“Reter ou não reter”? Eis a questão …

“Chumbei” no 2º. ano, que hoje corresponde ao 6º., tendo ali ficado “a marcar passo” durante um ano, para além de levar uma reprimenda dos meus pais, como que a perguntar se queria continuar a estudar ou se preferia ir trabalhar. Optei pela primeira e não voltei a sofrer mais “retenção” nenhuma, como agora se diz. Com outros pais menos compreensíveis e mais rigorosos, a “conversa” seria outra e teria de “tirar as medidas” ao cinto de cabedal do pai. Não fiquei preocupado? Claro que sim. De tal forma que, no ano seguinte, “dei ao pedal” para cumprir o objetivo: passar. E o que ainda retenho na memória desse “acidente”? Que me acordaram para o sentido da “responsabilidade”. Nesse tempo nunca ouvi falar de “estatísticas”, de “percentagens de chumbos”, “traumas” ou coisas do gênero. Várias décadas passadas, tudo mudou. O ensino massificou-se, as crianças já não vão sozinhas para a escola por razões diversas, a desresponsabilização dos pais cresceu e retiraram dos seus filhos a responsabilidade de estudar e aprender, atirando-a para os professores e as escolas, como se estes fossem os progenitores e tenham o dever de, além de ensinar, educar. Perdeu-se o respeito e outros valores que regiam a sociedade. Apesar dos inúmeros meios de que hoje dispõe a escola quando comparada à desse tempo distante, passou a ser um local inseguro. Que o digam os professores em relação a (alguns) pais (e até alunos). Que o digam alguns alunos em relação a outros alunos e a agentes externos. Hoje a escola passou a ser objeto de “estatísticas”, sobretudo para políticos e suas agendas “políticas”, laboratório de ensaios e experiências feitas a cada mudança de “côr” do “poder instalado”. 

É assim que agora se anuncia o “fim das retenções até ao 9º. ano” o que, numa linguagem corrente, quer dizer “fim dos chumbos”, uma prática importada de outros países onde as realidades sociais, económicas e culturais nada têm a ver connosco. 

Os que defendem e querem acabar com os “chumbos” até ao 9º. ano, acham que “as retenções multiplicam as retenções” e que “quem está contra pensa com base no senso comum e não com base na melhor informação”. Já para os que se opõem à medida, dizem ser a cultura do “facilitismo” e “trabalhar só para as estatísticas”, o que não ajuda o aluno porque aí é que ele fica entregue à sua sorte. Acrescentam até que “é uma medida injusta, pois premeia tanto aquele que estuda, se esforça e é responsável, como o que não cumpre e faz da escola um local de turismo”. 

Num país do “faz de conta”, só há vantagens nesta vontade de acabar com os “chumbos”, pois todos “saem a ganhar”. Começa por ganhar o país, pois dizem os “contabilistas” desta medida que a poupança é de duzentos e cinquenta milhões de euros, o que dá um “jeitão” ao Mário Centeno e às finanças públicas para abater as dívidas a fornecedores. Além disso, o estado livra-se de gastar mais recursos nas escolas para combater o insucesso escolar (o verdadeiro problema) e sobe para o topo do “ranking” estatístico, mesmo que de forma administrativa, o que não deixa de ser motivo de orgulho nos fóruns internacionais e “bandeira” eleitoral. Ganham as escolas, porque se livram dos cábulas “de uma penada”. Beneficiam os professores, cansados de “malhar em ferro frio”, pois a partir de agora promover ou não o sucesso passa a ser indiferente, não têm a pressão das estatísticas e no final do ano as aprovações serão de 100%. O sistema deixa de os chatear. Usufruem os pais desta medida porque, ao verem aprovados os jovens rebentos ano após ano sem um único “chumbo”, passam a viver “tranquilos e felizes”, e até orgulhosos pelo “sucesso escolar” dos seus herdeiros, embora deixem de ter motivos para implicar com os professores e a escola (mas podem sempre inventar qualquer argumento). Quanto aos alunos cábulas, são só “ganhos” (pensam eles): veem aprovada a teoria de que “malandragem” compensa, que quem estuda é “burro” e de que “ser responsável” é só para os velhos. 

Não sei se deva, mas faço a pergunta: “Afinal, o que é que desejamos? Baixar a fasquia para apanhar tudo na rede ou mantê-la alta e puxar para cima quem está em baixo? No nosso sistema procura-se ensinar e que os alunos aprendam e tenham sucesso, classificando-os em função do seu desempenho, trabalho e responsabilidade ou “medir todos pela mesma bitola”? Dizem para aí que o nível de exigência corresponde seguramente a qualidade do ensino e a sucesso efetivo dos alunos. Se insistirem neste novo caminho, para que o “êxito educacional” do país seja completo, talvez seja melhor regressarmos ao tempo do PREC de 1974 e às célebres passagens administrativas” de que alguns políticos da nossa praça beneficiaram. Bastará estar matriculado em qualquer curso para passar de ano. Em pouco tempo, elevamos os índices de “licenciados” ao top mundial e passaremos a ser motivo de inveja. Vale a pena ir por aí …

Vivemos tempo em que a escola e professores são o bode expiatório do sistema de ensino, da irresponsabilidade de alguns pais e alunos, do facilitismo e dos traumas. Curiosamente, é um problema que não é só nosso, apesar de pensarmos que lá fora tudo são maravilhas, o que não é verdade. Por mero acaso, ao debruçar-me neste tema, “caiu-me” uma informação sobre a Escola Secundária de Maroochydore, na Austrália e o teor da mensagem que foi gravada no atendedor de chamadas da escola e está agora a ser utilizada diz (quase) tudo. Esta situação decorre na sequência da implementação de políticas que obrigam os pais a responsabilizarem-se pelas faltas dos filhos e pela não entrega dos trabalhos de casa. Escola e professores foram muito pressionados por eles a quererem que os “chumbos” sejam alterados para notas positivas, mesmo que as crianças faltem de 15 a 30 vezes durante um semestre, não tenham aproveitamento escolar e que não efetuem trabalhos suficientes para passar. Se telefonarmos à escola vamos ouvir no atendedor de chamadas:

“Trriimm, trrimm, trriimm,” … Click

“Olá, chegou ao Serviço de Mensagens da sua Escola. Para melhor o ajudar a encontrar o responsável correto para o seu pedido, por favor oiça todas as opções antes de proceder à sua escolha!

– Para inventar mentiras a justificar a falta do seu filho, prima 1!

– Para desculpar o facto do seu filho não ter feito os trabalhos de

  casa, prima 2!

– Para se queixar do nosso trabalho, prima 3!

– Para insultar os membros desta Escola, prima 4!

– Para perguntar porque não recebeu informações que já foram

  dadas em diversos emails, prima 5!

– Se quiser que sejamos nós a criar a sua criança, prima 6!

– Se quiser atingir, bater ou esbofetear alguém, prima 7!

– Para solicitar outro professor pela 3ª. vez este ano, prima 8!

– Para reclamar dos transportes escolares, prima 9!

– Para reclamar das refeições escolares, prima 0!

– Se tiver percebido que este é o mundo real e o seu filho deve

  ser responsabilizado pelas suas atitudes e comportamentos, 

  trabalhos escolares e de casa e que não é culpa dos docentes a

  falta de esforço do seu filho, desligue e tenha um bom dia!

– Se quiser ouvir esta mensagem noutra língua diferente, mude-

  se para um país onde a falem!”

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