrevimento, a ousadia ou a coragem de se esquecer. É que, se o esquecermos, durante os próximos cem anos (se tanto durarmos) e nos momentos certos, vão cobrar-nos esse lapso de memória infeliz e atirar-nos à cara: “porque tu há cinquenta e dois anos, esqueceste-te de me levar a jantar fora no Dia” … É que elas nunca esquecem…

O cães “ladram” e a caravana…

Quando pela manhã consigo vencer a preguiça e arrastar o traseiro para fora da cama, visto o fato de treino, calço as sapatilhas (não percebo porque raio agora teimam em chamar-lhe “ténis”) e ponho um boné. A Becas, a minha nova cadelita, corre para mim com o rabo a abanar tanto que, qualquer dia, ainda se desaparafusa e cai. É a sua forma de exprimir alegria pelo passeio que se avizinha. E não acalma enquanto não lhe colocar a trela e caminhar para a porta da rua. Ao atravessar a soleira e dar os primeiros passos lá fora, a “sinfonia” começa de imediato, tocada pela “cãozoada” dos arredores: “Ão, ão, ão. Béu, béu, béu”. Gostava de saber como é que os cães, alguns deles distantes e em lugares de onde é impossível verem-nos, dão conta de que estamos a passear. Ou melhor, de que ela está a passear… E ao longo de toda a caminhada a cena repete-se constantemente, com cães grandes e pequenos, presos ou soltos, escondidos ou à vista, mais próximos ou mais distantes, todos a ladrar. Às vezes, até dou comigo a imaginar no que cada um estará a dizer, eventualmente em “conversa” com o cão vizinho porque, se for para ela, dá-se ao luxo de não lhes responder. Não sei se algum dos cães a cumprimenta com um “bom dia” ou “olá” ou se até tem o atrevimento de lhe atirar um piropo (que se cuide, pois ainda pode ser acusado de assédio sexual). Pela forma vigorosa e agressiva como alguns cães ladram, penso que as suas intenções não são nada simpáticas, postura de seguranças à entrada de discoteca. Calculo que os cães mais “convencidos”, talvez dececionados porque ela não lhes liga, vão dizendo entre dentes e rosnadelas para os que os rodeiam: “Esta cadela tem a mania e não nos liga nenhuma”. E “quem será esta meia-leca sarapintada”? Ou, num lamento latido, afirmam: “quem me dera poder também passear o meu dono, em vez de estar aqui amarrado o dia todo ao cadeado, sem água nem comida”. Há também os atrevidos, geralmente cães vadios, que se aproximam devagar para lhe cheirar o rabo, ladrar duas ou três vezes e urinar na parede mais próxima a marcar terreno. Chega a ser curioso observar os seus rituais, as reações com a cauda para cima (amistosa) ou para baixo (agressiva), o medo e a simpatia, a curiosidade e a indiferença. A Becas não se dá por achada. Só num ou outro caso é que se permite dar-lhes atenção, abanando a cauda de satisfeita. Caso contrário, cheira em volta e, em resposta, também “marca terreno”, urinando.

Tudo isto não será muito diferente do comportamento dos seres humanos… Basta passearmos na rua e vemos logo que temos muito em comum, embora com procedimentos diferentes. Se homens ou mulheres passam na via pública, especialmente em meios pequenos como o nosso, como é que reagem as outras pessoas à sua passagem? “Ladram” também, não da mesma forma que o fazem os cães, mas à maneira humana.

Em regra, os cães são mais “transparentes”, pois exteriorizam bem alto a sua “fala”. Nós “ladramos” em surdina para alguém que esteja ao nosso lado, disfarçadamente, para os visados não nos ouvirem. Na minha (in)capacidade de tradução das “falas” caninas, os seus “comentários” à passagem da Becas são muito de regozijo por ela estar em liberdade, sinal de solidariedade canina, do que de inveja ou fofoca sobre a sua vida privada.

