Uma “sociedade” muito difícil …

Diz o povo que o casamento é a “sociedade” mais difícil de manter. E numa “sociedade” tão difícil como é a relação de um casal, seja ela formalizada através de “escritura pública”, o chamado casamento, seja ela informal, a dita união de facto, o risco de “dissolução” ou até mesmo de “ir à falência” é muito alto nos nossos dias, bem maior do que nas sociedades comerciais. E o elevado número de divórcios, separações e muitos outros finais da relação é o sinal evidente da grande dificuldade em encontrar nos “sócios” quantidade suficiente de respeito, diálogo, paciência, resiliência, aceitação e a capacidade de perdoar. E eu disse nos “dois sócios”. Mais ainda, as facilidades (e conveniências) dum “período experimental de utilização”, de duração indefinida, facilita e faz crescer o número de “devoluções” do outro à procedência ao mínimo incómodo, arrufo ou insatisfação. 

Todo o encanto e dificuldade para ser um casal é consequência de se juntarem duas personalidades com identidades próprias e perceções e histórias de vida diferentes, bem como desejos e projetos distintos e que pretendem ser um só. Convenhamos que não é fácil, até porque homem e mulher têm motivos de interesse diversos que raramente são coincidentes e que, mais dia menos dia, se tornam no rastilho de uma explosão caseira. Ora, estando eu do lado dos homens, cabe-me defender a sua visão, o seu olhar sobre o “outro lado”.    

Estamos no século XXI e, apesar de todos os avanços científicos e do conhecimento mais profundo do ser humano, continua-se a afirmar que para o homem, “é difícil entender as mulheres”. E, claro, é difícil entender pessoas quando elas próprias não se entendem. Mais ainda porque enquanto o homem é muito “visual” e prático, já a mulher é emocional e complexa. Confessava um marido não perceber o que se havia passado com a esposa. Quando iam sair à noite ela “descobriu” que o vestido era demasiado decotado. Voltou para trás e trocou-o por umas calças, blusa e casaco, mas ao entrar no carro apercebeu-se que os sapatos não condiziam com o resto e … regressou a casa. Bom, conseguiram arrancar quase uma hora depois. 

Quando perguntamos à mulher “o que se passa?” e ela responde “não é nada” ou, num tom seco e ríspido “naaaada” e com cara de amuada (que em gíria popular se traduz “de trombas” ou “com cara de poucos amigos”), é sinal que algo se passa. Ela sabe e nós sabemos, que algo não lhe caiu bem, que alguma coisa a incomoda. O quê? Se pensarmos que vai ser fácil descobrir “que mosca lhe mordeu”, estamos muito enganados. Em regra, é bem difícil descobrir ou tal só será possível depois de ela “fazer muitas fitas”. E vai ser precisa uma grande dose de paciência, num jogo de (falsa?) preocupação, porque é isso que ela quer. Que fiquemos preocupados. Porque ela gosta de sentir a nossa preocupação, real ou falsa, pois dá-lhe um grande prazer “assistir” ao “sofrimento” do “escravo”, como se isso seja a sua redenção. No fundo da questão, quer atenção, muita atenção quando corta dois dedos no comprimento do cabelo e temos de descobrir imediatamente o “novo look”, fazendo um elogio rasgado e sincero (porque o seu radar sabe se é sincero ou não). Tal como com o vestido novo, os sapatos ou um simples lenço do pescoço. E ai daquele que o não veja …

Se ela perguntar “este vestido faz-me gorda?”, é preciso ter cuidado a responder, porque “podemos ser presos por ter cão e presos por não ter”. A pergunta tem rasteira, porque ela tem consciência que aquele vestido a faz gorda. Ora, como ela já conhece a verdade, mas não quer ouvi-la da nossa boca, precisa de arranjar um “bode expiatório” para o facto de o ter comprado e sentir-se desapontada por lhe ficar justo demais, fazendo realçar aqueles pequenos pneus à volta da cintura. Por isso, não lhe podemos dizer que a faz gorda, porque é disso que ela está à espera para nos cair em cima dizendo que “não gostas de mim” ou “achas mesmo que sou gorda?”. Mas se cairmos também na patetice de lhe esconder a verdade, que é evidente, a reação poderá ser ainda pior com um acalorado “estás a mentir” ou “não é isso que estás a pensar”. Entre uma e outra resposta, há que escolher terceira via, alternativa, que é optar por não responder, porque nestes casos ela não quer ouvir resposta nenhuma da nossa parte. É uma pergunta somente para se ouvir, um desabafo atirado ao “vento” e, já agora, a nós. E o vento nunca lhe responde, porque é mais inteligente do que nós. Ainda podemos optar pela fuga, inventando uma desculpa bem conseguida e consistente, para não dar azo a sermos “apanhados a mentir”. O argumento de que “temos de ir urgentemente à casa de banho” ou outro bem consistente, não pode deixar dúvidas para que a saída seja airosa. E precisamos de ter consciência que a fuga pode ser um ato de coragem em muitas ocasiões … 

Hoje ouço falar na partilha de trabalhos em casa, dos cuidados com os filhos, outras responsabilidades e até no “comando da sociedade” o que pode não passar de uma mera intenção. É que a mulher gosta de mandar e se o parceiro não se cuida, quando der por si já estará “formatado” ao seu gosto. No que veste, porque depressa se torna no seu “gestor de imagem”, no que vê na televisão, pois ela não gosta de futebol, onde vão comer ou passear. E o seu toque também está no planeamento das férias e não só. A maioria dos homens reconhece que a palavra de ordem dentro de casa vem da mulher, além de que preferem mudar de opinião a comprar uma briga com ela …

Devemos ter sempre em conta que “a esposa é a mulher que está ao nosso lado para nos ajudar a resolver problemas … que não teríamos se não estivéssemos casados”. 

As pessoas gostam de ser enganadas

Em 1810 nasceu nos Estados Unidos um homem que viria a ficar conhecido por Phineas Barnum. Embora tenha sido autor, editor, palestrante, filantropo e até político, tornou-se um empresário de sucesso no ramo do entretenimento norte americano, sendo lembrado principalmente por promover as mais famosas fraudes e curiosidades humanas e por ter fundado o mais famoso dos circos. O circo começou por ser um museu de esquisitices e monstruosidades que atraía multidões fazendo fila, inclinando-se diante da escrava cega que tinha 161 anos de idade e amamentara George Washington, beijando a mão de Napoleão Bonaparte que media 64 centímetros de altura e comprovando que estavam bem coladinhos um ao outro os irmãos siameses Chang e Eng, além de verificarem que as três sereias tinham rabos de peixe autênticos. Barnum tornou-se o homem mais admirado pelos políticos profissionais. Ele levou à prática, melhor do que ninguém, a sua grande descoberta: “As pessoas gostam de ser enganadas”. 

