Atribui-se a Honoré Balzac (e não a Émile M. Saint-Hilaire) a autoria de um livro publicado à quase dois séculos no Brasil no qual, em dez lições, se explicava “A arte de pagar suas dívidas, e satisfazer seus credores, sem desembolsar um tostão”. Aliás, Balzac sabia do que falava pois as dívidas perseguiram-no até à morte… Numa linguagem jocosa, para o autor “os credores são produtores de riqueza e os devedores, meros consumidores”. Ali se aconselha uma atitude socialista em que, “ficar a dever a pessoas que têm demais, será uma espécie de compensar as misérias e redistribuir a riqueza, contribuindo assim, de forma decisiva, para o restabelecimento do equilíbrio social e diminuição das desigualdades”. Recomenda como “qualidades morais” essenciais ao devedor, “sangue frio, boa memória dos credores, paciência de enfermeiro e constante presença de espírito”, mas que precisam de ser acompanhadas de atributos físicos como “olhos vivos e penetrantes, pés ligeiros, saúde de ferro e punhos de aço” pois, quem não possuir integralmente todas estas qualidades, está equivocado ao “financiar-se” com este esquema e será melhor não ter dívidas nem credores”. Um bom aviso, à época… Mas as coisas mudaram, diria mesmo, inverteram-se. Hoje os caloteiros não têm nada a ver com os de então e já não precisam nem das “qualidades morais” preconizadas nem dos tais “atributos físicos” como “olho vivo e pé ligeiro” da época de Balzac. Para quê? Agora quem deve ter essas características são os credores, que tantas vezes têm vergonha, quando não medo, de pedir o que é seu e que lhes é devido. Confrontados com a arrogância e a “lata” dos caloteiros, daqueles que assumiram dívidas e se comprometeram mas faltaram ao prometido, chegam a recear “dar de caras” com eles e até mudam de passeio quando veem algum e… têm tempo de o fazer.
Nas relações entre pessoas e sociedades sempre existiram situações de credor/devedor, tidas como normais. Outrora, estavam sujeitas a um código de valores que impunha confiança, honestidade, seriedade e palavra de honra. E (quase) ninguém queria faltar à palavra nem perder a honra. Estou a lembrar-me dos pedreiros da minha infância, os “empreiteiros” de então, a quem se entregava a tarefa de construir uma casa. No inverno, quando o tempo estava mau, não podiam trabalhar e, consequentemente, nada ganhavam. Por isso, mandavam a mulher à loja, como a do meu tio Peixoto, para comprar “fiado” os bens essenciais à sobrevivência da família. O merceeiro “assentava” a dívida num livro estreito e comprido, sendo o tamanho da dívida tanto maior quanto maior fosse a duração da invernia. A esta distância de tempo o que me ficou foi que, mal retomavam o trabalho e recebiam algum dinheiro, procediam ao pagamento religiosamente porque a honra estava acima de tudo.
No século XVII a Inglaterra tinha leis rígidas e severas para os indivíduos que não pagassem as suas dívidas, correndo sérios riscos de serem presos e julgados. Se merecessem condenação e os credores assim o exigissem, arriscavam-se a “bater com os costados na prisão”, podendo ser presos em qualquer dia da semana, excepto ao domingo por ser o dia do Senhor. Por esta razão, os caloteiros “encartados”, viviam os seis dias da semana escondidos e, dessa forma, evitavam ser presos mas, ao domingo, apareciam descaradamente em público como qualquer cavalheiro respeitável, sendo chamados de “cavalheiros de domingo”. Nesse dia andavam em liberdade pelas ruas, cafés, cervejarias e espaços públicos, misturavam-se com a multidão sem receio da polícia, sem temerem qualquer ameaça dos tribunais. O domingo era o salvo conduto, o bilhete que lhes assegurava a liberdade, para se passearem como “senhores respeitáveis” ataviados segundo a moda da época, de cabeleira ao vento, bofes de renda e espada à cinta, gozando esses curtos momentos em que eram senhores de si, de fazer o que lhes apetecesse. Dizia-se desses “cavalheiros de domingo” que eram “um sétimo de cavalheiro”…
Ora, vivemos um tempo em que há muitos caloteiros encartados, autênticos profissionais do “não pagar” que fazem disso a sua profissão, consumindo “à grande e à francesa” e acumulando riquezas “à conta” dos outros ou do estado (que somos todos nós) sem que a justiça lhes chegue. Escondidos em empresas que usam e abusam de esquemas, dos “buracos “ da lei e da inépcia de quem de direito, provocam falências “convenientes” depois de esconderem o património em nome de familiares e amigos ou em sociedades anónimas (e o nome diz tudo), levando à falência gente honesta a quem enganaram. Individualmente aproveitam-se da boa fé que (ainda) existe em muito boa gente e a quem depois se recusam pagar o que devem, mesmo tendo condições de o fazer. Entretanto, passeiam-se todos os dias da semana em grandes carros registados em nome de uma sociedade anónima, “cabeleira ao vento e bofes que nada têm de renda”. E são tantos!!!… Aliás, são demasiados. A confiança cai, a economia ressente-se, todos perdemos. Por isso, venha quem recupere essas antigas leis inglesas, com urgência, para retirar da rua a “praga” de caloteiros que, se não for banida, acabará por nos “engolir”. Assim, aumentará a confiança e o ar ficará mais respirável durante a semana… E ao domingo? Ao domingo saberemos que os caloteiros podem andar por aí feitos “gente honesta”, apanhar banhos de sol, quem sabe, “ir à missa” pedir perdão…