Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não…

Julgo que ninguém sabe ao certo qual foi o valor que os portugueses tiveram de pagar por dívidas que não eram suas, mas sim de bancos, banqueiros, vigaristas e ladrões, por decisão unilateral de políticos e burocratas. Dizem que já passa de dezassete mil milhões, embora os buracos que se vão descobrindo irão fazer com que ultrapasse em muito os vinte mil milhões de euros. Dinheiro que saiu e continua a sair do bolso de todos nós, através de múltiplos impostos silenciosos, em que os políticos são peritos. Mas há povos que resistiram a esse “assalto administrativo” e não aceitaram que os governantes se ajoelhassem perante os poderes, político e económico.

“No ano de 2011, pela segunda vez, a população disse não às ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI). O FMI e a União Europeia tinham decidido que os 320.000 habitantes da Islândia deveriam assumir a bancarrota dos banqueiros e pagar todas as suas dívidas internacionais, que dava a base de doze mil euros por cabeça. Essa sociabilização pelo avesso foi rejeitada em dois plebiscitos. Diziam:

“Essa dívida não é nossa. Por que vamos pagar”? Num mundo cego e enlouquecido pela crise financeira, a pequena ilha perdida nas águas do Norte deu-nos, a todos nós, uma saudável lição de bom senso”.

No seu livro “Os filhos dos dias”, o escritor Eduardo Galeano”, nascido no Uruguai, dá-nos conta deste e de outros contrassensos que alguns políticos e dirigentes assumiram em nome do povo, mas que o povo rejeita liminarmente “quando é consultado”. Mas quase sempre não é ouvido, nem no seu sentimento nem nas suas aspirações. Alguém nos perguntou se queríamos pagar as dívidas que os banqueiros fizeram? Alguém nos questionou se deveríamos aderir à União Europeia? Ou ao euro? Como em tantas outras coisas, alguém decidiu por nós. Até acham que não temos “maturidade democrática” para tomar certas decisões e recusam ouvir-nos. Mas, às vezes, como dizia a letra da canção, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. E o povo toma a decisão nas suas mãos.

Ainda de Eduardo Galeano: “Há uns trezentos e sessenta milhões de anos, as plantas vêm produzindo sementes fecundas sem nunca receberem um tostão por esse favor que fazem a todos nós. Mas, em 1998, foi outorgada à empresa Delta and Pine a patente que santifica a produção e venda de sementes estéreis, que obrigam a comprar novas sementes a cada semeadura. E, em meados de 2006, a empresa Monsanto apoderou-se da Delta and Pine e também dessa patente. E assim, a Monsanto consolidou o seu poder universal. As sementes estéreis, chamadas de “sementes suicidas” e ainda de “sementes Terminator”, integram o muito lucrativo negócio que também obriga a comprar herbicidas, pesticidas e outros venenos da farmácia transgénica. Na Páscoa de 2010, poucos meses depois do terramoto, o Haiti recebeu um grande presente da Monsanto: sessenta mil sacos de sementes produzidas pela indústria química. Os camponeses juntaram-se para receber a oferenda e queimaram todos os sacos numa imensa fogueira”.

De vez em quando, vinga esta consciência coletiva do que é realmente importante para a sociedade e melhor serve o seu futuro, mesmo que os “rótulos” nos vendam o contrário. Neste caso, todos precisamos de perceber as consequências a longo prazo da utilização daquele tipo de sementes, que vêm eliminando as sementes naturais, fecundas e com capacidade de se multiplicarem. Ao seguir por esse caminho, colocamos todo o potencial reprodutivo das culturas importantes para a alimentação humana nas mãos de uma empresa monopolista, sem escrúpulos pelos reais interesses da humanidade, para quem o lucro é o objetivo sagrado. E só. Os camponeses do Haiti perceberam isso, como perceberam os de Valpaços quando se confrontaram com uma grande plantação de eucaliptos na sua região, falha de água e onde tal árvore é estranha e problemática. Sem medo, disseram não.  

A 31 de Março de 1989, o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale do Lila para arrancar 200 hectares de eucaliptos que a Soporcel tinha plantado na região. Quando o sino da aldeia tocou a rebate, oitocentas vozes entoavam juntas “oliveiras sim, eucaliptos não” e arrancaram à mão os eucaliptos plantados pouco antes, enquanto fugiam à ação da polícia que as tentava impedir. Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras, amendoeiras, oliveiras e pinho. E nunca ardeu …

E, tal como o povo de Valpaços não permitiu que os eucaliptos lhes invadissem e ocupassem a região, também os bolivianos souberam escolher entre a ilusão publicitária da “comida de plástico” e a sua cozinha tradicional, sem alardes, mas com sabedoria. E, mais uma vez, retiro do livro de Eduardo Galeano este registo “alimentar”: 

“Em 2002, fecharam as portas os oito restaurantes McDonalds na Bolívia. Apenas cinco anos demorou essa “missão civilizadora”. Ninguém a proibiu. Aconteceu simplesmente que os bolivianos lhes viraram as costas, ou melhor, se negaram a abrir-lhes a boca. Os “ingratos” negaram-se a reconhecer o gesto da empresa com mais êxito no planeta que, “desinteressadamente”, honrava o país com a sua presença. Os “anos de atraso”, impediram que a Bolívia se atualizasse com “comida de plástico” e os vertiginosos ritmos da vida moderna. As “empanadas caseiras” derrotaram o progresso. Os bolivianos continuaram a comer sem pressa, em lentas cerimónias, teimosamente apegados aos antigos sabores nascidos no fogão familiar. Foi-se embora, para nunca mais, a empresa que no mundo inteiro se dedica a “dar felicidade às crianças”, a mandar embora os trabalhadores que se sindicalizaram e a multiplicar os gordos”.

As democracias modernas, muitas vezes mais não são que regimes de milhentas pequenas ditaduras contra as quais nos devemos impor ao assumir uma cidadania plena, para as denunciar e dizer “Não”. Poder político e poder económico andam de braço dado e associam-se com demasiada frequência por “interesses comuns”, que nem sempre são os interesses dos cidadãos. A recusa dos islandeses em pagar a conta que não lhes pertencia, a consciência dos agricultores do Haiti de que a oferta daqueles sacos de sementes era “um presente envenenado”, a determinação do povo de Valpaços em não permitir que o poder económico, sob a capa de “investimento”, lhes ocupasse as terras com árvores invasoras e desajustadas à região e a escolha acertada dos bolivianos pela cozinha tradicional contra a “comida de plástico” como se fosse sinal de desenvolvimento (quando é de colonização), mais do que um sinal de esperança, são exemplos de determinação na defesa do que verdadeiramente interessa.    

Só que não passam de pequenos oásis no deserto da indiferença dos cidadãos de todo o mundo, incluindo o nosso … 

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