Heranças, partilhas e falta de senso…

Diz-se que somos todos iguais: “Nascemos nus e partimos nus, sem nada da “carga” que possamos ter nesta vida. Também nas partilhas pobres e ricos são iguais, pois não é preciso muitos “teres e haveres” para pôr irmãos contra irmãos, pais contra filhos, netos, sobrinhos e tios contra quem quer que seja. Tinha razão Gustavo Lázaro quando escreveu: “Herança é aquilo que os mortos deixam para que os vivos se matem”. Casos há em que não se deixa arrefecer o corpo do morto para começar a guerra pela herança, quais abutres à volta da carcaça. E outros há que fazem a partilha durar mais do que a “guerra dos 30 anos”, dando tempo para tudo, até para alguns dos beligerantes irem ficando pelo caminho sem sequer chegar a “pôr as mãos na massa”.

Quando morreu uma mulher num Lar de Idosos, apareceram vários filhos que nunca tinham a visitado, mas preocupados e interessados nos brincos da pobre senhora, o seu único bem. A cena acabou num arraial de pancadaria entre os herdeiros à porta do Lar, na tentativa de ganhar o direito aos brincos talvez pelo maior número de murros, uma nova forma (se calhar, de sempre) de ter prioridade na partilha. Penso que só quem não tem mesmo nada de seu é que está livre de vir a saber no outro mundo que os filhos fizeram da partilha uma luta ou mesmo uma guerra. Mas onde menos compreendo essas batalhas é em heranças milionárias, com valores que deixam bastante bem os herdeiros. Se calhar até compreendo, porque nunca estão satisfeitos.

Anna Sommer, mãe do milionário António Champalimaud, faleceu há cerca de 44 anos e o processo de partilha da sua herança arrasta-se nos tribunais onde permanece ativo. Já morreram os 4 filhos e alguns netos, mas a partilha não. Entre muitos absurdos deste processo há o caso do Mercedes 220 S da falecida. Quando foi vendido por 3.500,00 euros, já tinha pagado de estacionamento em garagem mais do dobro desse valor e havia dado origem a 50 requerimentos e despachos. O mesmo acontece com a herança de outro milionário, Manuel Vinhas, falecido no mesmo ano de Anna Sommer, cujo processo de partilha continua a ser uma fonte de rendimento para … advogados e tribunal. 

Quando falavam ao Cardeal Cerejeira de uma família onde os irmãos se davam muito bem ele costumava dizer: “Já fizeram as partilhas”? E a pergunta era pertinente …

Há tantos irmãos que começaram a vida a brincar felizes e inocentes e acabam os seus dias sem se falarem por causa de partilhas, tal como os filhos, primos, tios e sobrinhos. Dizia-me uma senhora já com certa idade que, para salvaguardar a excelente harmonia que existia na sua família e garantir que os filhos continuariam unidos quando partisse desta vida, tinha resolvido a partilha em vida a contento de todos. 

Os advogados recomendam que, não havendo acordo amigável entre os herdeiros sobre a partilha dos bens, o melhor para a resolver é o processo de inventário, que passa pela nomeação do cabeça-de-casal a quem cabe identificar os herdeiros e os bens a partilhar. Só que não é garantido um processo tranquilo e de fácil entendimento, porque há egos difíceis por se acharem demasiado grandes, interessados que ganham mais fomentando a discórdia e que são parte do problema, velhos rancores que saem do baú. Quando está em causa a divisão de bens de valor diferente e avaliação um tanto subjetiva, demasiadas vezes vem ao de cima a inveja, a cegueira, a ganância e as rivalidades, que fazem da partilha um cozinhado difícil, feito de suspeitas e falta de senso, quando não de má-fé.  

Mas a tentação por “deitar a mão” ao que não se ganhou é tal, que até se usa de oportunismo e desonestidade para “engrossar” a herança e conseguir que o “naco” seja maior, o que não é para admirar quando se trata de bens, numa ganância e invejas desmedidas muito típicas dum ser humano. Foi o que aconteceu com os filhos de um agricultor na região, “caseiro” de uma quinta que tinha nos vários filhos, como era habitual, a sua maior riqueza. Entre eles estava Maria, moçoila bonita apesar de humilde, que não passou despercebida aos olhos de um tio, emigrante no Brasil que conseguira amealhar um património interessante em terras do Pica Pau Amarelo. E, apesar dos cochichos e ditos que isso viria a gerar pela diferença de idades, o tio brasileiro pediu-a em casamento, tendo ela aceitado e rumado com o já marido para o outro lado do Atlântico, depois de se despedir da família que amava tanto e onde havia sido feliz.  Passados anos, querendo ajudar a família que por cá ficara, mandou ir um irmão que, com a ajuda do seu marido, montaria uma padaria (negócio típico de portugueses naquelas bandas), vindo a subir na vida com o sucesso do negócio. Em certa altura foi posta à venda uma casa com um grande quintal muito bem localizada na terra natal e uma pessoa amiga informou-a de que seria uma excelente oportunidade de negócio. À distância, pediu ao pai para lha comprar o que viria a acontecer e para o efeito foi enviando remessas de dinheiro com que ele liquidou o valor do prédio, tendo este sido posto em nome dele. Mas os anos “voaram”, a filha brasileira foi envelhecendo e o pai faleceu. Quando o pai morre os filhos juntam-se para conversar sobre as partilhas dos “tarecos” e, apesar do prédio ter sido comprado com o dinheiro da filha e para a filha, os irmãos ignoram-no e consideram que é parte integrante da herança e, como tal, tendo de entrar nas partilhas de que eles são “legítimos” herdeiros. Dum momento para o outro, estalou a guerra naquela família tão unida, feita de acusações, rancores, traições e ameaças, numa questão em que a filha “brasileira” viria a sair bem prejudicada por aqueles que considerava e deviam ser, seus irmãos e amigos. Anos mais tarde ela confidenciaria a um amigo de infância que tinha muitas saudades do tempo em que era pobre, pois tinha uma família grande e feliz, com todos os irmãos a darem-se muito bem e em que era um por todos e todos por um. Porque tudo aquilo que o dinheiro lhe trouxera não compensara o muito que perdera. Fora a pior coisa que lhe aconteceu não por ter de ceder aos outros parte dos direitos que eram só seus, mas porque a partilha destruíra a união da sua família de que sentia tantas saudades e não gostaria de ter perdido por preço nenhum.

Ainda hoje um pai questionava se valerá a pena deixar alguns bens de herança aos filhos, temendo que em vez de serem meios que os possa unir, sejam antes armas de arremesso numa guerra que transformará amor fraternal em ódio, falsidade e traição.  

Como às vezes a pior coisa que se pode receber é uma herança, vale a pena pensar se devemos deixar cair essa “bomba” no meio dos filhos e demais família no momento em que “recebemos guia de marcha” e que pode “rebentar” com a união familiar, deixando feridas em várias gerações. Ou se temos a obrigação e dever de deixar tudo preparado atempadamente, funcionando como árbitros isentos num “jogo” onde todos devem sair vencedores. 

Mas, ao enveredar por esse caminho, é bom não esquecer que não se pode cair na tentação de entregar tudo a eles antes do “fim do nosso tempo” sem salvaguardar os meios para viver condignamente, só por que se continua a pensar demasiado nos filhos, apesar de já terem a obrigação de “voar” sozinhos. Por isso devo lembrar as lições de um velho provérbio que é preciso ter presente: “Quem dá tudo o que tem antes que morra merece levar com uma cachaporra” …

E conheço tantos casos num caminho cheio de arrependimentos!!! 

