O caminho e os incidentes da vida …

Charles Chaplin comparava a vida à arte de que foi um dos expoentes máximos. Dizia-nos ele: “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, ria, dance, chore e viva intensamente cada momento da sua vida, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”. Na verdade, todos nós somos atores e representamos diariamente neste grande palco onde se desenrola a vida, umas vezes com papeis verdadeiros e reais, noutras de fingimentos e enganos. Já me aconselharam particularmente a não levar a vida a sério, porque “nunca sairei dela vivo”. Também sempre ouvi dizer que a vida é uma passagem, uma caminhada longa e desconhecida, tendo como destino as consequências dos nossos atos, a soma das nossas escolhas e as mudanças que aceitamos ou não fazer no rumo.

Não me lembro de quando cheguei nem sequer de onde vim, pois não tinha consciência de nada. Dependendo sem saber de quem, pouco a pouco o meu mundo foi nascendo: a noite e o dia, o silêncio e os sons, o choro e o riso, a fome e a sede, o calor e o frio. Não sei sequer como nem quando me tornei eu, quando mudaram as cores e até os sonhos, quando comecei a gritar para me darem atenção, a aprender que o fogo queima e a faca corta, a levantar-me sempre que caía, começar a gatinhar, segurar-me em pé e andar inseguro. Da falta de consciência passei à inocência, bem mais prolongada no tempo que nos dias de hoje. Santa inocência! E o tempo que voava mais depressa do que eu, satisfez-me a vontade que tinha de ser um adulto, ficando convencido que já o era quando ainda tinha muito caminho a trilhar para o ser, muitas lições para aprender e muitos dias para crescer. 

Só quando conheci África entendi que tendo pouco era rico, porque vi que havia quem tivesse muitíssimo menos do que eu. Estranhamente, em muitos casos eram mais felizes e solidários. Depois, como adulto, tive de me ocupar com o trabalho para ganhar o “pão nosso de cada dia”, como qualquer mercenário a troco de um salário, enquanto fui percebendo que precisava de servir para me sentir vivo, dando razão a R. Tagore: “Adormeci e sonhei que a vida era alegria. Despertei e vi que a vida era serviço. Servi e vi que o serviço era alegria”.

O melhor da vida, por maior sacrifício que implique, é sem dúvida o dar vida a outras vidas, um sonho quase irreal e inexplicável, mas que nos transforma apesar de retirar tranquilidade, nos acaricia nos dias, mesmo que as noites sejam mal dormidas, nos dá um sentido à vida ainda que por vezes achemos que tudo isto não faz sentido nenhum, nos completa como família, o que é uma carga de trabalhos porque a fotografia é maior e nos faz ter mais esperança no futuro, se bem que quanto mais cresce o futuro deles mais diminui o nosso, o que é uma grande chatice …. 

Enquanto criança, inocente e ignorante, acreditava em tudo, até no pai natal. Porque a inocência é feliz. E era. Mas a vida roubou-me a inocência ao conhecer o ser humano no seu melhor, mas muito mais no seu pior. Passei a ser desconfiado, endureci, fiquei cético, sempre de pé atrás, chegando a não saber em quem acreditar. Vi caras, mas nunca vi corações; conheci muita gente honesta, mas os desonestos, sendo menos eram piores; fiei e confiei em muita gente e os pobres nunca falharam; ajudei quem precisava, mas só os humildes voltaram para agradecer. Fiquei com uma grande dívida de gratidão a milhares de professores, desde pessoas letradas a analfabetos, que foram os meus mestres da vida. Convivi com a riqueza e a pobreza, a verdade e a mentira, a arrogância e a humildade, a tristeza e a alegria, o bem e o mal. Conheci governantes, políticos e dirigentes diversos, gente que devia ser um farol de transparência, honestidade, desapego do poder e integridade para nos guiar, mas muitas vezes foram uma desilusão, exemplos péssimos que se serviram em vez de servir. E sem ética. Não era esta a “democracia” que sonhei, onde os partidos estão acima do país, os governantes sonham eternizar-se no poder, as clientelas partidárias cobram benesses, gerando o estado gordo e burocrático, um problema não a solução. A caminho do fim da viagem, tornei-me um “descrente”. Valha-nos uma das próximas gerações para, despida de interesses pessoais, retirar o país deste atoleiro e desta condição de pedinte a mendigar a solidariedade europeia, e o mesmo é dizer o seu dinheiro, e devolver-nos a dignidade e o direito de caminhar de cabeça erguida …  

Ao olhar o percurso de uma vida, tudo me parece um sonho, um filme a que não só assisti, mas no qual fui ator. Mas as recordações vão-se esfumando, as caras dos protagonistas, sejam familiares, amigos de infância, colegas de estudos, companheiros da tropa e de trabalho, conhecidos e muitos outros, gente com quem me cruzei, esbatem-se na memória. Em muitos casos já não sei distinguir entre realidade e ficção, acontecimento ou sonho. Até mesmo as memórias do meu pai e dois irmãos, que partiram antes do tempo, parecem fugir-me da mente e não quero de todo. É que, quando perdemos o Álvaro, com um abraço o António pediu-me que, se lhe acontecesse alguma coisa, eu seguisse em frente como se ele continuasse por cá. Por isso não posso deixar que as suas imagens fujam desta mente desgastada. 

Às vezes questiono se isto ou aquilo aconteceu mesmo ou se tudo não passou de um sonho que continua, só não sei por quanto tempo. Será que a vida é real? Ou estamos realmente aqui de passagem, talvez de regresso à casa do Pai?  

Perguntaram-me há dias se considero que tive sucesso na vida. Pus-me a pensar no que pode ser esse “sucesso” de alguém enquanto ser humano e ao longo da vida. Posso dizer que fui bem-sucedido. Mas eu explico porquê: “Com 1 ano de idade tive sucesso ao conseguir andar; com 5 anos voltei a ter ao não fazer xixi nas calças; com 12 anos tinha um grupo de amigos e novo sucesso; aos 18 anos, o sucesso foi tirar a carta de condução; aos 20, o sucesso chamava-se sexo e com 35 o ter dinheiro”. Mas, como existe uma filosofia de que “a vida é um eterno retorno” onde tudo volta ao início, continuei a ter sucesso na mesma ótica, mas caminhando em sentido contrário: “aos 50 continuei a ter dinheiro; com 60 ainda fazia sexo; quando fiz 70 mantive a carta de condução; já aos 75 anos, o sucesso era o meu grupo de amigos”. Para continuar a ter sucesso até ao final só me falta “aos 80, não fazer xixi nas calças e aos 90 conseguir andar, mesmo que seja só como quando tinha 1 ano”. Afinal, o regresso às origens no “sucesso” que todos nós desejamos, seja qual for a condição financeira e classe social, porque todos vamos ter o mesmo fim … 

Enquanto me aproximo das últimas etapas, continuo a ter a sensação de que tudo não passou de um sonho que parece nunca mais acabar. E refletindo bem sobre a minha condição de viajante, nesta viagem já tão longa que me permitiu conhecer pedaços do mundo e um mundo de pessoas a quem tanto devo, tenho de agradecer a Deus porque os Seus planos para a minha vida foram sempre muito maiores do que tudo aquilo que imaginei, mesmo nos meus sonhos mais ousados!!! Por isso Lhe estarei eternamente grato …  

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