Às vezes digo que “hoje se sofre mais por comer demais do que antigamente se sofria por comer de menos”. Também devo referir que, apesar de ter atravessado os tempos difíceis de outrora, tive a felicidade de não ter chegado a situações de carência tão graves como a maioria dos meus contemporâneos, alimentados quase exclusivamente com malgas de caldo mal “adubado” e um pedaço de broa, quando havia. Mesmo assim, se hoje contar aos meus filhos as situações de carência que vivi, pura e simplesmente não acreditam. Ainda há poucos dias alguém que também passou por esses tempos recordava como é que uma sardinha dava para três pessoas… quando havia sardinhas!!! E o quanto gostava de fatias de carne gorda com quatro ou cinco centímetros de altura, em cima de um naco de broa… Também eu…
A carência generalizada de comida e o facto de muitos alimentos serem escassos e só acessíveis a uns quantos, criavam recalcamentos, desejos insatisfeitos, que se mantinham e marcaram a vida de cada um de nós. Por alguma razão inconsciente, a maioria daqueles que aprecia mais a carne junto dos ossos, que pede as costelas do cabrito ou do leitão e gosta de “ossos de assuã”, viveu situações em que a carne era rara e, quando havia, normalmente era das partes do animal em que o osso e a gordura tinham relevância. Por isso, tudo era aproveitado, comiam-se os “rojões do redenho”, os ossos ficavam limpos e nem o “tutano” escapava.
As pessoas só se podiam “desforrar” das privações e da fome nos casamentos, compensando-as com excessos, com o “comer à tripa forra”. Aí, sim, soltava-se o apetite (o que não era difícil), alargava-se o cinto, “enchia-se o bandulho” e comia-se até não poder mais. Num almoço de casamento, a canja de galinha “abria as hostilidades”. E seguiam-se os pratos tradicionais como cozido à portuguesa e os assados, conforme a carteira do noivo, num desfilar de comida a que os olhos dos comensais não estavam habituados. Então, enchia-se o prato e “atacava-se” a comida para aplacar o “roncar” do estômago e saciar o apetite. Como resultado, com a pança cheia, quase a rebentar, era só vê-los sentados ou deitados, de roupa desapertada já quase sem se poderem mexer, tal como as cobras ao sol que acabaram de engolir um animal maior que elas. Alguns, com o desejo ainda não saciado, resguardavam-se num canto do quintal para meterem dois dedos na garganta, “lançarem a carga ao mar” para ganharem novo “espaço de armazenagem” e assim poderem voltar ao “campo de batalha”. Cheguei a ver um homem de meia idade a chorar convulsivamente, porque “não conseguia comer mais”… É provável que o que ele já não “devia” era beber mais…
As carências alimentares que atravessamos após a segunda guerra mundial deixaram marcas em toda a gente, de uma ou de outra maneira, condicionando a nossa forma de encarar a comida, de a valorizar, de evitar e ficar chocado com o desperdício a que assistimos nos tempos de euforia e que ainda se vai vendo por aí. E havia alimentos aos quais não se teve acesso e que deixaram desejos reprimidos. Lembro-me de um: O meu primeiro emprego depois de regressar do serviço militar levou-me para o Porto. Como não havia meios nem condição económica para ir e vir todos os dias, arranjei lugar num enorme quarto de quatro camas, uma a cada canto. No meio da divisão, um balde para “serviços noturnos”. Ficava junto à rua dos Caldeireiros onde já dormia um amigo e conterrâneo que trabalhava na cidade há alguns anos. Um dia fez-me uma proposta: “Ontem trouxe lá de cima um garrafão de vinho “morangueiro” (vinho americano). Se quiser alinhar, eu dou o vinho e você compra uma bola de queijo. É que eu tenho um desejo enorme de comer queijo à vontade, porque nunca o pude fazer. O máximo que comi foram duas fatias”. Aquela confissão simples de um desejo recalcado tocou-me de tal maneira que lhe disse logo que sim. Foi assim que, com uma bola de queijo (de mais de um quilo) e um garrafão de morangueiro, fomos parar ao jardim da Cordoaria ali perto(que no futuro seria conhecido como um lugar onde se viriam a passear outros “queijos” à procura de quem os “comesse”…) e sentamo-nos num banco a dar conta da “encomenda”. Depressa fiquei farto até porque, para além do queijo e vinho, não havia qualquer outro acompanhamento. Mas ele insistiu, insistiu, na tentativa de “dar cabo” daquela inquietação alimentar (e da bola de queijo…) que o consumia, até desistir, triste por não conseguir comer mais, se bem que as sobras fossem poucas.
Ora, hoje mesmo noticiaram que em Portugal já somos dois milhões de obesos, muitos deles crianças. Com a notícia, desfiaram também um rosário de doenças associadas ao excesso de comida e de calorias, muitas delas a provocar desfechos fatais. E recomendaram regimes alimentares e exercício, pois os “estragos” da fartura saem caros ao país e a cada um, provocando muita dor e sofrimento. Vivi numa sociedade de carência alimentar real porque, apesar de mal distribuídos, a realidade é que não havia alimentos para todos. Pouco a pouco, essa realidade foi-se alterando para outra de excessos e desequilíbrios (e desperdícios), com outro tipo de problemas como confirmam as estatísticas. Daí as chamadas “doenças da fartura”. Afinal, a pergunta prevalece: Não será que hoje se sofre mais por comer demais…??? No meu caso, não tenho dúvidas…