Cuidado, já abriu a “época de caça”…

Estava eu a dormitar, mais para lá do que para cá, quando senti um arrepio na espinha sem saber se estava a sonhar ou acordado porque descobri que, para mal dos meus pecados, eu também sou um “ele”. E

este ano esse “ele” é bem importante. “Ele”, aquele que se vai levantar da cama, enfiar uma roupa limpinha, sair à rua faça chuva ou faça sol, se dirija à escola local, sede da Junta de Freguesia ou até, em caso de recurso, à capela mortuária, se deixe ficar na fila de máscara colocada a aguardar a sua vez para ser identificado e depois lhe entregarem um papelinho onde vai pôr uma cruzinha (se quiser pôr, porque tem esse direito) e onde quiser, mesmo que não escolha os quadrados. Porque “ele”, o “eleitor”, é uma espécie rara em vias de extinção. Não basta estar inscrito como eleitor para o ser. É preciso ir lá, votar, caso contrário não conta, a não ser para efeito das estatísticas. Basta olhar para o nível da abstenção em eleições autárquicas, tal como noutras eleições e que tem vindo a subir de ano para ano. Se continuar assim, temos de concluir que o “eleitor” é cada vez mais valioso. Neste ritmo crescente dos preguiçosos e desiludidos da política, qualquer dia só aparecem os candidatos e famílias, para se elegerem a si próprios …

Ora o “eleitor”, como espécie rara que é, precisa de ser acarinhado, bem tratado, compensado por ter saído da cama só para botar uma cruzinha no boletim de voto, mesmo que não acerte no quadrado. É que ele tem de fazer um grande esforço para escolher, talvez não o melhor, mas o menos mau dos candidatos. Mais ainda, se por acaso sair num dia estival que convida a uma ida à praia, é precisa muita força de vontade para resistir à mulher e filhos que querem lá saber da “botação”. Para atrair esta espécie rara e levá-los a votar, já que não se podem atrair “pelo cheiro da comida” como se fazia nos dias de comício ou convívios partidários, nem pelas “cantigas ao desafio” ou pelo “cheiro a bacalhau” do Quim Barreiros, seria oportuno copiar os americanos de Nova Iorque e pagar 100 euros a cada um para os atrair e levar a votar …

Embora a campanha eleitoral não tenha começado oficialmente, a “temporada de caça ao voto”, por alguns tida por “temporada de caça ao eleitor”, já está aberta e onde vale tudo ou quase. Aliás, diz-se que “para conquistar o poder, os homens praticam todas as ações, mesmo as boas”. É que o voluntariado na política acabou há muito. Já lá vai o tempo em que o presidente da Junta de Freguesia não ganhava nada a não ser uma carga de trabalhos, embora nunca faltassem candidatos para aparecer nas listas por qualquer partido. O importante era ser convidado. Há muitos anos, dizia-me um presidente de Junta, muito sentido ao saber que para as eleições seguintes o partido pelo qual fora eleito havia já anunciado um outro candidato para o substituir sem sequer o avisar: “Sabe, vou-me oferecer ao partido adversário e vou ganhar. É que, isto de ser presidente da Junta não vale nada, não se ganha nada, nem dá prestígio a ninguém. Mas, bem lá no fundo, todos querem ser”.  

A dois meses das eleições autárquicas a “corrida” ainda não começou e tudo parece estar a cozer em lume brando. Os porcos podem andar descansados e rumar ao São Bento da Porta Aberta em peregrinação à pata e agradecer o paradoxo de ter sido precisamente uma doença a poupar-lhes muitas vidas, porque não vai haver “porco no espeto” …

Mas é pura ilusão e os sinais estão aí, disfarçados da forma habitual já que, ano de eleições é ano “anormal” de obras. Por vários razões tive de percorrer alguns concelhos da região e em muitos locais esbarrei com os tais sinais duma campanha eleitoral encapotada: inúmeras estradas interrompidas em reparação, ruas esburacadas, construção de infraestruturas de todo o tipo, pavimentações novas, pinturas de passadeiras e outros riscos mais para dar vida ao piso e segurança a quem passa, passeios lavados. Os trabalhadores municipais não têm mãos a medir, as máquinas não param e, mesmo assim, não dão conta aos tantos pedidos que é preciso satisfazer até Setembro, apesar da arregimentação de empreiteiros e sub-empreiteiros que também não chegam para as encomendas, até porque estão com dificuldades em conseguir mais pessoal. Trabalha-se dentro e fora de horas, por conta da câmara, da Junta de Freguesia ou dos Fundos Europeus, numa luta contra o tempo já que é o “agora ou nunca”. Nestes períodos, vem-me sempre à memória a imagem de um presidente da câmara da região à frente da máquina, qual sinaleiro a orientar o trânsito, tal o empenho na recandidatura e o apego ao lugar, orientando o manobrador sem deixar de fazer conversa com os munícipes beneficiados pelas obras, a lembrar que cumpria sempre o prometido qual propagandista em feira de ano, num espetáculo quase patético e indecoroso. 

Por muito que o poder seja “interessante e agradável”, o objetivo não justifica o uso de todos os “argumentos”, muito menos os “meios públicos” para colher dividendos partidários e pessoais em ano de eleições, atirando areia para os olhos do eleitor e fazendo dele um imbecil que não vê a estratégia por detrás da “obra de última hora”. A ser assim, melhor será que os mandatos sejam anuais e todos os anos sejam também anos de eleições … e de obras. Pobre votante que escolhe, escolhe e (quase) sempre escolhe mal, para depois, feito bobo, ficar a reclamar das taxas, da burocracia, da demora em conseguir uma licença, como se houvesse tempo para cuidar dessas ninharias …

Tenho muita dificuldade em entender este tipo de governação, que é um mal crónico da nossa “democracia”, orientada prioritariamente para atrair a caça ao voto e a perpetuação no poder, defendendo-se a manutenção deste como um fim em si e não como o meio para servir. Aliás, desta mesma doença padecem os governos da nação. Winston Churchill disse que “a diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pensando sempre nas próximas eleições, enquanto o estadista decide a pensar nas próximas gerações”. 

Nos quase 50 anos de democracia não aprendemos nada. Antes pelo contrário, perdeu-se a ética e a transparência, deixando a nu a “chico-espertice” e arrogância do poder, que fizeram dos cidadãos pedintes de serviços públicos que deveriam ser direitos seus, e são, mas pelos quais têm de mendigar quando deveria ser o contrário, agora com o argumento da pandemia como desculpa para tudo. E, quando acabar a pandemia, há de arranjar-se com certeza outro “bode expiatório” “para não sairmos da cepa torta”, da baixa produtividade de que o estado a todos os níveis é o maior responsável e nos faz perceber que a verdadeira democracia é uma miragem, enquanto o país caminha para mais pobre da União Europeia, mendigando a solidariedade com a mão estendida, já que só estaremos em condições de a receber … 

O Futuro já começou …

Para quem veio dum tempo em que a maioria das pessoas andava a pé, de burro ou em cima de um carro de bois; em que ter bicicleta já era um privilégio, ser dono duma motorizada “Pachancho” um luxo, poder passear-se numa moto uma extravagância e conseguir ser proprietário de um automóvel uma raridade; se caminhava de pés descalços, quando muito de tamancos; vestir calças de cotim remendadas e um velho casaco esburacado já era bom; lavrar a terra agarrado à rabiça do arado puxado por bois, sem qualquer tração mecânica, sem indústrias onde ir trabalhar, morando em casas que mais pareciam cortes de animais sem água canalizada, eletricidade, gás, telefone, internet, televisão, eletrodomésticos de qualquer espécie era comum; cozinhar a lenha apanhada no monte à socapa, sem assistência médica, direitos ou regalias sociais era o normal na região, pode-se dizer que O Futuro já começou há muitos anos. Porque nesse tempo, nem nos sonhos mais ousados imaginaria a maioria dos avanços tecnológicos, agrícolas, industriais, sociais, na educação, saúde, transportes, comunicação e tudo o mais. Seria preciso um livro enorme para descrever à exaustão todas as mudanças nas diversas áreas de atividade ao longo do tempo e até aos dias de hoje. 

Assisti a mudanças absolutamente espantosas que deixariam boquiabertas as pessoas desse tempo: a velocidade com que se passou a ir dum ao outro lado do mundo, as facilidades de comunicação e os meios disponíveis com imagem e voz seja de onde for e para onde for, das máquinas mais sofisticadas de tamanhos gigantes às incrivelmente microscópicas, o ultrapassar constante dos limites da ciência ao desporto, da tecnologia à capacidade infinita da produção de bens em muitas situações à custa da natureza. Hoje, ao tomar conhecimento de mais uma descoberta ou invenção, de mais um avanço na ciência seja em que ramo for, não deixo de me interrogar: será que ainda se vai inventar algo mais sofisticado, mais pequeno, mais eficiente? O futuro vai trazer-nos mais e mais coisas novas? E, ao que se diz e anuncia, sim. Será um mundo melhor? Será pior? Certamente bem diferente, com grandes mudanças para as quais é preciso estar preparado. Com melhores e mais meios? Seguramente. Mais humanizado? Tenho sérias dúvidas, até porque nos afastamos demasiado da natureza à qual não será fácil regressar e com quem precisamos de viver em harmonia. Senão, ela castiga-nos, faz de nós “gato sapato” como se fossemos brinquedo nas mãos de uma criança e expulsa-nos com extrema facilidade. Basta olharmos para as mais recentes catástrofes naturais, em locais onde tudo parecia estar sobre controle. Dizia uma mulher que nem sabe como se conseguiu salvar na torrente de água e lama que assolou há dias a Alemanha: “Eu nunca imaginei que fosse possível isto acontecer aqui no nosso país, onde pensei sempre que tudo era seguro e estava sob controle”. Mas não estava nem nunca estará, porque o ser humano não se sobrepõe à natureza …

