É mais fácil dizer-lo, que fazê-lo…

Foi um sábado louco. Meti na cabeça que tinha de completar alguns trabalhos de “jornaleiro” cá em casa e só parei quando começava a anoitecer. E, para quem tem o “chassi” empenado, “ferrugem” nas dobradiças e o “motor” a gripar, qualquer esforço suplementar pode ser demasiado para a máquina. Mas, vá que não vá, aguentou-se bem e deu conta do que lhe foi pedido. Mas eu explico: como tanta gente, tenho uma moradia construída há mais de quarenta anos. Tem quase a idade da nossa democracia. E jardim à volta, algum com bastante inclinação. Havia o quintal, mas tive de fazer dele um pequeno campo de jogos no tempo em que os meus filhos queriam jogar. E não foi um tempo muito longo. Passou depressa, como lhes passou a vontade de jogar. Uma parte do jardim tornou-se autêntico bosque com árvores frondosas, algumas com a idade da casa. No ano passado mandei abater umas quantas para a casa poder apanhar sol e deixar de ter cá dentro um ambiente húmido. Não satisfeito com isso, este ano pedi a um amigo ajuda para me cortar dois carvalhos e um castanheiro mas, ao contrário do ano transato, fiquei com os toros e lenha espalhados pelo campo de jogos, que passou a ter alguma utilidade. E para quê? Para fazer cavacos e lenha miúda picada, tudo destinado à minha mãe e à salamandra que lhe faz companhia no inverno. Foi a pensar nos “trabalhos” em que me estava a meter, que ela me ofereceu a prenda ideal: uma motosserra. Ora, ao receber tal oferta, o “compromisso” de lhe fornecer material combustível ficou implícito. Como praticamente só ao fim de semana é que me vinha dedicando à tarefa de fazer dos “roletes” cavacos, isso já se arrastava ao longo do último mês. Daí que neste sábado disse cá para os meus botões: “hoje vou ter de arrumar com este assunto”. De manhã dei uma volta mais aligeirada com a Becas e, mal cheguei a casa, comecei a empreitada.

De motosserra e machado na mão, fui-me aos últimos “roletes”, os mais difíceis por terem “nocas”. E só parei quando estavam feitos em bocados. Depois, foi acabar a rima de cavacos, onde já só chegava com escada, fazer outra com a lenha miúda, arrumar e despachar todo o lixo que fiz e, finalmente, lavar o campo de jogos com água à pressão. Enfim, a tarefa estava concluída … pensava eu. A noite caía quando fui tomar banho, satisfeito pelo “dever cumprido”.

Dormi bem nessa noite, apesar de me doerem todos os ossos e músculos (é nestes momentos que me dou conta que temos muitos), mas no dia seguinte acordei para a realidade: ainda tinha muito trabalho a fazer pois o jardim da encosta tem ervas com quase um metro de altura, é preciso cortar a relva noutra parte, tratar dos tomateiros e alfaces plantados há poucos dias e umas quantas coisas mais que, bem vistas as coisas, nunca mais têm fim.

Ora, esta é a sina de quem tem um pedaço de terra ao redor da casa e não gosta de o ver a monte. É a sina e a desdita. Enquanto se tem força de vontade e energia, é um prazer enorme e a coisa bem vai. Mas, quando a “máquina” geme ao mínimo esforço, o prazer vira maldição e vemo-nos confrontados com o dilema de ter um pedaço de terra, de que gostamos, e a incapacidade de cuidar dele conforme deve ser, e que é sacrifício. Quantas pessoas não há por aí que não conseguem ver o seu “quintal” por cultivar ou o jardim descuidado? E, para que isso não aconteça, vão-se arrastando atrás da enxada, da tesoura de poda ou da máquina de cortar relva (e um relvado dá muito trabalho), a querer “evitar o inevitável”, porque ninguém vai ficar a “morar” cá eternamente, só para tratar dessas questões. É fácil dizermos a alguém que já não pode cuidar da horta ou das vides, algo como: “Deixe ficar a monte e não se rale mais com isso”. É muito fácil mesmo. Difícil é a esse alguém, que cuidou do seu cantinho durante uma vida inteira, deixar de o fazer. “Fica mal. O que vão pensar de mim os vizinhos”, diz o dono. “Não consigo ir ao terreno e vê-lo a monte. Era uma vergonha” …

O senhor Manuel já comemorara os seus noventa anos de idade há alguns meses, quando o médico o proibiu de fazer esforços e de se incomodar. “O coração está preso por um fio”, disse-lhe o doutor. “Não puxe por ele, que pode partir-se a qualquer momento”. Mas, quem é que conseguia convencê-lo a deixar de pegar na enxada e tirar as ervas que nasciam no meio da horta? Os filhos, casados e com as suas vidas organizadas, já só lá iam ao fim de semana … se a vida o permitisse. E não cultivavam terreno … nem sabiam. Por isso, não valia a pena contar com eles. Só podia contar consigo pois, por eles, o terreno ficaria votado ao abandono. “Era o que faltava”, dizia ele. Normalmente, essas pessoas que estão “agarradas” ao seu canto, conquistaram-no a pulso e com muito sacrifício. E, como lhes custou tanto, dele tiraram sempre tudo o que era possível, quase sempre em trabalhos para além da hora laboral e ao fim de semana, rendimento extra para compor o orçamento familiar, não traduzido em dinheiro, mas em hortaliças, vinho ou fruta. E no prazer de colher e saber o que se está a comer …    

Não tenho pretensões de ser como o senhor Manuel e a minha horta é coisa pequena … mas dá que fazer. Pior é o jardim. Também sou dos que não gostam de os ver descuidados, mas prometo a mim mesmo não ficar “apanhado do clima” se os vir votados ao abandono.

É tão fácil de dizer. Só não sei se o vou conseguir fazer …

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