Ora, já o mesmo não se poderá dizer do “latido” dos humanos ao verem outro humano a circular na rua. Em regra, são muito mais críticos que simpáticos. Se for mulher, que passou a andar bem vestida, é algo assim: “Como é que esta gaja arranja dinheiro para andar tão bem arriada, se só ganha o salário mínimo? Há moiro na costa…” Ou algo como “já viste o corte de cabelo daquele? É tão ridículo…” E, “não sei de que é que este fulano vive”. Quando o visado é homem, pode ser: “este tipo comprou carro novo, mas não paga o que me deve”. Ou “vejam lá aquele senhor, com a posição social que tem e anda tão mal vestido”. Pior ainda, se um homem passa três vezes em frente da casa de uma mulher, mesmo que por acaso: “Aquele anda a rondar a porta da Maria. Aqui há gato” …

Para além disso, ao contrário dos cães que só ladram enquanto sentem a presença do outro cão, nós ficamos a “ladrar” do visado muito para além da sua passagem. E a duração do “corta e cose” só depende de ter ou não quem faça coro e alimente a conversa. Fala-se do que se vê e do que se não vê, do que se sabe e muito mais daquilo que se não sabe. Num ápice, conta-se a vida do transeunte mesmo que, de facto, nem se conheça. Relatam-se os locais onde se viu, o que disse, se sorriu ou chorou, com quem estava, o que fez e, com algum jeito, o que estava a pensar.

Os cães são frontais. Se não gostam, ladram. Se têm medo, ladram. Se estão contentes, ladram. E ladram sempre, sem subterfúgios, sem disfarces, sem alibis. Nós não. Temos dificuldade em ser diretos, em assumir os comentários que fazemos. Por isso, falamos escondidos atrás da vidraça, do balcão ou do muro, quase sempre baixinho e “à boca pequena”. “Ladramos pelas costas”, muitas vezes sem saber de quê e porquê. A necessidade imperiosa que temos de “desenferrujar a língua”, “de morder pela calada”, “de cortar na casaca” dos outros, põe-nos a matraca a dar, a dar.

Para quem passa “na caravana”, tem de agir como a minha cadelita: Levantar a cabeça e seguir em frente, sem dar importância ao ladrar da “cãozoada”, nem valorizar os cochichos e olhares indiscretos.

Os cães só cheiram o cu dos outros para os identificar. Porque é pelo cheiro que os reconhecem. Nós, não. Tentamos “cheirar” quem passa para saber da sua vida e “meter o nariz onde não somos chamados”.

Mesmo que seja no mesmo sítio onde os cães cheiram os cães…

 

Só com sacrifício e muito trabalho é possível realizar os sonhos…

Não sou dos que tem horror a chefes. Nunca tive qualquer complexo em relação a quem mandava em mim, porque sempre pensei que é muito importante haver quem mande. E saiba mandar. E uma boa parte da minha vida fui subordinado, tanto em organismos públicos (onde não parei muito tempo, felizmente), como em empresas. E recordo com saudade alguns dos meus chefes de serviço, com quem aprendi e de quem fui amigo. Mas há um por quem nutri uma admiração especial, pela sua história de vida, pela seu trabalho e luta para perseguir e atingir um sonho. Em tempos difíceis e ainda garoto, partiu para Angola, onde começou como marçano, servindo ao balcão de um estabelecimento comercial. Como não queria que fosse esse o seu futuro, foi estudando à noite, num regime de disciplina rigorosa até completar o liceu, o que viria a conseguir sem perder um único ano. Mas ainda não alcançara o seu objetivo, o seu sonho. Queria ser agrónomo. Matriculou-se na faculdade, continuou a trabalhar e estudar com um programa rigoroso onde definia ao minuto os tempos de trabalho, de estudo e lazer, sem ceder à tentação do desleixe ou do convite imprevisto. Cumpria o horário com rigor espartano, mas concluiu agronomia sem uma reprovação e com excelente média. Quando no final do curso um amigo lhe disse “tu tens cá uma sorte!!!”, ele só lhe conseguiu responder: “se tu soubesses quanto custa ter sorte”??? Sempre que me lembro dele, vem-me à memória a sua história de vida, da perseguição de um sonho que conseguiu somente à custa de trabalho, muito trabalho mesmo, a quem só a má fé ou ignorância poderia estupidamente chamar de “sorte”. Seria caso para dizer: “tive sorte uma ova…”

Mas, se a história do meu antigo chefe pode e deve inspirar qualquer um, há quem invoque argumentos facilitadores desse sucesso, como o caso de ter começado muito jovem e com emprego estável, que lhe permitiu um rendimento seguro. E não ter quaisquer compromissos nem responsabilidades, fatores que fizeram toda a diferença. Até certo ponto, são circunstâncias que deram o seu contributo para o sucesso. Mas não apagam de forma alguma o empenho e dedicação, que saem intocáveis e podem servir de modelo a muita gente.

