Este nosso mundo de mentirosos …

Quantas mentiras disse hoje? Nenhuma? Tem a certeza? Tretas. Se pensar bem vai descobrir umas quantas e não são tão poucas quanto isso. Acabou de ser interrompido quando estava muito ocupado e só conseguiu dizer: “Diga lá, não incomoda nada”. O seu clube acabou de perder um jogo importante e você dá um murro na mesa. O seu filho vê e pergunta: “Pai, estás chateado”? “Não”, como se alguém acredite! Vamos lá a ser honestos e confessar uma verdade inquestionável: nós somos todos uma cambada de mentirosos e todos os dias, do berço ao leito de morte, mentimos descaradamente sem dó nem piedade, por compaixão ou vingança, amor ou maldade, falta de coragem ou estratégia. Mal saímos do “local de fabrico” para este nosso mundo aos berros, certamente por o fazermos contrariados, lambuzados de líquido amniótico e de olhos fechados, e há logo uma mulher a dizer: “Que menino tão bonito!”. Será que somos todos bonitos ao nascer? A partir daí, como a criança cresce no meio de mentirosos, vai aprender a viver e cumprir o ditado: “À terra do onde fores ter, faz como vires fazer”. E aprende depressa com os professores: pais, irmãos e amigos. Começamos a mentir cedo pois a experiência ensina-nos que dizer uma “não verdade” pode evitar o castigo por uma má ação e as ditas “mentiras brancas” que se ensinam às crianças são um “facilitador” da vida em sociedade, de se integrar num grupo e criar vínculos.

Os pais são os primeiros a demonstrar como se mente e a pequenada segue o exemplo. “Se cá vier o João pedir o que lhe devo, diz-lhe que não estou em casa”. Ou “a avó vai dar-te uma prenda e tu vais dizer que gostas muito, senão ela fica triste”. Aprendem a mentir para se safarem de um castigo, até porque nos ouvem a dizer muitas vezes “não fui eu” sem corresponder à realidade. Aliás, é vulgar mentirmos “com os dentes todos” quando nos sai da boca um “está descansado que não vou contar a ninguém” ou “essa roupa faz-te mais magra e bonita” ou ainda “vou começar a dieta na próxima segunda-feira”. Claro que muitas mentiras são para nos convencer a nós próprios de uma realidade que não o é: “O dinheiro não traz felicidade”, “pode contar comigo”, “não fui eu, quando cheguei já estava assim” e, num tom pouco convincente, “eu não minto” …

Está provado que, num relacionamento normal, a mentira está quase sempre presente, seja para evitar ferir a sensibilidade do parceiro ou prejudicar o relacionamento. Já não falo nas grandes mentiras como quando ele jura a pés juntos que “estive a trabalhar no escritório até à meia-noite” ou ela, na hora de sair para jantar fora com o marido, com os olhos nos armários atolados de roupa e, meia a choramingar, deixa sair um “não tenho nada para vestir” …

O homem mente à mulher e vice-versa, os noivos mentem entre si, os filhos aos pais para se protegerem, aos professores a tentar enganar e aos colegas para se afirmar e integrar. O patrão diz ao empregado que não tem condições para lhe aumentar o salário, mas compra um carrão novo, o trabalhador finge que faz, a amante finge que se excita e o pacóvio mente a si próprio que acredita para se sentir homem. O talhante diz-nos que a carne é tenra e nem a provou, alguém afirma que o peixe é “fresquíssimo” e até tem razão pois está no frigorífico há alguns dias, a namorada diz-lhe que a mãe é uma “santa”, mas ela sai uma “sogra”.

Na intimidade ela mente fingindo o orgasmo para “tirar o peso de cima e poder dormir” e ele mente quando lhe chama de “meu amor”. Mentem os dois na igreja ao dizerem “para sempre” ou cá fora com o “nunca mais”. Mente-se no tribunal porque não se procura a verdade, mas só se quer ter razão e mente-se na política porque só se quer os votos, o poder e as suas benesses e não o bem-estar das pessoas. 

Há muito tipo de mentiras. A “piedosa ou convencional”, aceite pela sociedade, ao dizer-se ao moribundo o que ele quer ouvir; a “social”, a desculpa falsa por não concluiu um trabalho ou chegar atrasado; a mentira do “macho” que se vangloria de conquistas e desempenhos sexuais sonhados; a mentira da idade e do peso, obsessão feminina sem cura; a mentira da vendedora à cliente para impingir o “mono”: “Essa roupa fica-lhe muito bem e dá-lhe um ar jovem”; as múltiplas mentiras das testemunhas no tribunal, jurando a pés juntos e as dos culpados, confessando-se inocentes; as mentiras por vingança, raiva, ódio, amor, despeito ou remorso; as “comerciais”, para vender gato por lebre; as “sentimentais”, cantando o “fado do desgraçadinho” e conquistar corações; enfim, um enorme variedade que não tem fim.

Na política, a mentira sempre foi uma arma muito usada pela classe, para enganar o “Zé Pagode”. No entanto, nos últimos tempos ganhou mais força ao ponto dos “profissionais” já nem se importarem de ser descobertos. Donald Trump e Bolsonaro são dois exemplos típicos do mentiroso patológico, sendo a sua ilusão tal que já nem sabem que mentem ao ponto de até acreditarem nas próprias mentiras. Daí José Saramago dizer que “os políticos são a mentira legitimada pelo povo”. E é bem verdade, pois “quando as pessoas querem o impossível, só os mentirosos são capazes de os satisfazer”. Por isso, mentir às pessoas para conseguir dinheiro é considerada fraude, mas mentir para obter votos é política. A tal ponto que H. Arendt afirmava que “as mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente no ofício de político ou do demagogo, mas também de estadista”. É impossível que a mentira venha a ser eliminada da política ou da diplomacia, bem como da guerra. 

Quando se aproxima o fim, o casal apaixonado jura fidelidade eterna, mas a “eternidade” só dura até à primeira oportunidade. E é certo e sabido que todo o ladrão, criminoso, arrogante, egoísta e mau cara é “abençoado” pelos que o detestam quando morre com um “era um bom homem” ou “não havia melhor pessoa” e “vai fazer muita falta” (só se for para terem a quem odiar e de quem dizer mal). Além disso e se for o caso, as entidades ainda o condecoram a título póstumo e homenageiam, como exemplo de vida a ser seguido e lembrado. 

Na nossa cultura é indispensável mentir, quando não queremos ferir os sentimentos de outras pessoas. Elogiamos os anfitriões da casa e o jantar de borrego assado, apesar de ter sido uma seca e detestarmos borrego! E eles acreditam, até porque é nisso que querem acreditar!!! Dizem as entidades que seria o desastre total se pudéssemos detetar as mentiras e que o nosso mundo sem elas lançaria as relações entre países no caos, porque mentir é uma necessidade nas nossas vidas. Só o grau das mentiras separa os bons dos maus, pois dizer que se está bem quando se não está não é tão grave como mentir que se está doente só para não ir trabalhar, quando não é verdade.

Dizem os especialistas que, sem as mentiras, a vida em sociedade não seria possível. E eu vou poder confirmar tudo isso quando me cruzar na rua com alguém que tenha lido esta crónica até ao fim e me diga: “Estava perfeita”!!! Desde já obrigado pela mentira simpática, social, piedosa, solidária ou mesmo cínica. Vale a intenção …

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