Se há duzentos anos essa afirmação era verdadeira, hoje tornou-se mais verdadeira que nunca, até porque vivemos num mundo global onde a informação, boa e má, circula à velocidade da luz. Do futebol à política, das falsas notícias às promessas de ganhos grandes e fáceis, das religiões que vendem a salvação, da publicidade enganosa que dá ideia de uma coisa quando a realidade é outra, tudo é campo fértil de tentações e enganos.  

Há alguns dias um amigo teve um problema elétrico no automóvel. Como conhecia o senhor José, bom eletricista e de confiança, apesar de não o visitar já há algum tempo, foi procurá-lo. Quando o encontrou e relatou o problema, ele disse-lhe que não podia fazer nada porque tinha fechado a empresa. Nem sequer tinha material para lhe fazer o serviço. “Mas você tinha uma empresa tão boa, com tanta clientela. O que diabo aconteceu?”, perguntou-lhe muito intrigado. E então, as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara abaixo. Constrangido, lá conseguiu dizer: “Foi a minha mulher. Meteu-se numa dessas religiões que vieram do Brasil e confiou de forma cega no bispo. Sem eu me aperceber, limpou-me mais de duzentos mil euros da conta. Quando eu quis pagar aos fornecedores estava totalmente desfalcado. Só me restou pedir a insolvência”. 

Este “filme” já o vimos noutras ocasiões, com outros protagonistas. Apesar dos avisos, há sempre quem esteja “disponível” para “embarcar” na conversa das promessas de salvação pelo “desprendimento dos bens materiais”. Só que eles fazem precisamente o contrário. E o expoente máximo e mais mediático parece ser o “bispo” Edir Macedo, dono de um autêntico império, apesar da imprensa ir denunciando as fraudes e o fausto em que vive à conta da sua capacidade oratória. Tal como Barnum, descobriram que “as pessoas gostam de ser enganadas”. Mesmo quando lhes pedem dinheiro no meio do “barulho” …

É mais fácil acreditar em coisas esquisitas e anormais do que pensar, questionar. Acontece isso com os mágicos, bruxos, cartomantes e os adivinhos. Só que o mágico confessa que faz truque, mas não revela o segredo, enquanto os outros dizem que falam com os mortos, leem a sorte e alteram o destino das pessoas só ao olharem as cartas, a bola de cristal ou as borras de café e que têm visões. E as pessoas creem, porque “preferem ser enganadas”. E o mais caricato é que é preciso muito cuidado ao dizer a verdade a essas pessoas pois não querem acreditar nela. Preferem o engano. 

Mas se formos à política a coisa é igual ou pior. Veja-se o louco que esteve à frente de um país como os Estados Unidos, comportou-se como um elefante anormal no meio de uma loja de louças e, mesmo assim, quase metade da população americana continua a estar do seu lado, acreditando sem questionar nos milhares de mentiras que lhes impingiu ao longo do seu mandato. Aliás, nem precisamos de ir lá fora para encontrar “artistas” que, pela sua capacidade oratória, têm vendido todo o tipo de “banha da cobra”, angariando numerosos “crentes”, adeptos incondicionais que não questionam, que não se interrogam se é verdade ou mentira o que lhes sai da boca e nem se dão ao trabalho de pensar. É o mais fácil. Há mentiras vestidas de verdade e verdades irrefutáveis em que não acreditam. Quando são condenados pela justiça, cumprem prisão, voltam e são reeleitos precisamente por aqueles de quem se aproveitaram. O que se pode esperar? Estes políticos são uma espécie de “santos”, cartomantes ou bruxos em que as pessoas querem acreditar. Por isso, vão-lhes dando algumas “migalhas”, para dar credibilidade à mentira. Tal como dizia António Aleixo: “P’ra mentira ser segura/ e atingir profundidade/ tem que trazer à mistura/ qualquer coisa de verdade”.

Os “pregadores e vendedores” de grandes ganhos financeiros são um outro bom (mas mau) exemplo de que “gostamos de ser enganados” ou ainda de “nos querermos enganar a nós próprios”. E isso acontece mais nos períodos de crise económica, porque a falta de dinheiro faz com que as pessoas estejam “abertas” às tais “soluções milagrosas”, com promessas de ganhos muito acima da média. Aliás, já Hitler em 1925 no seu livro Mein Kampf diz: “as massas serão mais facilmente vítimas de uma grande mentira do que de uma pequena”. E isto ainda é válido nos nossos dias, porque as pessoas acreditam no que querem acreditar, quando têm de acreditar. Daí que, nas questões financeiras, quanto maior é a proposta de ganhos possíveis, maior é a apetência em aderir à solução proposta. Foi assim que este país viu surgir a D. Branca e todos os seus “discípulos”, seguidores dos princípios básicos que ela utilizou, mas com “outra sofisticação e uma melhor qualidade de imagem”. Os “herdeiros da filosofia” mantiveram a mentira num nível alto com os “10% de juros prometidos ao mês, e até mais”, o que aniquilava toda e qualquer “dúvida” que pudesse pairar na cabeça interessada de gente “obcecada, cega pela tentação de ganhos fáceis”, o que, normalmente, impede de ver além da “promessa fantástica”. E, pelo contrário, é uma rendição de quem quer ser enganado.

Eu sou uma pessoa como qualquer outra e sempre estive exposto às mesmas rasteiras, erros, tentações e defeitos dos seres humanos. Há ocasiões que penso no número de vezes que me deixei ir na “oratória milagreira”, na “ilusão de ganhos mirabolantes”, nas “promessas de políticos demagógicos”, no “conto do vigário” ou outra mentira bem travestida de verdade, por não querer ver o evidente, não questionar, pensar, nem pôr a razão a controlar a emoção. Francamente, quantas vezes também terei pedido para ser enganado?

O esquecimento é a morte antecipada

Os últimos dias têm vindo a confirmar aquilo que eu já sabia há muito tempo, mas que não queria reconhecer na dimensão devida: que sou um “grande acumulador de lixo”. Essa confirmação devo-a, em parte, à pandemia, porque me tem obrigado a conter e ficar mais tempo em casa, dando bom uso a esse tempo de confinamento, especialmente ao “correr de fio a pavio” algumas divisões, identificando a tralha que se acumula em todo o lado, fazendo a separação do que é ou não útil e mandando para o lixo o que já era lixo há muitos anos. A verdade é que, ao fim de uma semana, ainda nem sequer saí do escritório e dum pequeno arrumo, tendo-me limitado a separar papelada e material eletrónico desatualizado. Ao “passar a pente fino” estantes, gavetas, armários, caixas, sacos, pastas, arquivos e embalagens diversas, foi como viajar no tempo, recordar momentos, relembrar razões que me levaram a conservar isto e aquilo, enfim, arranjar desculpas por não ter enviado tanta coisa há mais tempo para o caixote do lixo. Livros, relatórios, orçamentos, contratos, faturas, notificações, folhetos, revistas, cadernos, agendas, projetos e todo o tipo de documentos já com muitos anos de arquivo, desta vez foram “arquivados” de vez em caixas de cartão com destino ao Ecocentro. Ao todo, mais de 300 Kgs de papel para reciclar, um crédito a abater na conta da água e alívio cá em casa. Já no material eletrónico foram televisões, monitores, leitores de CD e DVD, walkman, rádios, telemóveis desde o “tijolo” aos mais recentes, antenas, carregadores, despertadores, cassetes, vários relógios e todo o tipo de cabos que as empresas vão trocando permanentemente para nos obrigarem a comprar novos. Enfim, lixo.