Em 1998 a Kodak tinha 180.000 funcionários, vendia papel fotográfico em todo o mundo. Em poucos anos o seu negócio desapareceu. Quem imaginaria isso? Com a invenção das máquinas digitais, depois integradas nos telemóveis, deram-lhe o golpe fatal. E o que aconteceu com a Kodak e a Polaroid, aconteceu com milhões de indústrias e serviços à medida que a sociedade se reinventa e vai continuar a acontecer em muitos setores nos próximos 10, 20 anos e, provavelmente, até a humanidade se autodestruir. A UBER não tem um único carro, mas é a maior empresa de táxis do mundo. Quem diria? Os taxistas não perceberam porquê? Nos Estados Unidos os jovens advogados não conseguem emprego por causa do Watson, da IBM, onde se pode obter aconselhamento jurídico em segundos, com 90% de precisão, enquanto os advogados só acertam em 70%. Como vai ser? Diz-se que só restarão os especialistas. O mesmo Watson faz o diagnóstico do cancro e é 4 vezes mais preciso do que os clínicos e o Facebook já tem um software que reconhece rostos melhor do que nós!!! Envia-se um foguetão à Lua com precisão milimétrica e, em caso de avaria, faz-se a reparação cá da Terra já que não está ninguém a bordo. Os primeiros carros autónomos já estão aí, sem condutor, há 3 anos e vão ser o futuro nos automóveis. Mas existem hoje inúmeras inovações que vão mudar a nossa vida e com que nem sonhamos. O amanhã já é hoje!!!       

A previsão de alguém que, não sendo bruxo sabe o que aí vem, é que as crianças de hoje nunca terão carta de condução nem automóvel. Porquê? Porque no seu tempo lhes bastará ligar pelo telemóvel e um carro sem condutor aparecerá para os levar ao seu destino, sem ter de se preocupar com estacionamento, condução, trânsito e ainda com a vantagem de poder trabalhar enquanto viajam, pagando somente o tempo da viagem e nada mais, sem a dependência do carro. Com isto, as cidades terão muitíssimo menos carros, menos acidentes e com poluição zero. Não serão necessários tantos parques de estacionamento, cujo espaço pode ser destinado a zonas verdes, importantes pulmões das cidades. Já se prevê que em 2030 os computadores se tornem mais inteligentes do que os seres humanos. A criação ultrapassa o criador. Os carros elétricos são o futuro: a Volvo já anunciou que a partir de 2030 só produz este tipo de carros, juntando-se à Tesla, Google e Apple para quem os automóveis não passam de “computadores sobre rodas”. A produção de energia solar crescerá imenso, tornando-se muito barata e limpa (sendo uma “vaca” onde os nossos governantes vão “mamar” muitos impostos, duvido que em Portugal chegue algum dia a ser barata).

Já existem vários aplicativos para telemóvel dedicados à saúde, mas algumas empresas estão a construir um dispositivo médico que funciona com o telefone e que pode vir a identificar quase todas as doenças através da análise de elevado número de biomarcadores, varredura da retina, análise de sangue e respiração. Já se questiona da necessidade de tantos médicos no futuro. Será que vai mesmo acontecer? 

Da forma como as investigações, descobertas e experiências têm acontecido nos últimos anos na área da saúde, parece-me que quase tudo será possível no futuro que está mais perto do que julgamos. Penso mesmo que o que se vê no filme de ficção RoboCope, em que um bom polícia sofre ferimentos graves e vários dos seus órgãos são substituídos por órgãos artificiais, concedendo-lhe poderes e capacidades que não tinha, poderá vir a ser uma realidade. Usando a linguagem dos computadores, não me admiraria que um dia destes parte das “peças” que compõem o ser humano possam ser substituídas por “placas mãe”, “módulos de memória”, “processadores”, “discos rígidos”, “drives”, “memória RAM”, “placas de vídeo” e tantas outras à semelhança de um computador normal, mas com todas as ligações e adaptações à nossa “máquina”, permitindo uma renovação eficiente e fácil numa qualquer “loja” de “peças humanas” que se encaixam como as peças dum Lego. Aliás, já existe há muitos anos aquilo que se designa por “engenharia de tecidos”, que é a arte de, a partir do cultivo de células, construir ou restaurar tecidos e órgãos de seres humanos ou animais. E já deixou de ser ficção para se tornar uma realidade.

A capacidade inventiva, do estudo à descoberta do ser humano parece nunca mais ter fim, num processo contínuo e competição por boas razões, mas também por algumas que a humanidade dispensava de boa vontade. E a guerra não deixa de estar presente nos objetivos de muitas delas.

Vêm aí, mas já não devo ter tempo para ver tudo isso: os drones a fazer entregas, poder viajar no comboio supersónico de Elen Musk, todo o tipo de avanços na inteligência artificial a produzir máquinas com consciência própria, roupas com poderes de super-homem, naves espaciais a Marte, realidade virtual a substituir os livros, casas inteligentes que nos preparam e fazem tudo, construídas com em impressoras 3D, além de servidas por robôs. Chega mesmo a ser difícil adivinhar o que as pessoas estão a imaginar …

À semelhança do que acontece com as sementes, para o futuro prevê-se também que existirão bebés geneticamente modificados com qualidades selecionadas, resistentes a todo o tipo de vírus e muitas outras doenças. Não me admiraria que um dia destes qualquer casal possa escolher o sexo da criança, cor dos olhos e do cabelo, altura e muitas outras particularidades, como se fosse desenhado à mão por encomenda. Viajar no espaço será comum e aprofundar os conhecimentos de astronomia, descobrir algo que nos torne invisíveis e a cura para a maioria das doenças. Todos esses avanços que aí vêm podem tornar a Terra um lugar melhor, mas também nos pode levar ao caos. Será que enquanto seres humanos faremos deste planeta um lugar melhor, mais solidário, igualitário e humano? Ou virá ao de cima e dominará tudo o que de mau existe na natureza humana?

… E a briga começa!!!

Encontrei o pai de uma pessoa amiga que enviuvou há pouco mais de um ano, mas tem tido muita dificuldade em aceitar a perda da mulher para a doença oncológica. Perguntei-lhe como andava e manifestou-me as dificuldades que tem, especialmente à noite. Não consegue dormir por ficar a pensar nela noite dentro. Depois desabafou: “Sabe, estivemos casados quase quarenta anos e nunca tivemos uma única discussão. Tínhamos uma relação perfeita”. Quando nos separamos fiquei a pensar que eles deviam ser um caso único pois não conheço nenhum outro casal onde a briga nunca tenha acontecido. É que para um casal normal, dum momento para o outro e quando menos se espera, a discussão acontece. Em muitos casos acaba por ser um pretexto ou até mesmo um caminho para chegar ao prazer porque a forma que o casal encontra de conseguir a paz é … fazendo sexo.

Depois de se reformar, o senhor Manuel foi a uma repartição tratar de assunto pessoal. A mulher que o atendeu pediu-lhe o cartão de cidadão para verificar a idade.  Ele procurou na carteira, mas não estava. Depois remexeu os bolsos todos até perceber que o tinha deixado em casa. A funcionária disse então que lamentava, mas ele tinha de o ir buscar para comprovar a idade. Porém, ela refletiu e pediu-lhe: “Desabotoe a camisa”. O senhor Manuel, apanhado de surpresa, desabotoou-a, deixando expostos os pelos crespos e prateados do peito. A funcionária olhou e comentou: “Esses pelos no peito são a prova mais que suficiente para mim”. E atendeu-o.
Quando chegou a casa, muito entusiasmado contou logo à mulher o que tinha acontecido e que o problema fora resolvido. E ela, em tom acutilante, ripostou: Porque não baixaste as calças? Também podias ter conseguido um atestado de invalidez permanente”. E a briga começou …

A vida a dois nem sempre é fácil, pois “encaixar” personalidades e fazer funcionar a relação exige trabalho, paciência, empenho e saber abdicar. Se antes era a mulher que tinha de “baixar a bola”, hoje já não há primazia de nenhum dos lados e, por isso, quando se dá uma briga, batem de frente. Todos sabemos que por norma o homem interessa-se mais por futebol, negócios e automóveis, além de ter uma paixão anormal pelo sofá em frente à televisão onde, depois de “instalado”, TV ligada e cerveja na mão, “nunca ouve mais nada”. Já a mulher gosta de falar de moda, dos filhos e das outras. Ora este desencontro de prioridades é, só por si, um problema. Daí que, se nos primeiros dias da relação está tudo bem porque o “entretenimento” não deixa tempo para o resto da vida, à medida que o entusiasmo (e o “apetite”) cai, as outras coisas ocupam-nos mais e mais e o facto de não estarem de acordo nisto ou naquilo acaba por ser normal. Só que, o “bate-boca” começa e a típica briga “por nada” faz com que a chatice se transforme num problema e o problema numa discussão séria.

