O “reverso” da medalha de guerra …

Participei na guerra do ultramar ao serviço do país, como a maioria dos jovens da minha geração, e não me sinto menorizado por o ter feito, mas isso não é a razão desta crónica. Fui parar a Moçambique com mais de dois mil militares a bordo do superlotado NIASSA, numa viagem épica de quase um mês, lembrando um pouco o tempo das caravelas. Desembarcamos em Nacala e rumamos para o interior com destino à zona que tem o nome do barco que nos levou, começando a viagem de comboio, para continuar em camião com ferry pelo meio. Embora o comando do batalhão tenha ficado em Mecula, a minha companhia seria colocada em Nantuego, onde praticamente não vi sinais de guerra. Alguns meses depois mudamo-nos para o Kandulo, terra que não vem no mapa porque, para além do aquartelamento situado no meio de nenhures, não havia mais nada. E caímos no meio “deles”, terroristas de então, “amigos” de agora.

Uma noite sofremos um ataque violento, com metralhadoras, armas ligeiras e morteiros. Dormia num beliche na cama de cima e acordei deitado no chão ao som dum tiroteio infernal, vendo as balas de rasto tracejante passarem-me por cima da cabeça, pensando então que estariam a atravessar a parede de adobe, quando afinal só estavam a perfurar a cobertura de chapa. 

O meu conterrâneo Agostinho era o responsável do morteiro, localizado no centro do aquartelamento e foi ele e os seus subordinados que rechaçaram o ataque com algumas morteiradas, pondo o inimigo em fuga, o que lhe valeu uma medalha de cruz de guerra, o direito a umas férias no continente e … a inveja de todos nós.

No meio do tiroteio um soldado saiu a correr da caserna em direção ao abrigo, mas não se apercebendo de um arame para secar a roupa, foi apanhado pelo pescoço dando um trambolhão. “Ai Jesus que já me acertaram”, gritou ele. Mas, apalpando-se e vendo não ter sido ferido, voltou a gritar, retomando o caminho para o abrigo: “Afinal, não me acertaram, não, não me acertaram não.”  

A nossa companhia ainda seria transferida por algum tempo para a sede do batalhão em Mecula, antes deste ser deslocada para Tete, onde ficamos os últimos meses da comissão, para uma espécie de “repouso do guerreiro” antes do regresso a casa. Enquanto a sede do batalhão ficou em Tete, a nossa companhia foi colocada do outro lado do rio Zambeze, em Moatize, região mineira já explorada nessa época, hoje um polo de exploração importante… por estrangeiros E aí a vida era outra. A localidade era minimamente organizada e até tinha uma piscina. A partir do momento em que o nosso capitão adoeceu e teve de regressar, passamos a ser comandados pelo alferes Carvalho. Era quase como se estivéssemos de férias.

Um dia recebemos no aquartelamento o batalhão acabado de chegar de Portugal continental sob o comando de um tenente coronel, em trânsito para a zona de Cabora Bassa onde havia “pancada”. Nesse dia tivemos uma sardinhada na messe com uma caixa sardinhas ida de cá e oferecida pela Força Aérea. No final, o Agostinho embrulhou duas sardinhas num guardanapo de papel e meteu-as no bolso, para o que desse e viesse. Bem comidos e bebidos e sem qualquer preocupação de estar bem ou mal fardados e à vontade, fomos a pé até ao pequeno café que havia à saída do quartel, ocupando a maior parte das mesas. Depressa a conversa ficou animada e percebia-se o porquê. Às tantas, entrou o tenente coronel que comandava o batalhão recém chegado. Os militares que estavam junto da porta levantaram-se e fizeram-lhe a continência, mas a maioria ou não o viu ou fingiu que não o viu. Ele aproximou-se de uma das mesas onde ninguém o cumprimentara e bateu nas costas de um furriel dizendo com ar cínico: “Não se levante, nosso furriel…”. Este levantou-se, pediu desculpa e fez a continência militar. 

Ele foi de mesa em mesa, até àquela onde estava o Agostinho. Quando este se apercebeu disso e sentiu que o tenente coronel lhe tocava nas costas, sem se voltar, disse: “Não me bata nas costas, pois quem me bate nas costas é o meu pai quando eu lhe peço dinheiro e ele me diz: “tem paciência, mas não pode ser”. O tenente coronel, apanhado de surpresa, ficou parado e estupefacto, sem saber o que fazer, enquanto os outros militares que estavam por perto, pensando que não sabia quem estava atrás dele, avisaram-no: “Oh Agostinho, olha que é o nosso tenente coronel”. Então, lentamente, o Agostinho levantou-se, virou-se para o comandante e disse: “Não me interessa quem é”. E sem mais, meteu a mão no bolso, tirou o embrulho, abriu-o e colocou-o em cima da mesa: “Olhe, eu vou comer sardinhas. É servido?” O comandante não conseguiu reagir e o Agostinho sentou-se a comer sardinhas, dando o assunto por encerrado, enquanto ele, meio estupefacto, se retirava para um canto à procura de uma mesa vazia, já sem incomodar mais ninguém. 

Ao outro dia o tenente coronel foi apresentar queixa ao comandante do nosso batalhão. No entanto, já o alferes Carvalho se antecipara com uma boa desculpa: “O meu comandante lembra-se do Agostinho, aquele furriel que foi condecorado”? “Ah, sim, claro que me lembro bem. O que se passa com ele?”, questionou o comandante. O alferes já improvisara uma história: “Meu comandante, quando o Agostinho veio para cá deixou noiva lá na terra de quem gostava muito. Agora, recebeu a notícia que ela se casara com outro homem, o que o deixou muito transtornado. Foi por isso que, quando ontem foi questionado pelo comandante do batalhão que está no nosso quartel em trânsito, respondeu-lhe de forma menos simpática, mas só por isso”. “Coitado do rapaz”, exclamou o comandante. “Deve andar desorientado!!! Deixe que eu resolvo o problema com o nosso tenente coronel”. Foi assim que o Agostinho se safou de um “imbróglio” com a ajuda da medalha de guerra e de uma “mentira piedosa” do alferes Carvalho. No entanto, “não se livrou” de comer as sardinhas sozinho, porque o tenente coronel, apesar de convidado, “não alinhou na patuscada” … 

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