Heranças, partilhas e falta de senso…

Diz-se que somos todos iguais: “Nascemos nus e partimos nus, sem nada da “carga” que possamos ter nesta vida. Também nas partilhas pobres e ricos são iguais, pois não é preciso muitos “teres e haveres” para pôr irmãos contra irmãos, pais contra filhos, netos, sobrinhos e tios contra quem quer que seja. Tinha razão Gustavo Lázaro quando escreveu: “Herança é aquilo que os mortos deixam para que os vivos se matem”. Casos há em que não se deixa arrefecer o corpo do morto para começar a guerra pela herança, quais abutres à volta da carcaça. E outros há que fazem a partilha durar mais do que a “guerra dos 30 anos”, dando tempo para tudo, até para alguns dos beligerantes irem ficando pelo caminho sem sequer chegar a “pôr as mãos na massa”.

Quando morreu uma mulher num Lar de Idosos, apareceram vários filhos que nunca tinham a visitado, mas preocupados e interessados nos brincos da pobre senhora, o seu único bem. A cena acabou num arraial de pancadaria entre os herdeiros à porta do Lar, na tentativa de ganhar o direito aos brincos talvez pelo maior número de murros, uma nova forma (se calhar, de sempre) de ter prioridade na partilha. Penso que só quem não tem mesmo nada de seu é que está livre de vir a saber no outro mundo que os filhos fizeram da partilha uma luta ou mesmo uma guerra. Mas onde menos compreendo essas batalhas é em heranças milionárias, com valores que deixam bastante bem os herdeiros. Se calhar até compreendo, porque nunca estão satisfeitos.

Anna Sommer, mãe do milionário António Champalimaud, faleceu há cerca de 44 anos e o processo de partilha da sua herança arrasta-se nos tribunais onde permanece ativo. Já morreram os 4 filhos e alguns netos, mas a partilha não. Entre muitos absurdos deste processo há o caso do Mercedes 220 S da falecida. Quando foi vendido por 3.500,00 euros, já tinha pagado de estacionamento em garagem mais do dobro desse valor e havia dado origem a 50 requerimentos e despachos. O mesmo acontece com a herança de outro milionário, Manuel Vinhas, falecido no mesmo ano de Anna Sommer, cujo processo de partilha continua a ser uma fonte de rendimento para … advogados e tribunal. 

Quando falavam ao Cardeal Cerejeira de uma família onde os irmãos se davam muito bem ele costumava dizer: “Já fizeram as partilhas”? E a pergunta era pertinente …

Há tantos irmãos que começaram a vida a brincar felizes e inocentes e acabam os seus dias sem se falarem por causa de partilhas, tal como os filhos, primos, tios e sobrinhos. Dizia-me uma senhora já com certa idade que, para salvaguardar a excelente harmonia que existia na sua família e garantir que os filhos continuariam unidos quando partisse desta vida, tinha resolvido a partilha em vida a contento de todos. 

Os advogados recomendam que, não havendo acordo amigável entre os herdeiros sobre a partilha dos bens, o melhor para a resolver é o processo de inventário, que passa pela nomeação do cabeça-de-casal a quem cabe identificar os herdeiros e os bens a partilhar. Só que não é garantido um processo tranquilo e de fácil entendimento, porque há egos difíceis por se acharem demasiado grandes, interessados que ganham mais fomentando a discórdia e que são parte do problema, velhos rancores que saem do baú. Quando está em causa a divisão de bens de valor diferente e avaliação um tanto subjetiva, demasiadas vezes vem ao de cima a inveja, a cegueira, a ganância e as rivalidades, que fazem da partilha um cozinhado difícil, feito de suspeitas e falta de senso, quando não de má-fé.  

Mas a tentação por “deitar a mão” ao que não se ganhou é tal, que até se usa de oportunismo e desonestidade para “engrossar” a herança e conseguir que o “naco” seja maior, o que não é para admirar quando se trata de bens, numa ganância e invejas desmedidas muito típicas dum ser humano. Foi o que aconteceu com os filhos de um agricultor na região, “caseiro” de uma quinta que tinha nos vários filhos, como era habitual, a sua maior riqueza. Entre eles estava Maria, moçoila bonita apesar de humilde, que não passou despercebida aos olhos de um tio, emigrante no Brasil que conseguira amealhar um património interessante em terras do Pica Pau Amarelo. E, apesar dos cochichos e ditos que isso viria a gerar pela diferença de idades, o tio brasileiro pediu-a em casamento, tendo ela aceitado e rumado com o já marido para o outro lado do Atlântico, depois de se despedir da família que amava tanto e onde havia sido feliz.  Passados anos, querendo ajudar a família que por cá ficara, mandou ir um irmão que, com a ajuda do seu marido, montaria uma padaria (negócio típico de portugueses naquelas bandas), vindo a subir na vida com o sucesso do negócio. Em certa altura foi posta à venda uma casa com um grande quintal muito bem localizada na terra natal e uma pessoa amiga informou-a de que seria uma excelente oportunidade de negócio. À distância, pediu ao pai para lha comprar o que viria a acontecer e para o efeito foi enviando remessas de dinheiro com que ele liquidou o valor do prédio, tendo este sido posto em nome dele. Mas os anos “voaram”, a filha brasileira foi envelhecendo e o pai faleceu. Quando o pai morre os filhos juntam-se para conversar sobre as partilhas dos “tarecos” e, apesar do prédio ter sido comprado com o dinheiro da filha e para a filha, os irmãos ignoram-no e consideram que é parte integrante da herança e, como tal, tendo de entrar nas partilhas de que eles são “legítimos” herdeiros. Dum momento para o outro, estalou a guerra naquela família tão unida, feita de acusações, rancores, traições e ameaças, numa questão em que a filha “brasileira” viria a sair bem prejudicada por aqueles que considerava e deviam ser, seus irmãos e amigos. Anos mais tarde ela confidenciaria a um amigo de infância que tinha muitas saudades do tempo em que era pobre, pois tinha uma família grande e feliz, com todos os irmãos a darem-se muito bem e em que era um por todos e todos por um. Porque tudo aquilo que o dinheiro lhe trouxera não compensara o muito que perdera. Fora a pior coisa que lhe aconteceu não por ter de ceder aos outros parte dos direitos que eram só seus, mas porque a partilha destruíra a união da sua família de que sentia tantas saudades e não gostaria de ter perdido por preço nenhum.

Ainda hoje um pai questionava se valerá a pena deixar alguns bens de herança aos filhos, temendo que em vez de serem meios que os possa unir, sejam antes armas de arremesso numa guerra que transformará amor fraternal em ódio, falsidade e traição.  

Como às vezes a pior coisa que se pode receber é uma herança, vale a pena pensar se devemos deixar cair essa “bomba” no meio dos filhos e demais família no momento em que “recebemos guia de marcha” e que pode “rebentar” com a união familiar, deixando feridas em várias gerações. Ou se temos a obrigação e dever de deixar tudo preparado atempadamente, funcionando como árbitros isentos num “jogo” onde todos devem sair vencedores. 

Mas, ao enveredar por esse caminho, é bom não esquecer que não se pode cair na tentação de entregar tudo a eles antes do “fim do nosso tempo” sem salvaguardar os meios para viver condignamente, só por que se continua a pensar demasiado nos filhos, apesar de já terem a obrigação de “voar” sozinhos. Por isso devo lembrar as lições de um velho provérbio que é preciso ter presente: “Quem dá tudo o que tem antes que morra merece levar com uma cachaporra” …

E conheço tantos casos num caminho cheio de arrependimentos!!! 

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