Depois entrei no material da Luísa, todo arrumado em caixas que fui abrindo e selecionando. Bem, não foi propriamente selecionar, pois pouco restou daquilo tudo. Dos seus arquivos escolares dos muitos anos de ensino em várias escolas, ficaram as fotografias dos alunos de algumas classes, crianças que hoje são homens e mulheres, apesar    

de, para ela, permanecerem crianças para sempre. De certo modo, dei comigo a pensar que lhe “apaguei o passado”, se bem que ela já o terá perdido desde o dia em que sofreu o derrame cerebral. A ligação que foi mantendo a esse passado manifestava-se nas manhãs em que me dizia que tinha de se levantar para ir à escola ou nas visitas que uma colega lhe fez durante vários anos após ter adoecido e mais duas ou três pessoas. Fora isso, não há outra ligação às escolas por onde passou e às pessoas com quem conviveu nesse longo período de vida.

Enquanto rasgava papeis, selecionava livros ou carregava caixas de velhos equipamentos eletrónicos, fui refletindo sobre a importância do afastamento e do esquecimento, uma espécie de morte antecipada que acontece frequentemente com as pessoas que atingem uma idade avançada e que, por várias razões a começar pela saúde, têm de ficar mais em casa, viver mais recolhidos. Lentamente, muitas vezes de forma quase impercetível, as visitas inicialmente normais vão sendo cada vez mais espaçadas, passando a raras, para serem substituídas por chamadas telefónicas que depois escasseiam, até se perder a “ligação” por completo. Por outro lado, as outras pessoas da mesma geração vão envelhecendo também, perdem a mobilidade e isso não ajuda a encontrarem-se com regularidade. E os mais novos já não conhecem, já nem sabem de quem se trata. 

Quando faleceu o senhor José Dias, um empresário de enorme importância em Lousada e que marcou uma época, apercebi-me que é essa a realidade. Para alguém como ele que deu emprego a muita gente criando oportunidades de uma vida melhor, que foi um dos três maiores industrias de Lousada, apoiou instituições e pessoas tornando-se uma figura importante na terra, ter na “despedida final” muito poucas pessoas a acompanhá-lo à sua última morada, seria algo que eu não imaginaria. Mas a verdade é que, se hoje perguntar aqui na sua terra quem era José Dias, a maior parte abana a cabeça e diz que não sabe. Só algumas pessoas de idade que viveram no seu tempo responderão à pergunta. A verdade é que, lamentavelmente, o senhor Dias foi praticamente esquecido na terra por quem tanto fez quando ainda estava vivo. “Morreu“ na memória dos conterrâneos muito antes da sua morte física. Aliás, o povo tem uma expressão que diz tudo: “Quem não é visto, não é lembrado”.

No seu caso, como acontece com muitas outras pessoas que se reformam e retiram da atividade vivendo mais recolhidas em casa, foi esquecido por uma parte dos que o conheciam e ainda estão vivos e foi ignorado pelos mais novos a quem nada dizia. E o certo é que, se pessoas como ele fizeram o que fizeram e depressa foram esquecidas ou passaram praticamente ao anonimato, que dizer do cidadão comum? É uma lei da vida muito injusta para as pessoas que merecem ser lembradas e confesso que, quando mais novo, acreditava que não era assim. Por isso defendi a necessidade de termos memória enquanto sociedade, se bem que hoje, mais que nunca, tenho consciência que rapidamente seremos esquecidos, sendo os filhos (e nem todos) o último “livro” onde nós seremos memória. Se pensarmos bem nisso, talvez sejamos menos arrogantes, convencidos, estúpidos e imbecis.

Defendi aqui nestas crónicas que algumas pessoas deveriam ver o seu nome perpetuado numa rua, praça ou bairro por tudo aquilo que fizeram e deram à sociedade, sendo uma delas o senhor José Dias cujo nome deveria ficar para sempre no parque industrial existente nas instalações fabris que construiu. No entanto, já duvido de mim mesmo, pois questiono quantas pessoas saberão quem foi Sá e Melo ou o Visconde de Alentem que dão nome a arruamentos da vila. 

O doutor Abílio Alves Moreira cujo nome serviu para batizar o bairro social local, contava muitas vezes o que determinada figura pública, que não consegui identificar, dizia ao saber que pretendiam fazer isso com ele: “Se acham que eu fiz alguma coisa de útil, que me imitem. Prefiro isso a ter o meu nome na placa de uma rua, que só servirá para mijatório de cães e pasmaceira de vadios” …  

O falhanço monumental de um país …

Falhamos estrondosamente, a fatura é alta, continua a subir sem fim à vista e “o valor já pago não tem preço nem retorno”. Está perdido para sempre. E não vale a pena arranjar desculpas esfarrapadas nem enterrar a cabeça na areia. Todos temos de assumir o fiasco. Todos, a começar pelos governantes que se perderam nos autoelogios de um “sucesso falso” no combate à primeira vaga da pandemia, esquecendo de, atempadamente, planear e tomar as medidas convenientes, ainda que impopulares, para controlar o que veio a seguir. Pelos políticos que quiseram tirar dividendos da crise quando se deviam preocupar com as pessoas, que não são números. Pelos especialistas, que tentam encontrar um caminho feito de avanços, recuos e até contradições. Pelos jornalistas, que fizeram dos noticiários um autêntico massacre psicológico, com relatos estatísticos tão exaustivos quanto maçudos. E todos nós que ficamos agarrados ao nosso comodismo, liberdades, regalias, direitos adquiridos, hábitos e tradições, esquecidos de que há um valor maior que tem de estar à frente de tudo isso: a vida de cada um. A nossa, dos nossos familiares, amigos, vizinhos, novos e menos novos, conterrâneos, estranhos, pessoas como nós. E temos esquecido que a luta para nos mantermos vivos tem de estar acima de tudo e em primeiro lugar. Sem ela, o que vale o resto?

