Estava num funeral por razões institucionais mas mal conhecia o falecido e muito menos os presentes naquela cerimónia celebrada com grande pompa e circunstância como convém no caso de figura importante da terra, até porque, como vivemos em plena cultura da aparência, o funeral importa mais que o morto, tal como as roupas mais que o corpo.
Sem ninguém com quem “dar à língua”, como é habitual nestes momentos, imaginei-me no dia em que eu próprio “bater a bota” ( e espero que aconteça bem tarde), com o espírito a separar-se do corpo, pronto para a última viagem.
Antes de partir, pedi aos Anjos que estavam à minha espera, para me deixarem assistir ao meu próprio funeral, sobrevoar o evento e bisbilhotar as conversas dos presentes. Os Anjos acederam e permitiram-me observar o espetáculo do meu “último ato” sentado numa pequena nuvem, de onde via e ouvia tudo, melhor do que nos camarotes dos grandes estádios de futebol, só acessíveis a bolsas recheadas.
Invoco o direito à privacidade para não divulgar o que ouvi dos meus familiares, pois poderão querer cobrar-me se disser que falaram muito bem (ou mal) de mim, e não os quero “ter à perna”. É que ainda conto andar por cá mais uns anitos.
E que vi eu? Que tinha flores, muitas flores. Melhor seria que as tivesse recebido em vida. Agora, já não me serviam de nada, nem sequer lhes podia sentir o cheiro.
Encostados à sombra de um carvalho vi alguns velhos amigos, vestidos de forma um pouco informal, reunidos em grupo. “Como estás?”, perguntava-se. “Vou andando e tu?”. “Já há muito que não te via. Agora só nos encontramos em casamentos e funerais”. E há medida que o grupo aumentava, deixaram-se estar por ali a contar anedotas para matar o tempo, rindo para dentro como manda o protocolo apesar de uma ou outra gargalhada escapar a esse “espartilho” que nos manda ter um ar “sisudo e sério” nestas cerimónias.
Um pouco mais retirado e muito descontraído, estava um grupo de adolescentes, como que caídos à força num filme que não era o deles, falando de “gajas”, discotecas e do último concerto que foram ver ao Meo Arena. “Eh pá, aquilo é que foi curtir. Porque é que não foste?”
As senhoras, quase todas de preto (gostava mais que vestissem cores garridas, alegres, apesar do preto emagrecer, ser clássico e chique, embora nestes casos seja sombrio), carregavam o luto oficial do ato, como que assegurando o lado solene do momento, falando em voz baixa com a preocupação nos familiares e no seu desgosto pela minha “partida”.
De fato e gravata preta e num pequeno grupo, alguns homens falavam entre si elogiando as minhas qualidades como homem de trabalho, um bom pai, um bom filho, um bom gestor, um bom… (se fosse na escola tinha bom a tudo)… Fiquei a pensar comigo mesmo que, para passar de besta a bestial nada melhor do que morrer, “ir desta para melhor”. É que, este grupo, era constituído precisamente por aqueles que sempre disseram mal de mim. Agora, eu era o melhor do mundo, de pecador passei a santo só pelo facto de ter “marchado”. Que sorte a deles ao verem-se livres de mim, que “sorte” a minha ao ser “promovido”… Alguns, provavelmente estariam lá só para se certificarem que morri, que “fui de vela”…
Num local bem visível, por onde tinha de passar toda a gente que queria prestar-me as últimas homenagens e cumprimentar os familiares, juntaram-se os políticos “instalados” no poder e, perto, os que ansiavam chegar lá, mostrando um ar compenetrado como se estivessem em sofrimento pela minha morte quando a sua preocupação era serem vistos, cumprimentarem o maior número possível de votantes e tirarem partido da situação porque “quem não é visto, não é lembrado”. Até ouvi um a dizer ao parceiro, em surdina: “Este gajo veio estragar-me o fim de semana…”
Uma mãe levava ao colo uma criança de três anos para tentar travar o seu lado irrequieto. Mas, mal a punha no chão, perguntava: “Que é que estamos aqui a fazer?, “quando é que vamos embora?, “tenho sede e quero um chupa”, deixando a mãe nervosa e agitada, olhando os outros com receio de ser foco de atenção.
No canto da igreja, em pé e encostado à parede, estava um homem simples de boné na mão, num silêncio respeitoso para com os presentes, mas num diálogo mental com Deus que eu, como espírito, pude escutar. E falava com Ele intercedendo por mim, porque lhe dera um empurrão para se estabelecer por conta própria quando só tinha medos. Afinal, alguém “estava comigo”. Senti então as mãos (espirituais) dos Anjos a puxar-me docemente, ao mesmo tempo que diziam: “ Vá, vamos andando pois é bom que não vejas tudo”. É o pior momento, quando temos de virar para sempre as costas a quem amamos.
Ao ver a animação das conversas naquilo que é sempre um acontecimento social, dei comigo a pensar que o funeral é o único “evento” ou “encontro” em que se pode estabelecer diálogo com todos os presentes menos com o “protagonista” principal, o “fulano” que é a razão desse “ajuntamento”. E, sendo neste caso eu “o artista”, não lhes podia agradecer nem sequer oferecer algo para petiscarem, apesar de se tratar do meu derradeiro “aparecimento público”… Até porque, depois, passaria ao rol do esquecimento como é habitual…
E a minha imaginação parou quando senti o empurrão de alguém na pressa de ir embora. O funeral terminara…