São muitos os exemplos desse esforço para ir mais além em busca de um sonho, de uma vida melhor, de mais instrução. Em cada um há uma história com mais ou menos sacrifício, mais ou menos empenho, mas sempre com muito trabalho. Conheço uns quantos mais, que me merecem o maior respeito e admiração. Até porque nesse caminho de sacrifício, onde foram recebendo vozes de estímulo e alento, também encontraram inveja, raiva e maldade, onde só deveria haver apoio incondicional.

A senhora andava entusiasmada e feliz, pois conseguira passar a todas as cadeiras do primeiro período, o que era um acontecimento. E tinha muitas e boas razões para se sentir orgulhosa, embora não o demonstrasse, escondida atrás da sua simplicidade e humildade: fora dos poucos alunos que “limpara” o período, entre as dezenas que frequentavam aquele primeiro ano da faculdade, a grande maioria muito mais jovens do que ela; voltara a pegar nos livros quase duas décadas depois de deixar a escola secundária, tempo que dedicara a cuidar da família; para poder estudar e continuar a sustentar a casa, tem três empregos onde trabalha à hora a cuidar de idosos e doentes e até a fazer limpezas, sendo a sua única fonte de rendimento; e seria uma omissão grave não dizer que tem a seu cargo uma criança de que é mãe e de quem cuida com responsabilidade, zelo, carinho e amor, fruto de um casamento que acabou em divórcio há muito tempo. E isso fez com que tivesse de “agarrar a vida pelos cornos” para “poder dar conta do recado” e “levar a água a bom porto”. Por essas razões e muito mais, tinha bons motivos para se poder orgulhar. Foi com esse estado de espírito que encontrou uma amiga de longa data, que conhecia bem a sua vida de trabalho e sacrifício desde o colapso do casamento.

Falaram disto e daquilo e, na sua simplicidade, disse-lhe que ganhara coragem e voltara a estudar, matriculando-se no curso com que sempre sonhou. E que tinha passado em todas as cadeiras do primeiro período. Enquanto contava o que lhe estava a acontecer, a “amiga” foi perdendo o tom alegre com que alimentara a conversa, esmoreceu e depressa se foi embora. Não voltaria mais a procurá-la. Inicialmente surpreendida, viria a reconhecer nela o sentimento de perda, por já não a ver na “mó de baixo” e não ser mais a “coitadinha”. Para além da inveja, que terá feito com que a “amiga” se fosse… E o mais triste, é que esta mistura de sentimentos negativos, de raiva e inveja, tanto ela como a mãe já os têm encontrado noutras pessoas, até mesmo na família, como se o seu sucesso educativo as diminua, como se fosse crime “levantar a cabeça” e querer olhar mais além.  Porque, bom, bom, era vê-la a trabalhar de segunda a segunda, todas as semanas do ano, sem descanso semanal nem mensal como o vinha fazendo desde que se divorciara, feita “gata borralheira” enfiada no canto, aquele canto onde não se provoca invejas nem se faz sombra a ninguém. Como se já não lhe bastasse a vida de trabalho e estudo, para ter ainda de “aguentar” estes “atrasos de vida” …

Ao conhecer este caso, não posso deixar de lembrar o sentimento que descobri entre agricultores de uma região do país há bastantes anos, que me deixou incrédulo: “Não estavam preocupados, nem sequer interessados em ter bons campos de milho. O que os deixava verdadeiramente felizes e lhes bastava, era que os campos de milho dos vizinhos fossem piores do que os seus” …

Após a revolução de Abril e em pleno período de convulsões, um dos militares que assumiu mais protagonismo mediático foi convidado para realizar uma conferência na Suécia. No final, um dos elementos da organização, perguntou-lhe qual era para ele o principal objetivo da revolução portuguesa. A resposta foi imediata: “Acabar com os ricos”. Ao que o sueco contrapôs: “Pois a nossa intenção por cá é de acabar com os pobres” …

Esta nossa tendência para o “fado da desgraçadinha”, de ver sempre o “copo meio vazio” e puxar para baixo quando se devia empurrar para cima, foi motivo de anedota nesse período revolucionário. “Um operário americano, quando via passar o patrão no Cadillac, dizia: “Um dia vou ter um carro maior do que o teu”. Já na Inglaterra, o operário ao ver o patrão num Rolls Royce, comentava: “Vais ver que um dia, se não tiver um carro igual ao teu, não vou andar longe”. E em Portugal, o operário ao ver o patrão no Mercedes, previa o seu futuro comum: “Um dia, vais ter de andar a pé como eu”.

Porque será que há quem fique desconfortável e com medo que “o outro” persiga ou realize o seu sonho e atinja o Céu???