Pode parecer estranho, mas o melhor e mais inteligente discurso de um governante ao seu povo durante a crise do Covid-19 alertando contra as pessoas que se comportam mal neste período da pandemia foi do presidente do Uganda, Kaguta Museveni, que começou a dizer aos ugandeses: “Deus tem muito trabalho, pois tem o mundo inteiro para cuidar. ELE não pode estar aqui simplesmente, no Uganda, a cuidar de idiotas …” Mas vale a pena ler a sua declaração pública que, mais do que para os ugandeses, deve servir de lição para todos nós:

“Numa situação de guerra, ninguém pede a ninguém para ficar dentro de casa. Você fica dentro de casa por opção. De facto, se você tem uma cave, fica escondido lá enquanto as hostilidades continuarem.

Durante uma guerra, você não insiste na sua liberdade. Desiste voluntariamente em troca da sobrevivência.

Durante uma guerra, você não se queixa de fome. Você sente fome e reza para continuar a viver para poder comer de novo.

Durante uma guerra, você não discute abrir ou não o seu negócio. Você fecha a sua loja (se tiver tempo) e corre para salvar a vida.

Você reza para sobreviver à guerra, para poder voltar ao seu negócio (isto é, se não tiver sido saqueado ou destruído por um morteiro).

Durante uma guerra, você fica grato por estar vivo mais um dia na terra dos vivos.

Durante uma guerra, você não se preocupa se seus filhos não vão à escola. Você reza para que o governo não os aliste à força como soldados para serem treinados nas dependências da escola, agora transformada em depósito militar.

O mundo está atualmente em estado de guerra. Uma guerra sem armas e balas. Uma guerra sem soldados humanos. Uma guerra sem fronteiras. Uma guerra sem acordos de cessar-fogo. Uma guerra sem teatro de guerra. Uma guerra sem zonas sagradas. Nesta guerra o exército não tem piedade. É indiscriminado – não respeita crianças, mulheres ou locais de culto. Este exército não está interessado em espólios de guerra. Não tem intenções de mudança de regime. Não está interessado na riqueza dos recursos minerais. Nem sequer se interessa por hegemonia religiosa, étnica ou ideológica. A ambição dele não tem nada a ver com superioridade racial. 

É um exército invisível, sem bases e impiedosamente eficaz. A sua única agenda é uma colheita de morte. Só ficará saciado depois de transformar o mundo num grande campo de morte. A sua capacidade de atingir o seu objetivo não está em dúvida. Sem máquinas anfíbias, terrestres e aéreas, possui bases em quase todos os países do mundo. O seu movimento não é governado por nenhuma convenção nem por protocolo de guerra. Em suma, “é uma lei em si mesma”. 

É o coronavírus, também conhecido como COVID-19.

Felizmente este exército tem uma fraqueza e pode ser derrotado. Requer apenas a nossa ação coletiva, muita disciplina e tolerância.

O COVID-19 não pode sobreviver ao distanciamento social e físico. Só prospera quando você o confronta. Adora ser confrontado. Capitula diante do distanciamento social e físico coletivo. Ele se curva diante de uma boa higiene pessoal. Fica desamparado quando você toma o destino nas suas próprias mãos, mantendo-as higienizadas o mais tempo possível.

 “Não é tempo de chorar por pão e manteiga como crianças mimadas. Temos de achatar a curva do COVID-19”.

Vamos exercitar a paciência. Sejamos guardadores dos nossos irmãos. Em pouco tempo recuperaremos a nossa liberdade, as empresas e a socialização. No meio da EMERGÊNCIA, pratiquemos a urgência do serviço e a urgência do amor pelos outros”.

O nosso problema é que “estamos numa guerra”, mas não tomamos verdadeiramente consciência de que essa “guerra” é real e temos de lutar pela vida contra um inimigo invisível. Era mais evidente se fosse um vulcão em erupção, um terramoto arrasador ou uma torrente de água e lama que nos arrastasse ribanceira abaixo com todos os bens a reboque. Aí lutávamos pela vida sem querer saber de nada mais que não fosse ficar vivo. Quando em 2005 o furacão Katrina atravessou Nova Orleans, deixou um rasto de destruição e quase 2.000 mortos. A grande preocupação dos habitantes da cidade foi “salvar a pele”. Para trás deixaram casas, carros, negócios, empregos e bens pessoais. Em suma, tudo. E ali ficaram sem eletricidade, água potável, um teto para se abrigar, sem segurança e proteção. Agora nós, com mais de 10.000 mortos, que tudo indica passarão do dobro muito em breve, estamos ocupados em defender os direitos que a constituição nos confere, que os filhos continuem a ir à escola, que as nossas vidas continuem a ser iguais ao antes da pandemia! Também continuamos a comportar-nos como idiotas não respeitando o confinamento, distanciamento social e higienização frequente das mãos, talvez à espera dum milagre ou se calhar, convencidos que a chegada de alguns milhares de vacinas já nos imunizou a todos, como por encanto! Quando vamos acordar?

Esta “guerra” é difícil porque o “inimigo” não se mostra, mas está cá; dá-nos uma falsa sensação de segurança, que por ser falsa é perigosa; leva-nos a pensar mais nos bens materiais que estão em risco do que na vida que se pode perder num momento. E, sejamos francos, já não nos choca o número obsceno de mortos que a televisão nos atira à cara diariamente, cada vez maior, como se fosse banal tombarem a cada dia 250 pessoas ou mais. Porque não nos dizem respeito? São números de um “filme” diário que ouvimos, mas não sentimos. Já não mexe connosco. Ao que chegamos!!! E esquecemos, ignoramos e, pior ainda, com a nossa falta de cuidado, desrespeitamos os profissionais/ de saúde que estão na frente de combate, cansados, esgotados física e psicologicamente, ao verem-se impotentes para conter a “colheita” que a morte faz à sua volta. Quantos não terão vontade de desistir?

Em 10 meses, esta “guerra” já nos levou tantas vidas como a guerra do Ultramar em 13 anos e “assobiamos para o lado”, governantes e governados, só sendo “acordados” quando tomba alguém que nos é próximo. 