Marido e mulher estavam sentados numa mesa no encontro dos antigos alunos do liceu e ela ficou a olhar para um antigo colega que estava sozinho na mesa próxima, já a cair de bêbado. O marido perguntou: “Conheces”? “Sim,” disse ela com um ligeiro sorriso. “É um antigo namorado. Disseram-me que começou a beber logo depois de eu o deixar há muitos anos e nunca mais ficou sóbrio” … “Fantástico…”, disse ele. “Quem diria que alguém pudesse festejar durante tanto tempo”!!! E aí a zanga começou…

Diz o ditado que “o casamento tem a ver com amor e o divórcio com dinheiro”. O caminho mais curto para o divórcio começa muitas vezes com brigas feias sobre questões financeiras. Daí as estatísticas indicarem que os casais casados discutem mais sobre dinheiro do que sobre qualquer outra coisa. Por isso, se não quer que as finanças levem à falência o seu casamento, seja rico(a) o suficiente para dar à outra parte um cartão de crédito sem limite …

Se a sua mulher lhe manifestar que gostaria de ir a um lugar caro não caia na asneira de a levar a uma bomba de combustível. Fica logo o caldo entornado, porque ela quer um sítio de coisas caras, mas não tanto …

Mesmo a brincar, se a sua mulher for muito pesada, nunca lhe diga que o médico o proibiu de “comer coisas gordas”, pois pode ser mal interpretado. E nem lhe elogie a visão se ela se estiver a lamentar do aspeto envelhecido e flácido em frente do espelho, como se este lhe devolvesse uma imagem que não é a dela.

O homem normalmente não gosta de se envolver em discussões porque acredita que minam o relacionamento e por isso evita o confronto que ela tende a provocar. Mas a verdade é que os assuntos mal resolvidos são “pedras no sapato” deles e que, a qualquer momento, podem explodir.Dizem por aí que “o casal perfeito é aquele que briga por tudo, mas não se separa por nada”. A mim parece-me música para adormecer meninos, um bocado como “quanto mais me bates, mais gosto de ti”. Vale a pena viver no inferno só para ganhar o prazer da reconciliação? 

O caminho e os incidentes da vida …

Charles Chaplin comparava a vida à arte de que foi um dos expoentes máximos. Dizia-nos ele: “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, ria, dance, chore e viva intensamente cada momento da sua vida, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”. Na verdade, todos nós somos atores e representamos diariamente neste grande palco onde se desenrola a vida, umas vezes com papeis verdadeiros e reais, noutras de fingimentos e enganos. Já me aconselharam particularmente a não levar a vida a sério, porque “nunca sairei dela vivo”. Também sempre ouvi dizer que a vida é uma passagem, uma caminhada longa e desconhecida, tendo como destino as consequências dos nossos atos, a soma das nossas escolhas e as mudanças que aceitamos ou não fazer no rumo.

Não me lembro de quando cheguei nem sequer de onde vim, pois não tinha consciência de nada. Dependendo sem saber de quem, pouco a pouco o meu mundo foi nascendo: a noite e o dia, o silêncio e os sons, o choro e o riso, a fome e a sede, o calor e o frio. Não sei sequer como nem quando me tornei eu, quando mudaram as cores e até os sonhos, quando comecei a gritar para me darem atenção, a aprender que o fogo queima e a faca corta, a levantar-me sempre que caía, começar a gatinhar, segurar-me em pé e andar inseguro. Da falta de consciência passei à inocência, bem mais prolongada no tempo que nos dias de hoje. Santa inocência! E o tempo que voava mais depressa do que eu, satisfez-me a vontade que tinha de ser um adulto, ficando convencido que já o era quando ainda tinha muito caminho a trilhar para o ser, muitas lições para aprender e muitos dias para crescer. 

Só quando conheci África entendi que tendo pouco era rico, porque vi que havia quem tivesse muitíssimo menos do que eu. Estranhamente, em muitos casos eram mais felizes e solidários. Depois, como adulto, tive de me ocupar com o trabalho para ganhar o “pão nosso de cada dia”, como qualquer mercenário a troco de um salário, enquanto fui percebendo que precisava de servir para me sentir vivo, dando razão a R. Tagore: “Adormeci e sonhei que a vida era alegria. Despertei e vi que a vida era serviço. Servi e vi que o serviço era alegria”.

O melhor da vida, por maior sacrifício que implique, é sem dúvida o dar vida a outras vidas, um sonho quase irreal e inexplicável, mas que nos transforma apesar de retirar tranquilidade, nos acaricia nos dias, mesmo que as noites sejam mal dormidas, nos dá um sentido à vida ainda que por vezes achemos que tudo isto não faz sentido nenhum, nos completa como família, o que é uma carga de trabalhos porque a fotografia é maior e nos faz ter mais esperança no futuro, se bem que quanto mais cresce o futuro deles mais diminui o nosso, o que é uma grande chatice …. 

Enquanto criança, inocente e ignorante, acreditava em tudo, até no pai natal. Porque a inocência é feliz. E era. Mas a vida roubou-me a inocência ao conhecer o ser humano no seu melhor, mas muito mais no seu pior. Passei a ser desconfiado, endureci, fiquei cético, sempre de pé atrás, chegando a não saber em quem acreditar. Vi caras, mas nunca vi corações; conheci muita gente honesta, mas os desonestos, sendo menos eram piores; fiei e confiei em muita gente e os pobres nunca falharam; ajudei quem precisava, mas só os humildes voltaram para agradecer. Fiquei com uma grande dívida de gratidão a milhares de professores, desde pessoas letradas a analfabetos, que foram os meus mestres da vida. Convivi com a riqueza e a pobreza, a verdade e a mentira, a arrogância e a humildade, a tristeza e a alegria, o bem e o mal. Conheci governantes, políticos e dirigentes diversos, gente que devia ser um farol de transparência, honestidade, desapego do poder e integridade para nos guiar, mas muitas vezes foram uma desilusão, exemplos péssimos que se serviram em vez de servir. E sem ética. Não era esta a “democracia” que sonhei, onde os partidos estão acima do país, os governantes sonham eternizar-se no poder, as clientelas partidárias cobram benesses, gerando o estado gordo e burocrático, um problema não a solução. A caminho do fim da viagem, tornei-me um “descrente”. Valha-nos uma das próximas gerações para, despida de interesses pessoais, retirar o país deste atoleiro e desta condição de pedinte a mendigar a solidariedade europeia, e o mesmo é dizer o seu dinheiro, e devolver-nos a dignidade e o direito de caminhar de cabeça erguida …  

Ao olhar o percurso de uma vida, tudo me parece um sonho, um filme a que não só assisti, mas no qual fui ator. Mas as recordações vão-se esfumando, as caras dos protagonistas, sejam familiares, amigos de infância, colegas de estudos, companheiros da tropa e de trabalho, conhecidos e muitos outros, gente com quem me cruzei, esbatem-se na memória. Em muitos casos já não sei distinguir entre realidade e ficção, acontecimento ou sonho. Até mesmo as memórias do meu pai e dois irmãos, que partiram antes do tempo, parecem fugir-me da mente e não quero de todo. É que, quando perdemos o Álvaro, com um abraço o António pediu-me que, se lhe acontecesse alguma coisa, eu seguisse em frente como se ele continuasse por cá. Por isso não posso deixar que as suas imagens fujam desta mente desgastada. 

Às vezes questiono se isto ou aquilo aconteceu mesmo ou se tudo não passou de um sonho que continua, só não sei por quanto tempo. Será que a vida é real? Ou estamos realmente aqui de passagem, talvez de regresso à casa do Pai?  

