A sociedade do descartável

Pertenço à geração nascida durante a segunda guerra mundial e, por isso e não só, vivi até para além da chegada a adulto sem conhecer a palavra “descartável”. Nada, mas mesmo nada, era descartável, isto é, algo que se usasse uma vez e se jogasse fora.

Pelo contrário, tudo era aproveitado e reaproveitado até à exaustão, não havendo lugar ao desperdício e ao consumismo. Se a roupa se rasgava era remendada tantas vezes quantas fosse preciso. O calçado (quando havia) levava meias solas, gáspeas ou qualquer componente que se desgastasse. Os poucos equipamentos que existiam como o fogão e a telefonia (rádio) eram reparados vezes sem conta, já para não falar nos tachos, panelas e outros utensílios. Nada se jogava fora por moda, gostos ou apetites.

A industrialização veio alterar este estado das coisas ao criar riqueza e conduzir-nos para uma sociedade de consumo onde a regra passou a ser “usar e deitar fora” até porque, produzindo em massa, era necessário consumir ao ritmo da produção para as fábricas poderem continuar a produzir. Até parece que as coisas perderam a utilidade, o brilho e a beleza pois o que era insubstituível virou descartável.

Foi assim que passamos a viver um novo ciclo, a geração do descartável. Roupas, calçado, telemóveis, computadores e todos os equipamentos electrónicos, eletrodomésticos, móveis, utensílios e qualquer bem de consumo, tudo passou a ser descartável.

Como a sociedade é treinada e educada para usar e abusar do descartável , as pessoas, talvez por isso mesmo, passaram a ter a mesma atitude em relação aos relacionamentos e aos outros… Devem considerá-los como mais um bem de consumo, igualmente para usar e deitar fora… Assim, agora, descartáveis são os velhos porque já não têm utilidade, descartáveis são os doentes e inválidos porque já não produzem, descartáveis são os conjugues porque já não são novidade, descartáveis são os amigos quando dizem as verdades, descartáveis são… e a lista nunca mais acaba.

Quando tudo é descartável, tudo é passageiro, fugaz, e nada, mas mesmo nada, tem durabilidade assegurada. E a verdade é que a tendência do descartável, do inútil, apesar de algumas reticências que a crise colocou, ainda está na moda, em voga, e não sei quando nem como irá acabar.

E tudo isto porque conheci há pouco tempo a “Dores” (nome fictício pelo respeito à sua privacidade e ao medo de represálias), uma vítima desta sociedade do descartável porque já não é útil, já não serve. Era uma mulher jovem, bonita e atraente, casada e com emprego de que gostava muito e onde os seus serviços eram muito elogiados. A vida sorria-lhe e o seu sonho era ter um filho. Mas o mundo e a vida às vezes dão tantas voltas e tão rapidamente, que só fica a surpresa, o espanto, a tristeza da impotência. E aconteceu-lhe.

Aos vinte e sete anos foi-lhe diagnosticada esclerose múltipla, uma doença crónica e degenerativa que afeta cerca de cinco mil portugueses, geralmente jovens adultos entre os vinte e os quarenta anos, com mais incidência em mulheres. Não era o fim do mundo porque a doença tem tratamento, aprende-se a viver com ela apesar de algumas limitações.

Os maiores problemas vieram-lhe não da doença em si, mas de ter passado à condição de descartável, de objeto a discriminar, o que é inadmissível sobre qualquer ser humano, diria criminoso quando sobre alguém que está doente. Foi o seu caso.

Começou em casa, com o marido ao não aceitar nem compreender a sua situação de saúde, as limitações que passou a ter nem a gravidez que tanto desejava e que assumiu levar até ao fim quando aconteceu, acabando por ficar só, com a doença e o filho.

Depois foi no emprego onde, a partir do momento em que a patroa soube da sua doença, começou a implicar por tudo e por nada. O que estava mal era culpa sua. Passou de “bestial a besta” no espaço de pouco tempo, com tentativa de despedimento não consumado por inviabilidade legal. Não o conseguindo, alterou a estratégia e usou a adulação para atingir o seu objetivo. Mudou-lhe a categoria profissional para, durante a sua ausência num tratamento hospitalar, lhe “preparar provas forjadas” de negligência profissional com que foi confrontada no regresso. Sujeita a pressão psicológica terrível, foi suspensa e demitida em poucos dias sem hipótese de recurso, recebendo uma indemnização de miséria longe daquilo a que tinha direito.

Ao ser descartada como “produto que perdeu o interesse”, o mundo desabara-lhe em cima “enquanto o diabo esfrega um olho”. A chegada da doença, só por si um grande mal, trouxe-lhe outros, o da separação e do desemprego, como resultado da discriminação, por se tornar um bem descartável neste mundo que é o nosso, que lhe viriam a agravar o estado de saúde. E, no entretanto, como que a vida quisesse pregar uma partida, o ex-marido foi afetado por doença grave e morreu…

É assim que a “Dores”, hoje com trinta e seis anos, limitada na saúde e com um filho para criar, está sem emprego e sem marido para ajudar em tal tarefa, à procura de trabalho que a crise e a discriminação lhe rejeitam, como se fosse culpada de estar doente…

É esta a sociedade que criamos, esquecendo-nos que, de um dia para o outro, podemos também tornar-nos um produto descartável, até para os que nos são próximos. É só uma questão de tempo e ninguém diga “desta água não beberei”…

E dizemos nós que somos civilizados!!!…

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