É tempo de sermos responsáveis antes que os nossos filhos tenham de chorar o nosso “número” nas estatísticas de um dia destes … 

Não estamos satisfeitos com nada …

Ainda antes de eu nascer, houve um ano de seca em que quase não choveu. Nas fontes, ou corria um “fio de água” ou secaram. Até os poços, cuja captação é a alguma profundidade, estavam reduzidos a um nível muito baixo de água, insuficiente para as necessidades da população. A situação era grave, as pessoas andavam preocupadas e com receio que a água faltasse por completo. Ciente da preocupação popular e da necessidade de ajuda divina, o pároco da minha aldeia convocou os paroquianos a orarem em conjunto no domingo à tarde. Com a igreja cheia de gente movida pela fé e crença da intervenção divina, a cerimónia começou. Todos rezavam com fervor e devoção. Já a oração conjunta decorria há algum tempo, quando a trovoada se fez anunciar através de um trovão distante. Mas isso não fez com que pároco e fieis interrompessem a cerimónia e continuaram a rezar. Pouco a pouco o ribombar dos trovões foi-se aproximando e centrou-se sobre a igreja, fazendo-se acompanhar duma chuva torrencial. No entanto, o celebrante continuou a cerimónia sem vacilar, como que a agradecer essa dádiva de Deus. Dentro da igreja sentia-se que chovia muito e era grande a quantidade de água caída sobre o telhado do templo. As pessoas sentiam-se esmagadas pela resposta ao seu apelo. E, às tantas, a água começou a entrar pela porta, numa enxurrada mista de água e terra, invadindo a igreja. Quando se aperceberam que a água já estava no interior do templo, algumas pessoas entraram em alvoroço e outras desataram a gritar. Ao ver toda aquela agitação, o padre interrompeu a oração. Ao manter-se a agitação, fechou o livro de orações e disse: “Vamos embora. O povo já está farto de água …”

É normal que andemos meses a queixar-nos que não chove, que há falta de água, as albufeiras estão baixas e, quando a chuva vem, logo ao segundo dia é vulgar ouvir-se: “Já estou farto de chuva”. Dois dias antes resmungava-se por não chover e mal ela chega já se quer outra coisa? 

É por isso que se costuma dizer que “as pessoas nunca estão satisfeitas com nada”. E é verdade. Somos um ser “defeituoso”, pois temos uma insatisfação permanente. Queremos sempre o que não temos. Essa insatisfação já a manifestava António Variações numa das suas canções, ao dizer: “… porque eu só estou bem, aonde eu não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou” … 

É normal ter-se ambição, querer ir mais longe, mais além. Mas se achamos que a felicidade só está naquilo que não temos, algo está errado. É como correr atrás do arco-íris para o agarrar. As pessoas se têm pouco querem muito, se têm muito, querem muito mais e se têm muito mais, “têm a lata” de dizer que desejam ser felizes com pouco. Só que não dão um passo nesse sentido, para ficarem mesmo com o “pouco” … É que custa muito libertarem-se dos “teres e haveres”, num desprendimento dos bens materiais. E depois? Começariam tudo de novo a partir do zero? 

Para além de sermos seres insatisfeitos, também não damos valor ao que temos, a tudo aquilo de que usufruímos. Nem sequer percebemos quanto somos privilegiados em milhentas pequenas e grandes coisas que não valorizamos nada, mas a que milhões de pessoas gostariam de ter acesso e não têm. Ao abrir a torneira de água e poder escolher entre fria e quente, com muita ou pouca pressão, estou agradecido. Ao carregar no interruptor elétrico e fazer acender a lâmpada, estou agradecido. Ao ter uma casa onde me abrigar com a família, mais ou menos equipada, bem ou mal decorada, climatizada ou não, tenho de estar agradecido e feliz pela localização. Há melhor? Oh se há, mas não é isso que me deve fazer lamentar porque tenho quanto baste. 

Um homem que queria vender uma propriedade ao andar pela rua encontrou o poeta Olavo Bilac seu conhecido. E perguntou ao poeta: “Poeta, eu quero vender a minha propriedade que o senhor conhece tão bem. O senhor poderia redigir um anúncio de venda para eu pôr no jornal”? O poeta pegou em papel, lápis e escreveu: “Vende-se uma propriedade encantadora onde, num extenso arvoredo, cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por águas límpidas e cristalinas de um belo ribeiro. A casa nela existente é banhada pelo sol nascente e oferece as sombras tranquilas das tardes nas varandas”. Passados uns dias o poeta encontrou-se com o homem e perguntou-lhe: “Então, já vendeu a propriedade? E ele respondeu: “Nem pensei mais nisso. Depois de ver o anúncio que você escreveu é que eu vi a maravilha que tenho”.

Ao tomar conhecimento deste caso com o poeta Olavo Bilac, lembrei-me de uma viagem que fiz ao Brasil, tendo passado alguns dias numa fazenda em pleno Pantanal atravessada por um riacho sinuoso, onde se passeiam onças, jacarés e muitos outros animais e aves selvagens, além de poder andar de barco ou a cavalo. Para quem gosta de estar de bem com a natureza é algo espetacular. O dono da fazenda morava numa cidade próxima e, com a família, ia-se revezando na assistência aos clientes como nós. Numa das conversas contava ele que um dia contou a uma cliente oriental estar a pensar vender a propriedade. Então ela perguntou-lhe: “O que vai fazer com o dinheiro da venda”? E ele respondeu-lhe: “Vou comprar um paraíso qualquer para passar o resto dos meus dias”. E ela, sem rodeios, disse-lhe o que ele nunca ouvira: “Se o senhor já tem aqui um paraíso incrível, praticamente virgem, vai largá-lo de mão e procurar outro que não sabe se algum dia vai encontrar? Você não precisa de procurar o que já tem” … 

Assim é na vida. Não deixemos que seja necessário vir alguém de fora para valorizar o que nós não conseguimos ver, para admirar o que já não nos satisfaz e só porque queremos outra coisa. Sintamos a beleza da vida porque estamos dentro dela. E teremos sempre a escolha por viver com dificuldades, sem dificuldades e apesar das dificuldades. Mas viver, valorizando sempre tudo o que temos, muito ou pouco … 

E a pandemia fez ver, a quem quer ver, o muito que tínhamos, mas que achávamos não ser suficientemente bom. E se era …

Atenção aos erros de comunicação …

É através da comunicação que os homens e os animais, trocam informações entre si, quer seja por gestos, sons, linguagem corporal, verbal ou outros códigos. E as falhas ou erros, tanto na transmissão como na interpretação dessas informações podem ocasionar muitos problemas, pequenos ou grandes, podendo mesmo ficar fora de controle ou até serem irreversíveis. Não deixa de ser verdade que “a culpa costuma morrer solteira” porque os culpados arranjam quase sempre forma de “encontrar um bode expiatório”, embora os erros de comunicação possam acontecer com qualquer um de nós por mero acaso, falta de rigor na comunicação, por se falar muito do que não importa e retardar a informação essencial por receio ou medo. Sem consequências significativas, ainda há poucos dias fiz compras num comércio e, ao pagar, tinha de receber de troco 34,50 euros. Como ainda tinha a carteira aberta, pedi à senhora para me entregar as notas (30,00 €) com a intenção de as arrumar logo, pois as moedas costumo guardá-las no bolso das calças. E ela assim fez. Enquanto as colocava na carteira, ela agradeceu-me e enfiou os 4,50 euros em moedas numa caixa decorada para brindes de Natal. Não tendo sido essa a intensão pois nem reparara na caixa de ofertas, percebi o erro, mas não o desfiz, até porque a culpa fora minha ao não a informar bem da minha intenção e nem o montante em causa era significativo. Mas o não entendimento sobre prescrições e conselhos médicos pode levar a problemas de saúde mais ou menos graves, conforme o caso.