Perguntaram-me há dias se considero que tive sucesso na vida. Pus-me a pensar no que pode ser esse “sucesso” de alguém enquanto ser humano e ao longo da vida. Posso dizer que fui bem-sucedido. Mas eu explico porquê: “Com 1 ano de idade tive sucesso ao conseguir andar; com 5 anos voltei a ter ao não fazer xixi nas calças; com 12 anos tinha um grupo de amigos e novo sucesso; aos 18 anos, o sucesso foi tirar a carta de condução; aos 20, o sucesso chamava-se sexo e com 35 o ter dinheiro”. Mas, como existe uma filosofia de que “a vida é um eterno retorno” onde tudo volta ao início, continuei a ter sucesso na mesma ótica, mas caminhando em sentido contrário: “aos 50 continuei a ter dinheiro; com 60 ainda fazia sexo; quando fiz 70 mantive a carta de condução; já aos 75 anos, o sucesso era o meu grupo de amigos”. Para continuar a ter sucesso até ao final só me falta “aos 80, não fazer xixi nas calças e aos 90 conseguir andar, mesmo que seja só como quando tinha 1 ano”. Afinal, o regresso às origens no “sucesso” que todos nós desejamos, seja qual for a condição financeira e classe social, porque todos vamos ter o mesmo fim … 

Enquanto me aproximo das últimas etapas, continuo a ter a sensação de que tudo não passou de um sonho que parece nunca mais acabar. E refletindo bem sobre a minha condição de viajante, nesta viagem já tão longa que me permitiu conhecer pedaços do mundo e um mundo de pessoas a quem tanto devo, tenho de agradecer a Deus porque os Seus planos para a minha vida foram sempre muito maiores do que tudo aquilo que imaginei, mesmo nos meus sonhos mais ousados!!! Por isso Lhe estarei eternamente grato …  

O que é pior: Querer e não poder ou poder e não querer?

É costume dizer-se que “o tempo dá-o Deus de graça, mas nós é que o queremos vender sempre”. Sou do tempo em que as pessoas tinham tempo para dar umas às outras, sem pressas, sem cobrar à hora, sem desculpas de falta de tempo, sem subterfúgios, evasivas ou mentiras, sem telemóvel a debitar toques atrás de toques chamando à razão para o cumprimento dos horários duma “agenda” sobrecarregada, tudo ao minuto fazendo do relógio um ditador e de cada um escravo. As pessoas “davam tempo”, partilhavam-no, faziam-se comunidade em ações coletivas como vindimas, desfolhadas, sachas e em outros trabalhos agrícolas ou nas individuais, de vizinho para vizinho em interajuda que se não esquece, numa disponibilidade feliz. 

Todos somos solicitados diariamente enquanto pais, filhos, vizinhos, familiares, amigos, ricos, necessitados, chefes, subordinados, patrões, empregados, a satisfazer um pedido simples ou complexo, pessoal ou institucional e são tantas as vezes que manifestamos logo a falta de disponibilidade ou má vontade em corresponder ao que nos pedem, pela forma como reagimos, incomodados e até agressivos, do alto de um pedestal de barro, sem respeito, atenção, simpatia ou compaixão por quem precisa, quando poderíamos fazer isso … e muito mais.   

A história que se segue, tida como verídica, foi publicada na revista “Bombeiros em Emergência”, publicada em S. Paulo, Brasil, com a intenção de ser divulgada e a fazer circular para que a sua filosofia e princípios fossem internacionalizados.

“A mãe sentou-se ao lado da cama do seu filho de 6 anos, doente com leucemia terminal. Embora o seu coração estivesse cheio de angústia e tristeza, era muito determinada. E, como qualquer mãe, ela gostaria que ele crescesse e realizasse os seus sonhos. Porém, não seria mais     possível por causa dessa leucemia terminal. Disfarçando a angústia, debruçou-se sobre ele, pegou-lhe na mão e perguntou: – Filho, alguma vez pensaste no que gostarias de ser quando cresceres? – Mãe, eu sempre quis ser bombeiro! A mãe sorriu e disse: – Vamos ver o que se pode fazer. Naquele mesmo dia ela foi à Corporação de Bombeiros local, contou ao chefe a situação do seu filho e perguntou-lhe se eles poderiam levar o garoto a dar uma volta do quarteirão no carro dos bombeiros. Então o chefe disse: – Nós podemos fazer mais que isso. Se você estiver com seu filho pronto às 7 horas da manhã daqui a uma semana, nós o faremos um bombeiro honorário por todo o dia. Ele poderá vir para o quartel, comer connosco e sair para atender as chamadas de emergência. Se nos der as medidas dele, conseguiremos um uniforme completo: chapéu com emblema do nosso batalhão, um casaco amarelo igual ao que vestimos e botas. 

Uma semana depois o bombeiro-chefe pegou no garoto, vestiu-o com o uniforme de bombeiro e escoltou-o da cama do hospital ao camião dos bombeiros. O menino ficou sentado na parte de trás do camião e foi até ao quartel. Parecia que estava no céu. Ocorreram 3 chamadas naquele dia na cidade e o garoto acompanhou as três, cada uma delas num tipo de veículo diferente: num autotanque, na ambulância dos paramédicos e até no carro especial do chefe do corpo de bombeiros. Todo o amor e atenção que foram dispensados ao menino acabaram por comovê-lo tão profundamente, que ele viveu mais três meses que o previsto pelos médicos.

Uma noite, todas as suas funções vitais caíram dramaticamente e a mãe chamou ao hospital a família. Então, ela lembrou-se da emoção que o seu filho tinha passado naquele dia de bombeiro honorário e pediu à enfermeira que ligasse ao chefe da corporação e perguntasse se seria possível enviar um bombeiro ao hospital naquele momento trágico de partida para ficar ao lado do menino. O bombeiro-chefe respondeu: – Nós podemos fazer mais do que isso. Nós estaremos aí em alguns minutos. Mas faça-me um favor: Quando ouvir as sirenes tocar e vir as luzes dos carros, avise no sistema de som que não se trata de nenhum incêndio, mas apenas o corpo dos bombeiros vindo visitar mais uma vez um dos seus mais distintos integrantes. E pode abrir a janela do quarto dele. E agradeceu.

Poucos minutos depois as viaturas chegaram ao hospital. Estenderam a escada “magirus” até ao andar onde o garoto estava e 16 bombeiros subiram. Com autorização da mãe, eles abraçaram-no, seguraram-no e disseram que o amavam. E com a voz fraquinha, o menino olhou para o chefe e perguntou: – Chefe, eu sou mesmo um bombeiro? E o chefe respondeu: – Sim, você é bombeiro e um dos melhores! Com estas palavras o menino sorriu e fechou os olhos para sempre”.

Qualquer que seja a nossa área de atividade e capacidade, devemos ter presente o facto e importância de que podemos fazer sempre algo mais do que nos pedem. Infelizmente, demasiadas vezes atendemos o pedido contrariados ou em “piloto automático”, se não recusarmos com maus modos, como se “O Outro” nos esteja a chatear. Será que a nossa atenção e disponibilidade só aparece quando nos convém, dá jeito ou nos deixamos comprar?

Diante dum pedido dos teus pais, irmãos, filhos, parentes, amigos, necessitados, clientes ou tão somente cidadãos, tens respondido: “Eu posso fazer mais do que isso”? A divulgação desta história que aqui trago tem como objetivo convidar-te a refletir se a tua vida tem sido de serviço ao próximo, de fazeres pelo “Outro” aquilo que gostarias que te fizessem a ti e levar-te a tomares uma decisão hoje mesmo.

É que, “pior do que querer fazer e não poder, é poder fazer e não se querer” … 

Este nosso mundo de mentirosos …

Quantas mentiras disse hoje? Nenhuma? Tem a certeza? Tretas. Se pensar bem vai descobrir umas quantas e não são tão poucas quanto isso. Acabou de ser interrompido quando estava muito ocupado e só conseguiu dizer: “Diga lá, não incomoda nada”. O seu clube acabou de perder um jogo importante e você dá um murro na mesa. O seu filho vê e pergunta: “Pai, estás chateado”? “Não”, como se alguém acredite! Vamos lá a ser honestos e confessar uma verdade inquestionável: nós somos todos uma cambada de mentirosos e todos os dias, do berço ao leito de morte, mentimos descaradamente sem dó nem piedade, por compaixão ou vingança, amor ou maldade, falta de coragem ou estratégia. Mal saímos do “local de fabrico” para este nosso mundo aos berros, certamente por o fazermos contrariados, lambuzados de líquido amniótico e de olhos fechados, e há logo uma mulher a dizer: “Que menino tão bonito!”. Será que somos todos bonitos ao nascer? A partir daí, como a criança cresce no meio de mentirosos, vai aprender a viver e cumprir o ditado: “À terra do onde fores ter, faz como vires fazer”. E aprende depressa com os professores: pais, irmãos e amigos. Começamos a mentir cedo pois a experiência ensina-nos que dizer uma “não verdade” pode evitar o castigo por uma má ação e as ditas “mentiras brancas” que se ensinam às crianças são um “facilitador” da vida em sociedade, de se integrar num grupo e criar vínculos.

