As (boas) recordações duma época…

Há sessenta anos atrás, fizesse chuva ou sol, ia da casa dos meus pais à vila de Lousada de bicicleta para frequentar as aulas no Colégio Eça de Queirós, um pequeno farol a brilhar no meio do deserto do ensino secundário de então. De tal forma que, para fazer exames do segundo, quinto e sétimo ano, tínhamos de ir … ao Liceu de Guimarães. Mas fui um felizardo porque a maioria dos meus colegas de escola primária não teve essa chance. Aliás, muitos deles nem sequer completaram o ensino primário. Outros tempos e muito mais dificuldades. 

No Eça de Queirós vivi boa parte dos primeiros anos da adolescência, alguns dos que mais marcaram a minha vida. Foi lá que desenvolvi o saber e o gosto pela matemática, disciplina que viria a ser muito importante em numerosos aspetos do meu futuro como homem e profissional. Também foi ali que encontrei o professor que mais me influenciou enquanto estudante. Apesar da sua licenciatura ser em medicina, o doutor Abílio soube conduzir-me pelo mundo infinito dos números. A ele devo muito mais do que o simples ensino da matéria para passar nos exames. Nunca cheguei a manifestar-lhe quanto lhe sou devedor. Lá vivi experiências e momentos inesquecíveis, tal como o torneio de futebol do Colégio que a minha turma ganhou, as sessões mágicas de hipnotismo do padre Jorge, o espetáculo de variedades organizado e ensaiado pela D. Palmira Meireles e levado a efeito na antiga sala de espetáculos dos Bombeiros de Lousada, a ida de carroça até Paredes para um jogo de futebol contra o Colégio local, os torneios internos de ténis de mesa e voleibol, a participação nos torneios de atletismo e tantos outros momentos. E fiz amigos para a vida ao longo desses anos de que guardo gratas recordações.

Como a casa dos meus pais ficava a mais de três quilómetros da Vila de Lousada, o meu pai comprou-me uma bicicleta “roda 26” (mais pequena que o normal, porque eu só tinha dez anos quando entrei no colégio) para me deslocar no dia a dia. Dessas viagens de bicicleta de casa para o colégio e de regresso a casa, guardo memória do perigo que representavam as curvas atrás do Hospital de Lousada. Passar por ali em dias de “neve” (termo pelo qual se designava o gelo na estrada), era um desafio arriscado, um perigo constante. Apesar de tomar sempre as cautelas necessárias, dei alguns “sopapos” naqueles “paralelos”, pois tão depressa estava sentado no selim da bicicleta como, de repente, estava estendido no chão. Uma manhã o Arnaldo estatelou-se à minha frente, apesar de estar confiante de que nada lhe aconteceria. Quando o vi estendido ao comprido na estrada, não consegui conter uma grande gargalhada porque o que “estava a ver”, era a “arrogância apeada do pedestal”. Um pouco antes de chegar ali, vinha-se a gabar que não havia “neve” que o deitasse ao chão. Mas não cheguei a acabar e tive de engolir o riso, pois vi-me “acampado” ao seu lado, com o rabo a congelar do frio dos “paralelos” da estrada. Quando recordo esse episódio, vem-me à cabeça o provérbio “não te rias do vizinho que o teu mal vem pelo caminho”. Nessas curvas atrás do hospital, onde o sol não chegava no inverno para derreter o gelo, este tornava o piso muito escorregadio, fazendo cair ciclistas como o Arnaldo e eu, despistar automóveis, patinar e cair pedestres por mais cautelas que tivessem. Num desses dias de geada, até a leiteira levou consigo na queda a bilha cheia de leite e a perna. Ambas ficaram em péssimo estado … Retive a imagem do leite derramado na estrada, se bem que “não vale a pena chorar” sobre ele …

Desse tempo, recordo as idas à festa da Santa Águeda, em Sousela, em romagem anual a que não podíamos faltar, além do pequeno/grande merendeiro improvisado com aquilo que cada um conseguia desviar de casa, fosse um salpicão, uma garrafa de vinho ou algum pedaço de broa, para comermos em grupo, acantonados na encosta sobranceira à capela. E se o convívio e animação eram motivo mais que suficiente para ir àquela romaria, petiscar e beber alguma coisa era o perfeito complemento. Porque nesses tempos de “cinto apertado”, qualquer patuscada que incluísse “comes e bebes” só por si era uma benesse. 

E dei eu esta volta por esses tempos do colégio Eça de Queirós para recordar o meu primo Luís. Quando entrei para o primeiro ano ele ainda por lá andava e, confesso, já não sei dizer quantos anos ainda estivemos juntos. Saiu para a vida ativa muito antes de eu deixar o colégio, mas não se esqueceu dos companheiros que ali deixou. Foi trabalhar na Repartição de Finanças de Lousada e, de vez em quando, no final do trabalho ia ter connosco e desafiava três ou quatro de nós para o acompanhar. O local de destino era sempre o mesmo: a “loja do Meireles”, situada na rua de Santo António, ali a dois passos do estabelecimento escolar. Não era preciso perguntar ao que íamos pois sabíamos de antemão que ele mandaria servir duas ou três latas de atum com cebola picada e broa a acompanhar. Para “molhar a palavra”, um jarro de “remessa”, feita de vinho com cerveja e açúcar. Invariavelmente, o programa era este, em convívio muito animado. Ele tinha prazer em convidar amigos e pagar a despesa, não só por ser o único que já tinha salário, mas por um desprendimento natural e invulgar. 

Esses tempos, da chegada da televisão a Portugal, do Elvis Presley e do rock and roll, do Pelé e do Sputnik, o primeiro satélite lançado pelo homem a atingir a órbita ao redor da Terra, deixaram-me gratas recordações, imagens de uma adolescência distante onde os amigos ocupam lugar de destaque. E a amizade é sempre um bom motivo para celebrar a vida …

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