Um dentista procurava orientar os pacientes sobre os cuidados a ter para evitar hemorragia após a extração de dente. Entre outros, havia um conselho que recomendava sempre: “nada de café quente na boca”. Qual não foi a surpresa quando um dos seus pacientes apareceu no dia seguinte à extração com a boca toda inchada. Quando lhe perguntou o que aconteceu, ele respondeu que não sabia pois tinha feito tudo direitinho como o doutor mandara: “tomei café quente e fui nadar” …

A falta de clareza, com rodeios, não objetiva e não indo ao centro da questão, pode acontecer porque há pessoas a acharem que os outros têm de entender e adivinhar o que elas pensam, dando-lhes códigos de informação nem sempre fáceis, como foi o caso duma mulher num restaurante. Depois de ver a ementa, pediu uma sopa. O empregado serviu-a e afastou-se um pouco. Mas ela chamou-o logo: “Pode provar a sopa”? O rapaz perguntou se estava alguma coisa mal e ela insistiu: “Pode provar a sopa”? Então, imaginando que a sopa estivesse fria, ele pediu desculpa e disse-lhe que trazia uma sopa quente. Mas ela não desarmou: “Pode provar a sopa”? Já farto desta conversa, o rapaz questionou-a: “Se a sopa não está ruim, nem fria, qual é o problema? E ela continuou: “Pode provar a sopa”? Com tanta insistência da parte da cliente, ele sentou-se, puxou o prato para si e procurou a colher para a provar. Não havia colher. E então ela completou a informação: “Já viu qual é o meu problema com a sopa? A falta da colher. Sem ela, não consigo comê-la”!!!

Mas muitas vezes tiramos conclusões precipitadas antes de conhecer a informação completa e podemos arranjar uma confusão danada:  

“Num determinado país foi criado um programa de incentivo à natalidade, pois o número de habitantes estava a cair muito e a proporção de idosos crescia assustadoramente. Necessitando de mão-de-obra, o governo decretou uma lei que obrigava os casais a ter

um certo número de filhos. A lei dava também a tolerância de cinco anos após o casamento, ao fim dos quais o casal deveria ter pelo menos um pimpolho. Aos casais que nesse prazo não tivessem um único filho, o governo destacaria um agente auxiliar para que a criança fosse gerada. Neste cenário deu-se o seguinte diálogo entre um casal:                                                                                                                   

“Ela disse-lhe: – Querido, completamos hoje cinco anos de casamento. E ele: – É … querida e … infelizmente não tivemos um filho sequer. E a mulher continuou: – Será que eles vão mandar o tal agente? Mas ele respondeu: – Não sei … talvez mandem! Nervosa, ela insistiu: – E se ele vier? Ouviu-o num desabafo: -Bom, eu não posso fazer nada. Ao que ela adiantou: – E eu, menos ainda … Já à porta, ele disse: – Tenho de sair pois estou atrasado para o trabalho.

Logo após a saída do marido, bateram à porta: TOC, TOC, TOC!!!! A mulher abriu e encontrou um homem com boa aparência à espera

(Tratava-se de um fotógrafo que saíra para atender a chamada de uma família que queria fotografar a sua criança recém-nascida, mas que, por erro, se enganara no endereço). E aconteceu esta conversa:

HOMEM: Muito bom dia! Não sei se sabe, mas eu sou…

MULHER: Ah, já sei! Faça o favor de entrar.

HOMEM: Obrigado. O seu marido está em casa?

MULHER: Não. Já foi trabalhar.

HOMEM: Presumo que esteja a par da minha vinda aqui?!…

MULHER: Sim e o meu marido também sabe de tudo. E eu concordo.

HOMEM: Ótimo. Então, vamos começar.

MULHER: Mas já? Tão rápido!!!

HOMEM: Preciso de me despachar, pois hoje ainda tenho de visitar mais 16 casas.

MULHER: Minha nossa! E o senhor aguenta?

HOMEM: O segredo é gostar do meu trabalho. Dá-me muito prazer!

MULHER: Então, vamos lá começar. Como faremos e onde prefere?

HOMEM: Permita-me sugerir: – Uma no quarto, duas no tapete, duas no sofá e, uma em pé ao lado da mesinha do telefone.

MULHER: Puxa, serão necessárias assim tantas?

HOMEM: Bem, talvez possamos acertar na mosca logo à primeira tentativa.

MULHER: O senhor já visitou alguma casa neste bairro?

HOMEM: – Não, mas tenho comigo várias amostras do meu trabalho e… (mostrou algumas fotos de crianças). – Não são lindas??

MULHER: Como são belos os bebés! Foi o senhor mesmo quem fez?

HOMEM: Sim. Veja esta. Foi conseguida à porta do supermercado.

MULHER: Que horror! O senhor não acha que é muito público?

HOMEM: Sim, mas a mãe queria ter uma grande publicidade.

MULHER: Eu não teria coragem para isso!!!

HOMEM: Já esta aqui foi efetuada em cima de um autocarro.

MULHER: Cacilda. Minha nossa!!! De um autocarro?

HOMEM: Foi um dos serviços mais difíceis que eu fiz na vida.

MULHER: Claro, eu imagino!!!

HOMEM: Esta foi feita no inverno, num Parque de Diversões.

MULHER: Credo! Como foi que o senhor conseguiu? Não sentiu frio?

HOMEM:  Não foi fácil! Como se não bastasse a neve a cair, tinha uma enorme multidão à volta. Quase não consegui acabar …

MULHER: Oh, não. Eu sou discreta e não quero ninguém a olhar-nos.

HOMEM: Ótimo, eu também prefiro assim. Agora, se me der licença, preciso armar o tripé. 

MULHER: TRIPÉ?!!!

HOMEM: Sim, minha senhora, pois o negócio, além de pesado, depois de armado mede quase um metro.

E a Mulher …  desmaiou.

“Quando a tempestade passar” …

Terminou mais um ano que não vai deixar saudades e será um marco nas nossas vidas. Nunca tínhamos passado por algo tão difícil, não só enquanto pessoas, mas também enquanto país e humanidade. Ficará para a história como o ano da pandemia covid-19, com gravíssimas consequências sanitárias, económicas e sociais cuja dimensão ainda se não conhece. 