Os pais são os primeiros a demonstrar como se mente e a pequenada segue o exemplo. “Se cá vier o João pedir o que lhe devo, diz-lhe que não estou em casa”. Ou “a avó vai dar-te uma prenda e tu vais dizer que gostas muito, senão ela fica triste”. Aprendem a mentir para se safarem de um castigo, até porque nos ouvem a dizer muitas vezes “não fui eu” sem corresponder à realidade. Aliás, é vulgar mentirmos “com os dentes todos” quando nos sai da boca um “está descansado que não vou contar a ninguém” ou “essa roupa faz-te mais magra e bonita” ou ainda “vou começar a dieta na próxima segunda-feira”. Claro que muitas mentiras são para nos convencer a nós próprios de uma realidade que não o é: “O dinheiro não traz felicidade”, “pode contar comigo”, “não fui eu, quando cheguei já estava assim” e, num tom pouco convincente, “eu não minto” …

Está provado que, num relacionamento normal, a mentira está quase sempre presente, seja para evitar ferir a sensibilidade do parceiro ou prejudicar o relacionamento. Já não falo nas grandes mentiras como quando ele jura a pés juntos que “estive a trabalhar no escritório até à meia-noite” ou ela, na hora de sair para jantar fora com o marido, com os olhos nos armários atolados de roupa e, meia a choramingar, deixa sair um “não tenho nada para vestir” …

O homem mente à mulher e vice-versa, os noivos mentem entre si, os filhos aos pais para se protegerem, aos professores a tentar enganar e aos colegas para se afirmar e integrar. O patrão diz ao empregado que não tem condições para lhe aumentar o salário, mas compra um carrão novo, o trabalhador finge que faz, a amante finge que se excita e o pacóvio mente a si próprio que acredita para se sentir homem. O talhante diz-nos que a carne é tenra e nem a provou, alguém afirma que o peixe é “fresquíssimo” e até tem razão pois está no frigorífico há alguns dias, a namorada diz-lhe que a mãe é uma “santa”, mas ela sai uma “sogra”.

Na intimidade ela mente fingindo o orgasmo para “tirar o peso de cima e poder dormir” e ele mente quando lhe chama de “meu amor”. Mentem os dois na igreja ao dizerem “para sempre” ou cá fora com o “nunca mais”. Mente-se no tribunal porque não se procura a verdade, mas só se quer ter razão e mente-se na política porque só se quer os votos, o poder e as suas benesses e não o bem-estar das pessoas. 

Há muito tipo de mentiras. A “piedosa ou convencional”, aceite pela sociedade, ao dizer-se ao moribundo o que ele quer ouvir; a “social”, a desculpa falsa por não concluiu um trabalho ou chegar atrasado; a mentira do “macho” que se vangloria de conquistas e desempenhos sexuais sonhados; a mentira da idade e do peso, obsessão feminina sem cura; a mentira da vendedora à cliente para impingir o “mono”: “Essa roupa fica-lhe muito bem e dá-lhe um ar jovem”; as múltiplas mentiras das testemunhas no tribunal, jurando a pés juntos e as dos culpados, confessando-se inocentes; as mentiras por vingança, raiva, ódio, amor, despeito ou remorso; as “comerciais”, para vender gato por lebre; as “sentimentais”, cantando o “fado do desgraçadinho” e conquistar corações; enfim, um enorme variedade que não tem fim.

Na política, a mentira sempre foi uma arma muito usada pela classe, para enganar o “Zé Pagode”. No entanto, nos últimos tempos ganhou mais força ao ponto dos “profissionais” já nem se importarem de ser descobertos. Donald Trump e Bolsonaro são dois exemplos típicos do mentiroso patológico, sendo a sua ilusão tal que já nem sabem que mentem ao ponto de até acreditarem nas próprias mentiras. Daí José Saramago dizer que “os políticos são a mentira legitimada pelo povo”. E é bem verdade, pois “quando as pessoas querem o impossível, só os mentirosos são capazes de os satisfazer”. Por isso, mentir às pessoas para conseguir dinheiro é considerada fraude, mas mentir para obter votos é política. A tal ponto que H. Arendt afirmava que “as mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente no ofício de político ou do demagogo, mas também de estadista”. É impossível que a mentira venha a ser eliminada da política ou da diplomacia, bem como da guerra. 

Quando se aproxima o fim, o casal apaixonado jura fidelidade eterna, mas a “eternidade” só dura até à primeira oportunidade. E é certo e sabido que todo o ladrão, criminoso, arrogante, egoísta e mau cara é “abençoado” pelos que o detestam quando morre com um “era um bom homem” ou “não havia melhor pessoa” e “vai fazer muita falta” (só se for para terem a quem odiar e de quem dizer mal). Além disso e se for o caso, as entidades ainda o condecoram a título póstumo e homenageiam, como exemplo de vida a ser seguido e lembrado. 

Na nossa cultura é indispensável mentir, quando não queremos ferir os sentimentos de outras pessoas. Elogiamos os anfitriões da casa e o jantar de borrego assado, apesar de ter sido uma seca e detestarmos borrego! E eles acreditam, até porque é nisso que querem acreditar!!! Dizem as entidades que seria o desastre total se pudéssemos detetar as mentiras e que o nosso mundo sem elas lançaria as relações entre países no caos, porque mentir é uma necessidade nas nossas vidas. Só o grau das mentiras separa os bons dos maus, pois dizer que se está bem quando se não está não é tão grave como mentir que se está doente só para não ir trabalhar, quando não é verdade.

Dizem os especialistas que, sem as mentiras, a vida em sociedade não seria possível. E eu vou poder confirmar tudo isso quando me cruzar na rua com alguém que tenha lido esta crónica até ao fim e me diga: “Estava perfeita”!!! Desde já obrigado pela mentira simpática, social, piedosa, solidária ou mesmo cínica. Vale a intenção …

Tive uma infância muito feliz

Ao olhar para trás, não tenho qualquer dúvida: “Tive uma infância muito feliz”. Não porque tivesse muito, pois era um tempo em que (quase) toda a gente tinha muito pouco, mas porque tive coisas que hoje já não existem, já não se fabricam e nem sequer estão à venda. São coisas que se perderam, provavelmente para sempre e com que as crianças de agora nem sequer chegam a sonhar.

Para começar, tive a liberdade total para ser criança com um recreio do tamanho de toda uma aldeia para as minhas brincadeiras, sem condicionantes nem condicionalismos, em segurança inquestionável, sem risco de ser raptado, violado, abusado, assaltado e nem sequer ameaçado, com uma porta aberta em cada casa onde podia comer um caldo mal adubado e beber água do poço ou da fonte.   

Tive a natureza por companhia, todos os dias, antes e depois de sair da escola, uma mestra da vida com quem aprendi a viver, conviver e a fazer parte dela. Conheci de perto bandos de pintassilgos, rouxinóis, papa-figos, petos (pica-paus), guarda-rios e tantas outras, muitas que já nos deixaram pelos desmandos do ser humano. Fiquei a saber dos seus hábitos de vida, onde os encontrar, como descobrir-lhes o ninho, identificar-lhes o canto e apreciar a sua beleza. 

Fui muito feliz por ter uma mãe a tempo inteiro, que estava sempre presente e era o centro do meu mundo e da nossa casa. Nunca deixou de estar por perto, vigilante, para o bem e para o mal, mas dando-me liberdade para “cair” e força para me levantar, numa aprendizagem de todos os dias. Mas também tinha todas as outras mães da aldeia a tomar conta de mim no caso de algo correr mal, porque todas essas mães eram solidárias. Se fosse caso disso, tinham luz verde para me dar uma palmada no rabo ou um puxão de orelhas. Aprendi a cair, levantar-me e lavar as feridas, no caso de um dedo, mão ou braço chupando o sangue do corte com a boca, fazendo da saliva o melhor desinfetante.

Como havia muito pouco de tudo, tinha de inventar os jogos e fazer os brinquedos. Para fazer uma bola usava uma meia velha enchida com trapos; o espeto fazia-o dum pau pesado, aguçado na ponta; a bilharda com uma tábua dando-lhe o feitio duma raquete; e a roda de arame tirava-a esfolando ou queimando a banda dum pneu velho. Já para fazer os peões tinha livre acesso ao torno do senhor Alberto espingardeiro perto de minha casa, trabalhando bocados de madeira que o Avelino, pauzeiro de profissão, me arranjava.

Desde tenra idade tive contacto quase diário com os trabalhadores e os trabalhos agrícolas, na época fundamentais para a subsistência e sobrevivência das gentes da aldeia, amanhos que aprendi bem antes de entrar para a escola porque eram parte daquela vida comunitária e uma forma da minha mãe me incutir hábitos de trabalho e o gosto por ver as culturas a crescer e dar fruto.

