A nossa Constituição tem uma extensa lista de direitos, liberdades e garantias, mas no que toca a deveres, muito pouco ou quase nada. É que nós estamos muito interessados nos direitos que temos e muito pouco nos deveres. Aliás, há numerosos “especialistas” nisso, porque só vivem com os primeiros. Os deveres são a parte ”chata”. Como tal, dispensáveis. Ora, como na maioria dos casos o único controle que existe do seu cumprimento é a nossa consciência, porque nos vêm do imperativo moral e do conjunto de valores que lhe estão associados, com o “evoluir da sociedade” fomos esquecendo-os e começamos a “assobiar para o lado”, fingindo que não é connosco.
Ser cidadão implica ter direitos, mas também de fazer a nossa parte para que a sociedade seja melhor, com o contributo e disponibilidade.
Já caíra a noite e Alfredo estava sentado no automóvel quando na rua entrou outro carro e tentou fazer inversão de marcha entre as filas de viaturas estacionadas de um e outro lado da via. Ao tentar a manobra, o condutor acertou em cheio na lateral de um dos carros ali parados, amolgando o painel. O automóvel imobilizou-se e do seu interior saiu uma mulher. Aproximou-se da viatura em que embatera, verificou os estragos e olhou em volta. Não vislumbrando ninguém, voltou para o seu e arrancou, perdendo-se na noite.
Mas o Alfredo não se demitiu nem de espectador nem de cidadão e tomou nota da matrícula desse carro em fuga e saiu para o frio da noite à procura do dono da viatura embatida sem saber quem era nem onde o poderia encontrar. Lá foi andando, de porta em porta, de pergunta em pergunta. E finalmente, quando entrou no terceiro espaço público aberto àquela hora e quis saber quem era o dono daquele Toyota verde, conseguiu encontrá-lo. Perante ele, não só relatou o que viu como se dispôs a acompanhá-lo à GNR para participar a ocorrência e testemunhar o acidente até ser levantado o respetivo auto, identificada a condutora que fugira e deixar caminho aberto à intervenção da autoridade e à salvaguarda do direito à reparação do carro atingido. Mas tudo isso só foi possível porque o “senhor Alfredo” se recusou ao comodismo do “não me quero incomodar”, assumindo o seu dever de cidadania ao ajudar a corrigir um comportamento errado.
São inúmeras as viaturas amolgadas sem que os donos se apercebam ou vejam e muito poucos os casos em que alguma testemunha do facto se disponha a assumir o papel de “Alfredo”. Até já damos como desculpa esfarrapada um “vou-me incomodar, para quê?”. E o que se passa com estas situações, passa-se com muitos outras ocorrências onde nos demitimos do dever de cidadania, embora quando somos os lesados, “criticamos” aqueles que viram e não se preocuparam. Mas quando estamos no papel da mulher que amolgou o carro e se “pôs a milhas”, qual será a nossa atitude? Procuramos o dono do carro para lhe comunicar o acidente? Deixamos um bilhete e assumimos a total responsabilidade da reparação? Ou olhamos à volta e fazemos como ela?
O curioso é que Alfredo já estivera numa situação semelhante, mas do lado contrário. Sendo motorista de camião de longo curso, numa das suas viagens lá fora e já depois de atravessar a fronteira portuguesa e entrar em território espanhol, ao passar em zona mais apertada ficou com a sensação de que o camião tocara numa viatura. Logo que pôde encostou à berma e voltou para trás até ao local onde lhe pareceu que algo ocorrera. Na verdade, havia um automóvel um pouco amolgado. Procurou saber quem era o dono, mas não conseguiu nada. Por isso, escreveu um bilhete ao proprietário que deixou no para-brisas, onde relatava o acontecido e fornecia todos os seus dados pessoais, para além de o informar que, quando regressasse da viagem, o procuraria para pagar os prejuízos. Não satisfeito, dirigiu-se ao posto da guarda civil espanhola e falou com o agente de serviço, a quem descreveu o sucedido e pediu ajuda para encontrar o proprietário do automóvel na passagem de regresso a Portugal. Após tudo isso, seguiu viagem para o centro da Europa. Quando regressou, voltou a parar e dirigiu-se ao posto da guarda civil onde encontrou o agente com quem falara. “E então?”, perguntou-lhe. O agente respondeu-lhe: “O dono do carro pediu-me para te entregar esta carta”, estendendo-lhe um envelope fechado. E, enquanto Alfredo ia abrindo o envelope, foi-lhe dizendo: “Não era preciso. Bastava dizer quanto lhe devo”. “Não sei”, retorquiu o guarda com um sorriso enigmático e insistindo para ler a carta. Mas ao lê-la, Alfredo apanhou uma das maiores surpresas da sua vida. O dono do carro começava a carta com um agradecimento, elogiando-o pela nobreza da atitude e dava-lhe conta que nada lhe tinha a pagar pela reparação. E, mais surpreendente ainda foi que, para além do elogio e da recusa à reparação dos danos, juntava um certo valor em dinheiro como prémio pela seriedade e dignidade do seu gesto, coisa rara do nosso tempo.
Não há dúvida que estes dois homens foram bem dignos um do outro. Porque, se um assumiu a responsabilidade que lhe cabia, plenamente e sem hesitações nem subterfúgios, o outro, apesar de “lesado”, não só não fez o que é normal exigindo o direito à reparação (às vezes do que foi e do que não foi), como ainda foi mais longe ao reconhecer a nobreza da atitude de Alfredo e respondendo ao gesto com um gesto magnânimo, igualmente digno e nobre.
Tanto como espectador acidental de um incidente em que o culpado se pôs em fuga, como responsável por um acidente de que suspeitou embora pudesse ignorar, Alfredo não só não se demitiu, como soube agir de acordo com a consciência e o sentimento do dever cumprido, transformando-se num modelo de referência para todos nós. Porque, não tenho dúvidas, a maioria teria feito rigorosamente o contrário …