Perderam-se familiares, amigos, vizinhos, conhecidos e muita gente de que nem ouvimos falar. Tem-se sofrido muito, tanto física como psicologicamente, até porque as medidas de proteção nas, quais se inclui o confinamento, por prolongadas no tempo, são uma violência terrível, em especial para idosos e crianças. E como é difícil manter distantes os que nos são próximos, acenar ao longe a quem se queria abraçar bem perto, ter de dar um carinho sem o necessário toque de que todos sentem falta. E as despedidas de entes queridos que nunca se deram, o luto que não foi feito, o adeus que se perdeu. Será que alguém ficou indiferente às imagens televisivas das enormes valas comuns com que as televisões nos chocaram contendo milhares e milhares de urnas alinhadas como em parada militar e onde foram a sepultar (quase) na clandestinidade pessoas como nós, sozinhos e afastados daqueles a quem amavam? Foram-se empresas, empregos, economias, projetos de vida e sonhos. As promessas que cada um fez para o 2020 no final do ano anterior esfumaram-se com a chegada de algo invisível, mas que se revelou superior a todos nós. Temos muito a lamentar pela pandemia que virou do avesso este nosso mundo, temos muitas lições a tirar se as quisermos aprender ou assobiamos para o lado “quando a tempestade passar” e retomamos o caminho errado que nos trouxe até aqui. A escolha será nossa.

Mas se quiser ver o 2020 com outro olhar, acho que no meio da luta brilhou de forma cintilante uma enorme legião de heróis anónimos na solidariedade, na dedicação, na entrega aos outros, ainda que em muitos casos pagando tudo isso com a sua vida. Na linha da frente do combate estão, sem dúvida, todos os profissionais de saúde, mas não podemos esquecer também os que cuidam de idosos, crianças e das pessoas com deficiências, com os minutos feitos horas e horas feitas dias ou semanas. Ficou essa lição de superação e sacrifício pessoal, da família, da saúde e descanso. E vi isso na maioria dos colaboradores da Misericórdia de Lousada, dos Lares ao Hospital, do Infantário ao Apoio Domiciliário, numa entrega sem precedentes, uma lição de como é importante o reconhecimento e valorização das pessoas. 

No final do ano que findou chegou, finalmente, um sinal de esperança com a vinda das primeiras vacinas num programa comum da União Europeia e de entrega proporcional à população de cada país, num caso raro de solidariedade real. Mas não nos iludamos nem baixemos a guarda, porque é muito cedo para pensar que “são favas contadas”. Vamos ter ainda de penar muito, vamos continuar a ver partir gente de quem gostamos, a ter de ficar contidos com vontade de abraçar, a ser pacientes e esperar que chegue a bonança, que ainda não chegou. Até lá acreditemos que tudo isto vai mudar as nossas vidas, a forma de olhar, ver e nos relacionarmos uns com os outros, de respeitar a terra que nos dá abrigo e se há algum verdadeiro significado para a nossa presença aqui que não seja o “Ter” só para pensar que somos donos do que quer que seja. E vale sempre a pena acreditar … 

Neste momento em que se começa a vislumbrar uma pequena luz ao fundo do túnel, faz todo o sentido transcrever um poema cuja autoria se atribui a Kathleen O’Meara durante a epidemia de peste em 1800, mas que, afinal, terá sido escrito pelo cubano Alexis Valdés em plena pandemia de Covid-19. Por um ou por outro, vale o momento:

“Quando a tempestade passar

As estrelas se amansarem

E formos sobreviventes

De um naufrágio coletivo,

Com o coração choroso

E o destino abençoado

Nós sentir-nos-emos bem-aventurados

Só por estarmos vivos.

E daremos um abraço ao primeiro desconhecido

E rejubilaremos por ter a sorte de ter um amigo.

E aí lembraremos tudo aquilo que perdemos;

E de uma vez aprendemos tudo o que não aprendemos.

Não teremos mais inveja, pois todos sofreram,

Não teremos mais o coração endurecido,

Pois seremos todos mais compassivos.

Valerá mais o que é de todos do que eu nunca consegui,

Seremos mais generosos

E muito mais comprometidos.

Entenderemos o quão frágeis somos

E o que significa estarmos vivos!

E sentiremos empatia por quem está e por quem se foi …

Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado,

Aquele de quem nunca soubemos o nome e sempre esteve ao nosso lado.

E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado …

Mas nunca perguntamos o nome dele

Porque estávamos com pressa …

E tudo será milagre!

E tudo será um legado

E a vida que ganhamos será respeitada!

Quando a tempestade passar,

Eu te peço, Deus, eu te suplico,

Que nos tornes melhores.

… Como Tu, Deus, nos sonhaste!”

Cozidos em lume brando. E felizes…

Há muitos anos atrás fui visitar uns tios que não via há algum tempo, absorvido no ritmo do trabalho e dos afazeres do dia a dia. O meu tio era muito formal comigo, mas gostava de falar e por isso tivemos de pôr a conversa em dia durante mais de uma hora, recostados em dois cadeirões na varanda da casa. Já a meio da tarde e com as novidades em dia, pediu à minha tia para arranjar um lanche, confidenciando-me em voz baixa, mas com orgulho: “vai provar uma pinga especial que eu cá tenho. É uma maravilha”.

Esperei para ver. Quando ela colocou os petiscos na mesa sobre uma toalha de linho branco, ataquei a broa e as rodelas de salpicão muito finas, mesmo a meu gosto. Depois de ter feito uma “boa cama” para a pinga prometida, ele segurou na cântara de barro, encheu-me o copo e disse com entusiasmo: “prove e diga-me lá se é ou não é bom”. Não sendo propriamente considerado provador, levei o copo à boca e bebi um trago, bochechando para apreciar melhor as características do vinho. Então, fui apanhado por um intenso choque gustativo: O raio do vinho era praticamente vinagre. Desprevenido, de repente vi-me num dilema diante do seu olhar expectante: entre o ter de dizer uma mentira piedosa e preservar-lhe o sorriso confiante naquele bom vinho ou contar-lhe a verdade nua e crua e matar-lhe a candura da ignorância. Claro que não tinha outra saída senão mentir-lhe. Era a chamada “mentira piedosa”, que não trazia nenhum mal ao mundo, mas que era muito importante para ele, até porque “a ignorância é feliz”.