Cedo a prendi a respeitar pai e mãe, avós tios e toda a família, os mais velhos, as autoridades civis e religiosas e, por regra, todos os outros. Ah, e os professores, mesmo os que usavam a régua ou a cana para impor disciplina e castigar, sem que os meus pais se fossem queixar que lhe “bateram no seu menino”. Pelo contrário, se levasse, “comia e calava”, pois ainda podia levar mais. Felizmente, nunca sofri grandes castigos corporais …

Vivi a infância sem nunca ter ouvido sequer falar em drogas nem nas suas consequências, desconhecendo por completo aquilo em que se tornaria um flagelo dos tempos modernos.  

A minha mãe só me levou à escola no primeiro dia de aulas e nunca mais o fez, ficando eu com o encargo de ir a pé até lá, sozinho ou na companhia de algum colega, mas com a obrigação de não faltar às aulas. No único dia em que fiz gazeta, aliciado pelo Martins porque os pais iam colher diospiros no Souto e os dois podíamos comer quantos quiséssemos, quando cheguei a casa a minha mãe já sabia que faltara, num sistema de comunicações mais sofisticado que as redes sociais de hoje. Não me bateu, mas passei a tarde fechado na varanda da casa a ver os outros amigos passar e gozar comigo. Toda essa liberdade fez crescer em nós a autonomia, independência e responsabilidade!!!

Aprendi a respeitar os alimentos, fossem eles o pão, os legumes ou o que quer que fosse, pois eram escassos e não se podiam desperdiçar. A nada do que me era posto na mesa para comer disse “não gosto”, tal como nada que nos deitassem no prato ficava por comer. Era “luxo” a que ninguém se podia dar. A tal ponto se valorizava a comida que, no caso de haver um bocadinho melhor, quer fosse um pedacinho de carne ou o lombo duma sardinha, ficava sempre para o fim, para a “apresigar” na última garfada como guloseima final. Além disso, não havia desperdício de nada, nem sequer lixo como hoje. Os restos dos legumes como as cascas de batata ou da couve-galega e outras, iam parar ao balde e serviam de alimento para os porcos e as galinhas. Os outros, os que não eram comestíveis pelos animais, iam parar à estrumeira e dali saiam feitos estrume para os quintais, num eterno retorno, dando razão à afirmação que “nesta vida nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma”.  

Tenho consciência de que quase nada disto seria possível no mundo de agora que já nada tem a ver com aquele tempo e que até a mim já me parece ter acontecido noutra era, noutra vida. 

Não me fez falta o telemóvel para comunicar com amigos ou família porque uns e outros estavam por perto. Em compensação, tinha mais tempo para brincar e todo o meu mundo para explorar. Não precisei do computador nem do Ipad, até porque tinha uma lousa com um lápis do mesmo material, onde escrevia, desenhava ou fazia cálculos e usava vezes sem conta, bastando uma simples cuspidela e limpá-la com o cotovelo para apagar e ficar pronta para novos trabalhos, sem desperdício, sem necessidade de pilha ou ser ligada à eletricidade para carregar. Não tive jogos de computador, mas improvisei o jogo do “pica” com botões ou o jogo da “malha” com pedras, fazia espetos para jogar com os colegas num charco de lama ou jogava ao peão em qualquer sítio, que não sendo “tão limpinho”, era muito divertido e saudável. Não tive piscinas, mas o Rio Sousa esteve sempre lá, com a sua água pura e natural, sem químicos nem conservantes, para me banhar, beber se tivesse sede e deitar-me ao sol na erva da margem, ouvindo o canto dos pássaros. E para “fazer as necessidades”, tinha o campo de milho mais próximo. O mau cheiro desaparecia depressa com a brisa da tarde, havia sempre folhas de videira à disposição, as precursoras do papel higiénico, a “posição de descarga”, de cócoras, sempre foi a mais correta e o “produto” que ficava não se perdia, pois era aproveitado pelas plantas. 

E ficaram-me imagens dos apertos de mão a selar um negócio com as pessoas “presas” à sua palavra; o “ponha no livro” na mercearia do meu tio Peixoto, um “empréstimo” informal aos mais carenciados até voltarem a trabalhar sendo certo que “pagar” era a primeira coisa que faziam; o Abílio do Abel a tocar viola rua abaixo com a ganapada aos saltos numa felicidade sã apesar da sua pobreza; a interajuda das pessoas da aldeia nos trabalhos agrícolas, a comunidade no melhor e mais nobre, num espírito comunitário que se perdeu; e as mulheres a cantar, fosse a lavar a roupa na presa ou nos trabalhos agrícolas. E tantas outras que ainda continuam gravadas na minha memória e se calhar, no coração. Por isso, sem saudosismos porque a vida é feita de mudança, devo reconhecer que tive uma infância livre, responsável e, apesar do pouco que havia na época, muito feliz …

Acasos, acidentais ou não, e o sucesso

Há momentos na vida em que algumas circunstâncias acidentais são determinantes para se conseguir alcançar um fim em vista. Nalguns casos, a originalidade dos imprevistos é tal, que deixa os dois lados como que incapazes de levantar obstáculos a um consenso que nem sempre seria fácil. Quando tenho uma reunião onde estarão em causa questões que envolvam interesses de valor considerável, antes olho e analiso o objetivo e a estratégia para o alcançar. Mas, verdade seja dita, há momentos em que acontecimentos excecionais apagam todas as estratégias e nos deixam sem argumentos e entregues na mão do acaso.

O doutor Gabriel (nome fictício), capitão do exército que, por mero acaso, entrara no negócio do marisco congelado, viajava até Espanha no intuito de comprar uma empresa da especialidade que já operava em Portugal e era fornecedor do marisco. Acompanhava-o um tio de quem era muito próximo, também ele um oficial distinto das Forças Armadas que passara à reserva depois da viatura em que seguia nas suas deslocações no Ultramar durante a Guerra Colonial ter ido ao ar com o rebentamento de uma mina e que fez com que perdesse as duas pernas. Depois de uma longa recuperação, passou a usar duas próteses a que acabaria por se adaptar bem, de tal forma que só uma pessoa muito atenta se apercebia que as suas pernas eram artificiais. Durante a viagem os dois foram conversando sobre as dificuldades que previam nas negociações, pelo insucesso dos primeiros contactos que não tinham corrido da melhor forma. Quando chegaram a Vigo e ao armazém onde se encontravam os escritórios da empresa visada, estacionaram o carro no parque em frente, entraram no armazém e tiveram de subir umas escadas que os levavam ao primeiro andar. O tio, de espírito militarista, seguia à frente fardado a rigor. No cimo das escadas e à entrada dos escritórios, esperavam-nos o dono da empresa, a assistente, o responsável financeiro e outro colaborador. No momento em que os dois venciam o último degrau das escadas, o tio do doutor Gabriel tropeçou no degrau com alguma violência e a sua perna direita completa, sapato e meia incluídos, saiu disparada em direção aos anfitriões que, por instinto, se desviaram dela para a deixar passar, enquanto ele gritou para o sobrinho: “Segura-me” e ele segurou-o. “Encosta-me à parede” e ele assim fez. “Traz-me a perna e encaixa-a” e ele, passando no meio dos anfitriões paralisados pelo insólito acontecimento, pegou na perna e foi junto do tio que estava encostado à parede, arregaçou-lhe as calças e encaixou a perna no suporte. “Arranja fita cola” e a assistente atónita foi buscar um rolo de fita cola. “Prende-a com a fita cola” e ele assim fez, dando uso total ao rolo que a mulher lhe dera. Depois, fez descer a perna das calças e o tio pôs-se direito assumindo uma postura militar, pediu desculpa e, cumprimentando todos, entrou no escritório. Em poucos minutos o negócio foi consumado sem que da parte dos espanhóis fosse posta qualquer objeção às condições que os dois apresentaram. Não foram capazes de dizer nada um ao outro depois de saírem dos escritórios e só quando estavam a chegar à fronteira de regresso a Portugal é que pararam o carro, olharam um para o outro, desataram à gargalhada com o tio a perguntar: “Que raio se passou ali”? Muitos anos depois, não sei, nem eles sabem, se a extrema facilidade com que fecharam o negócio se deveu a esse insólito que terá deixado os negociadores de Espanha perplexos e, eventualmente, vulneráveis.   

