Estava eu a dormitar, mais para lá do que para cá, quando senti um arrepio na espinha sem saber se estava a sonhar ou acordado porque descobri que, para mal dos meus pecados, eu também sou um “ele”. E
este ano esse “ele” é bem importante. “Ele”, aquele que se vai levantar da cama, enfiar uma roupa limpinha, sair à rua faça chuva ou faça sol, se dirija à escola local, sede da Junta de Freguesia ou até, em caso de recurso, à capela mortuária, se deixe ficar na fila de máscara colocada a aguardar a sua vez para ser identificado e depois lhe entregarem um papelinho onde vai pôr uma cruzinha (se quiser pôr, porque tem esse direito) e onde quiser, mesmo que não escolha os quadrados. Porque “ele”, o “eleitor”, é uma espécie rara em vias de extinção. Não basta estar inscrito como eleitor para o ser. É preciso ir lá, votar, caso contrário não conta, a não ser para efeito das estatísticas. Basta olhar para o nível da abstenção em eleições autárquicas, tal como noutras eleições e que tem vindo a subir de ano para ano. Se continuar assim, temos de concluir que o “eleitor” é cada vez mais valioso. Neste ritmo crescente dos preguiçosos e desiludidos da política, qualquer dia só aparecem os candidatos e famílias, para se elegerem a si próprios …
Ora o “eleitor”, como espécie rara que é, precisa de ser acarinhado, bem tratado, compensado por ter saído da cama só para botar uma cruzinha no boletim de voto, mesmo que não acerte no quadrado. É que ele tem de fazer um grande esforço para escolher, talvez não o melhor, mas o menos mau dos candidatos. Mais ainda, se por acaso sair num dia estival que convida a uma ida à praia, é precisa muita força de vontade para resistir à mulher e filhos que querem lá saber da “botação”. Para atrair esta espécie rara e levá-los a votar, já que não se podem atrair “pelo cheiro da comida” como se fazia nos dias de comício ou convívios partidários, nem pelas “cantigas ao desafio” ou pelo “cheiro a bacalhau” do Quim Barreiros, seria oportuno copiar os americanos de Nova Iorque e pagar 100 euros a cada um para os atrair e levar a votar …
Embora a campanha eleitoral não tenha começado oficialmente, a “temporada de caça ao voto”, por alguns tida por “temporada de caça ao eleitor”, já está aberta e onde vale tudo ou quase. Aliás, diz-se que “para conquistar o poder, os homens praticam todas as ações, mesmo as boas”. É que o voluntariado na política acabou há muito. Já lá vai o tempo em que o presidente da Junta de Freguesia não ganhava nada a não ser uma carga de trabalhos, embora nunca faltassem candidatos para aparecer nas listas por qualquer partido. O importante era ser convidado. Há muitos anos, dizia-me um presidente de Junta, muito sentido ao saber que para as eleições seguintes o partido pelo qual fora eleito havia já anunciado um outro candidato para o substituir sem sequer o avisar: “Sabe, vou-me oferecer ao partido adversário e vou ganhar. É que, isto de ser presidente da Junta não vale nada, não se ganha nada, nem dá prestígio a ninguém. Mas, bem lá no fundo, todos querem ser”.
A dois meses das eleições autárquicas a “corrida” ainda não começou e tudo parece estar a cozer em lume brando. Os porcos podem andar descansados e rumar ao São Bento da Porta Aberta em peregrinação à pata e agradecer o paradoxo de ter sido precisamente uma doença a poupar-lhes muitas vidas, porque não vai haver “porco no espeto” …
Mas é pura ilusão e os sinais estão aí, disfarçados da forma habitual já que, ano de eleições é ano “anormal” de obras. Por vários razões tive de percorrer alguns concelhos da região e em muitos locais esbarrei com os tais sinais duma campanha eleitoral encapotada: inúmeras estradas interrompidas em reparação, ruas esburacadas, construção de infraestruturas de todo o tipo, pavimentações novas, pinturas de passadeiras e outros riscos mais para dar vida ao piso e segurança a quem passa, passeios lavados. Os trabalhadores municipais não têm mãos a medir, as máquinas não param e, mesmo assim, não dão conta aos tantos pedidos que é preciso satisfazer até Setembro, apesar da arregimentação de empreiteiros e sub-empreiteiros que também não chegam para as encomendas, até porque estão com dificuldades em conseguir mais pessoal. Trabalha-se dentro e fora de horas, por conta da câmara, da Junta de Freguesia ou dos Fundos Europeus, numa luta contra o tempo já que é o “agora ou nunca”. Nestes períodos, vem-me sempre à memória a imagem de um presidente da câmara da região à frente da máquina, qual sinaleiro a orientar o trânsito, tal o empenho na recandidatura e o apego ao lugar, orientando o manobrador sem deixar de fazer conversa com os munícipes beneficiados pelas obras, a lembrar que cumpria sempre o prometido qual propagandista em feira de ano, num espetáculo quase patético e indecoroso.
Por muito que o poder seja “interessante e agradável”, o objetivo não justifica o uso de todos os “argumentos”, muito menos os “meios públicos” para colher dividendos partidários e pessoais em ano de eleições, atirando areia para os olhos do eleitor e fazendo dele um imbecil que não vê a estratégia por detrás da “obra de última hora”. A ser assim, melhor será que os mandatos sejam anuais e todos os anos sejam também anos de eleições … e de obras. Pobre votante que escolhe, escolhe e (quase) sempre escolhe mal, para depois, feito bobo, ficar a reclamar das taxas, da burocracia, da demora em conseguir uma licença, como se houvesse tempo para cuidar dessas ninharias …
Tenho muita dificuldade em entender este tipo de governação, que é um mal crónico da nossa “democracia”, orientada prioritariamente para atrair a caça ao voto e a perpetuação no poder, defendendo-se a manutenção deste como um fim em si e não como o meio para servir. Aliás, desta mesma doença padecem os governos da nação. Winston Churchill disse que “a diferença entre um estadista e um demagogo é que este decide pensando sempre nas próximas eleições, enquanto o estadista decide a pensar nas próximas gerações”.
Nos quase 50 anos de democracia não aprendemos nada. Antes pelo contrário, perdeu-se a ética e a transparência, deixando a nu a “chico-espertice” e arrogância do poder, que fizeram dos cidadãos pedintes de serviços públicos que deveriam ser direitos seus, e são, mas pelos quais têm de mendigar quando deveria ser o contrário, agora com o argumento da pandemia como desculpa para tudo. E, quando acabar a pandemia, há de arranjar-se com certeza outro “bode expiatório” “para não sairmos da cepa torta”, da baixa produtividade de que o estado a todos os níveis é o maior responsável e nos faz perceber que a verdadeira democracia é uma miragem, enquanto o país caminha para mais pobre da União Europeia, mendigando a solidariedade com a mão estendida, já que só estaremos em condições de a receber …