Noutras ocasiões, a chave para desbloquear situações que, à primeira vista, são insanáveis, depende do expediente ou espontaneidade dos intervenientes e em muitos casos da sua capacidade de improviso. Ainda eu trabalhava numa empresa de produtos químicos para a agricultura quando o meu colega Almeida, com a responsabilidade de supervisão técnica e comercial de uma grande parte do Alentejo para além do apoio aos vendedores da região, foi chamado por um deles, já que estava com dificuldades em lidar com um grande agricultor alentejano. Ao marcar o encontro com o meu colega num restaurante de Évora, o vendedor teve o cuidado de o avisar para ele ser pontual pois o cliente era muito exigente no cumprimento do horário. Apesar do alerta, a verdade é que o Almeida ao deslocar-se de Lisboa para Évora num tempo em que não existia autoestrada, atrasou-se. Ainda não tinha chegado a hora marcada e o vendedor, que conhecia os atrasos crónicos do Almeida, começou a preparar o cliente para a eventualidade dele se atrasar alegando o trânsito, a estrada e o que lhe vinha à cabeça. Passados quinze minutos o lavrador manifestava-se incomodado e ao fim de meia hora de espera chegou a levantar-se da cadeira para ir embora e só o empenho do vendedor fez com que se voltasse a sentar. Até que apareceu o Almeida, a correr, respirando com dificuldade, quase sem conseguir falar. 

Quando o lavrador lhe ia pregar um raspanete, o Almeida disse: “Desculpem, mas eu vim com tanta velocidade que lá em baixo, na curva à entrada da ponte, até trazia uma roda no ar”. Perante esta tirada, o lavrador respondeu-lhe: “Oh homem, não era preciso chegar a andar em três rodas e pôr a sua vida em perigo”. E o Almeida, tirando partido do expediente que usou e tinha preparado, rematou: “Obrigado pela preocupação, mas a roda que eu trazia no ar era a roda suplente”!!! Com esta tirada, o lavrador rebentou a rir e o Almeida ganhou um cliente incondicional …

Tudo muda de nome. Porque não eu?

Está na hora de mudar de nome. O que tenho já é velho, tem décadas e décadas e já não se usa. José, Joaquim, António, Manuel, Fernando e outros que tais, já passaram à história, substituídos por Tiago Afonso, César Augusto, João Miguel ou Paulo Alexandre. Mas se formos para as mulheres, já lá vai o tempo da Maria, Conceição, Alzira ou Isabel. Deixaram de ser escolhidos, dando lugar à Andreia, Diana, Rafaela ou Joana. No entanto, “como na moda só é novo o que está esquecido”, na atualidade recomeçamos a ver muitas crianças batizadas de Maria, Beatriz e Ana, tal como nos rapazes com Francisco, João ou Santiago. Apesar de termos sido batizados com um determinado nome, tendo como apelidos na parte final um dos nomes da mãe e do pai, cedo me apercebi que lá na aldeia eram alterados com aquele jeitinho popular de fazer do José o “Zé da tia Quina”, pôr o António a ser chamado de “Toneca da Igreja”, com o Joaquim a mudar para o “Quim da Zefa da Quinta” e, para não ser muito cansativo, a Alzira a ouvir chamar-lhe de “Zira da Milinha da fruta”. É que na aldeia ninguém era conhecido pelo nome que “botaram” no papel …

Não podemos esquecer que, para além destas alcunhas carinhosas, há ainda as bem menos simpáticas com que somos brindados de vez em quando ao passar na rua, seja no meio de uma discussão ou quando falam de nós em tom pouco lisonjeiro. O Albertino, tal como qualquer um que ande por aí, passa depressa a “Filho da mãe”, “Barrigudo”, “Lingrinhas”, “Burro”, “Atrasado Mental” ou “Cabrão” (interrogo-me sempre se isso quererá dizer “macho da cabra” ou “cabra grande”, estando “excluído por completo” o sentido em que estão a pensar) … 

Até os papeis mudam: à nascença começaram por me arranjar uma “Cédula Pessoal” para a qual tive de ir a Lousada tirar uma fotografia com ar inocente, cédula essa que viria a “passar de moda” para dar lugar ao primeiro cartão de identificação, o “Bilhete de Identidade”, que me obrigou a nova pose fotográfica. Mas, como a vida é feita de mudança, também resolveram “matar” o Bilhete de Identidade anos mais tarde trocando-o pelo “Cartão Único”, com a sigla “CU”. Ora, essa escolha revelou-se desastrosa pelas situações caricatas que iria criar no dia a dia e morreu antes de nascer para evitar casos. Imaginemos que no Banco ou na Repartição de Finanças, muito educadamente nos pediam: “Mostre-me o seu CU”! Com toda a certeza as reações seriam muito diversas: haveria quem se mostrasse ofendido, nalguns casos perplexos, mas alguns, distraídos ou a gosto, acabavam por baixar as calças para mostrar o “dito cujo”. Resultado: para evitar confusões, trocaram o nome ao “CU”, desta vez para CC (Cartão de Cidadão). E cá estamos hoje com o cartão que devia ter um único número capaz de servir para a Identificação, Segurança Social, Contribuinte fiscal e Utente do SNS, razão de ser do CU (Cartão Único), quando afinal tem vários números que só servem para nos atrapalhar e confundir. Mas ainda não devemos ficar por aqui …

À escola onde comecei a dar os meus primeiros passos chamavam de Escola Primária e assim permaneceu por muitos e bons anos. Mas os “reformadores” do ensino público não gostavam do nome e vai daí, há que mudá-lo para Escola Básica (no meu tempo de tropa, básico era o militar que não servia para nenhuma especialidade). E o Liceu, como aquele de Guimarães onde fui fazer alguns exames (para ser mais exato, falhei um com estrondo), desapareceu nominalmente e deu lugar à Escola Preparatória e à Escola Secundária, em mais uma revolução escolar.

Na minha aldeia, como na grande maioria das aldeias deste país, os nomes dos lugares da minha infância foram apagados, substituídos de forma provinciana e sem o mínimo de bom senso por travessas, ruas, largos e avenidas (que na maioria não passam senão de vielas irregulares e “mal-amanhadas”) a que atribuíram nomes pomposos ou de pessoas só porque eram da família de quem decidiu, de quem pediu ou doutra qualquer falta de critério. Estupidamente, perderam-se para sempre nomes que eram referências para as pessoas que ali viviam e viveram só porque se tinham de acabar com os lugares para dar espaço a arruamentos, alegadamente em nome da modernidade e do código postal. Um desmando de quem não soube preservar o que pertencia a todos. E era tão simples …

As “vendas” da minha meninice, misto de tasca e mercearia onde tanto se vendia o petróleo para os candeeiros, os pavios e carboneto para os gasómetros, como o vinho a copo, massa, feijão, arroz (com pedras), broa ou marmelada, dariam lugar às mercearias, depois aos minimercados, sendo quase todos(as) engolidos(as) por modernos e grandes supermercados. 

Inúmeras profissões mudaram a designação sem que tivesse mudado o que quer que seja da função, não sei se por uma questão de estigma ou se por estatuto. O empregado de balcão passou a ser um agente comercial, tal como a telefonista deu lugar à “assistente operacional”. Será que a mudança também trouxe mais dinheiro?

Se fosse registar todos os nomes de instituições, organismos e cargos públicos, de ruas, praças, avenidas, alamedas, pontes, edifícios mais diversos e sei lá bem o que mais, que mudaram de nome de um dia para o outro após o 25 de Abril no enorme “vendaval reformista” que varreu o país de alto a baixo, num “trabalho exigente, profundo e que deu muito que fazer, essencial para o desenvolvimento de Portugal”, precisava de escrever um livro. Só a título de exemplo, a Assembleia Nacional virou da República. A Ponte Salazar de um dia para o outro passou a ser feita pelo 25 de Abril (a título de curiosidade, quando propuseram a Salazar o seu nome para batizar a ponte, rejeitou e propôs “Ponte de Lisboa” pois, dizia ele, “os nomes dos políticos só devem ser dados a monumentos e obras públicas 100 a 200 anos depois da sua morte”’. Só não sei como é que o Cristo-Rei escapou a ser rebatizado …      

Claro que a vida é feita de mudança até porque o ser humano cansa-se demasiado depressa do que tem e até do que é. Para mudar não existem regras nem limites e por isso se mudam os nomes, as faces e as fases. Cá por mim ando a pensar em mudar o meu, mas para falar francamente, ainda não encontrei um que me agradasse mais, apesar de algumas pessoas “com boas intenções”, me irem atirando alguns nomes “mais ousados”, para ver se cola. Estou como o Bocage numa das histórias que lhe é atribuída. Andava ele enrolado num enorme pedaço de tecido para fatos há quase um mês, quando alguém lhe perguntou o porquê. E ele respondeu: “Estou à espera que chegue a última moda para mandar fazer o fato”. E eu espero como ele pela última moda de nomes, que afinal está em constante mudança …