Afinal, o que se tinha passado para alguém como ele beber um vinho avinagrado e considerá-lo excelente? A minha conclusão em função do que soube depois, é que se tratou de um fenómeno bem simples: os meus tios viviam sozinhos e só eram visitados ao fim de semana pelos filhos que residam fora. Ora, apesar disso, tinham aberto uma pipa de mais de quinhentos litros de vinho bom, mas era vinho a mais para duas pessoas com a sua idade consumirem em espaço de tempo razoável sem que se alterasse. Se o vinho era bom quando a pipa foi aberta – e admito que sim – com a entrada de ar na vasilha por força da saída do vinho criaram-se condições para o desenvolvimento das bactérias responsáveis pela acidificação, o que se veio a verificar, por aquele vinho ter sido consumido ao longo de muitos meses, tempo mais que suficiente para que a transformação do vinho em vinagre se tivesse verificado. Então como é que não se aperceberam que o vinho estava avinagrado? Por uma razão simples: começaram por beber um vinho bom ou até muito bom, durante algumas semanas. No entanto, com as condições de oxigenação ideais para se dar a acidificação, esta foi acontecendo muito lentamente e, também lentamente, foram-se adaptando ao novo paladar do vinho pois as alterações diárias eram mínimas e não lhes permitia aperceberem-se da diferença. Como não contrapunham com outra amostra, o seu gosto ia sendo “modelado” pelas mudanças lentas do vinho e mantiveram assim a classificação de “bom” para um vinho que de bom já nada tinha. É como quando temos um filho e não nos apercebemos de que ele cresce diariamente, porque as diferenças são sempre pequenas de um dia para o outro. Só quando vem alguém de fora que já não o vê há algum tempo, é que se apercebe do “salto” que ele deu e diz com grande espanto: “Como o rapaz cresceu desde a última vez que o vi”!!!

Lembrei-me deste acontecimento com o meu tio quando há pouco li uma breve história em que Olivier Clerc, através duma metáfora, põe em evidência as graves consequências de não termos consciência das mudanças que afetam a nossa saúde, as nossas relações, a evolução social e até o ambiente. E, como ela é uma pequena grande lição de vida que cada um de nós pode e deve guardar para si e dela tirar os proveitos mais convenientes, o caso do vinho só vem confirmar que podem ser efetuadas grandes mudanças em muitos aspetos da vida de cada um ou de todos nós se não nos apercebermos das pequenas alterações que forem sendo feitas ou se não lhe dermos importância. Porque muitas pequenas mudanças podem facilmente transformar-se numa mudança profunda. Mas vamos à história de Olivier Clerc:

“Imagine uma panela de água fria na qual nada tranquilamente uma pequena rã. É acesa uma chama debaixo da panela e a água começa a aquecer muito lentamente. E, como a água aquece devagar, a rã não se apercebe de nada. Pouco a pouco fica morna e a rã, acha-a muito agradável e continua a nadar. A temperatura continua a subir …

Às tantas, a água está mais quente do que a rã gosta. Sente-se algo cansada, mas não fica com medo. Até que a água fica bem quente e ela começa a achar desagradável. No entanto, já está muito debilitada e então suporta e nada faz. A temperatura continua a subir sem que a rã tenha forças para sair e acaba por ser cozida e morre. Se a mesma rã tivesse sido lançada diretamente na água a 50 graus, com um golpe de pernas teria saltado de imediato para fora da panela. Isto mostra que, quando alguma mudança acontece lentamente, escapa à nossa consciência e perceção e não desperta, em regra, qualquer reação, oposição ou tipo de revolta.

Se olharmos para o que tem acontecido na sociedade há décadas, veremos que temos sofrido uma mudança lenta no modo de viver e que nos estamos a habituar. Uma série de coisas que há 20, 30, 40 ou 50 anos nos teriam horrorizado, foram lentamente sendo tomadas como normais, deixando a maior parte das pessoas indiferentes. Em nome do progresso, da ciência, do lucro, vão sendo efetuados ataques contínuos às liberdades individuais, à natureza, à beleza e alegria de viver, lenta e repetidamente, com a cumplicidade das vítimas, desavisadas e, agora, já incapazes de se defender. As previsões para o futuro, em vez de suscitarem reações e medidas preventivas, preparam as pessoas para, psicologicamente, aceitar algumas condições decadentes e até dramáticas. Quando falei destas coisas a primeira vez, era para amanhã. Agora, é para hoje!!! Consciente ou cozido, precisa escolher! Então, se você não está como a rã já meio cozido, dê um saudável golpe de pernas antes que seja tarde demais” …

Ao recordar o orgulho que o meu tio tinha no seu “vinho”, que já não passava de vinagre em que fora transformado lentamente e entender a mensagem de Olivier Clerc, tomo mais consciência de que “estamos a ser cozidos em lume brando”, adormecidos e tornados coniventes das múltiplas transformações profundas que afetam a sociedade de que fazemos parte e o meio ambiente desta nossa casa comum, que podem pôr em causa o futuro das próximas gerações que são nossa responsabilidade. Conseguiremos reagir a tempo de manter o planeta habitável e evitar a descaracterização da sociedade efetuada muito sorrateiramente, em nome do radicalismo e de pretensas liberdades?

Um eterno presente de Natal …

Já foi há muito tempo. Tinha eu oito ou nove anos e fui com a família à Missa do Galo, onde já se podia “beijar o Menino Jesus” que, nesse tempo, era a Personagem central do Presépio e do Natal (mais tarde viria a ser substituído pelo homem das barbas brancas com fatiota vermelha a que chamam pai natal, pela árvore de natal e um montão de produtos comerciais impingidos pelas indústrias que capturaram a Festa). No órgão, estava um padre relativamente novo que eu nunca tinha visto, que foi tocando ao longo de quase toda a celebração ora a acompanhar o coro local, ora a solo como música de fundo. 

No fim da Missa e quando o celebrante iniciou a cerimónia para “dar o Menino Jesus a beijar”, daquele velho órgão saiu uma música sublime, tocada com delicadeza e elevação num controle perfeito na altura e duração do som, que me deixou maravilhado. Nunca ouvira aquele hino nem vira alguém tocar tão bem. Dei comigo concentrado naquela música que o organista conseguia tirar do velho órgão da igreja. Emocionado pela beleza dos acordes, senti os olhos húmidos. E continua a ser uma bênção e um privilégio ouvi-la, especialmente nesta época do ano. Por alguma razão a Unesco não ficou indiferente e considerou-a em 2011, e bem, Património Cultural Imaterial da Humanidade. 

O nome original dessa linda canção de Natal é “Stille Nacht” e já foi traduzida e cantada em numerosos idiomas. Na versão portuguesa é conhecida por “Noite Feliz”, se bem que na tradução do original devia ser “Noite Silenciosa”.

Vale a pena saber quem foram os seus autores e a história da pressa na sua criação para resolver um problema. Ainda bem que aconteceu:

Oberndorf é uma pequena aldeia austríaca à beira do rio Salzbach, na região de Salzburgo. Naquela véspera de Natal do ano 1818, o padre Joseph Mohr estava desesperado porque o órgão da igreja avariara, ao que parece com os foles roídos pelos ratos. Sem o órgão, o habitual concerto de Natal seria um fiasco. E logo no primeiro Natal naquela paróquia! No limite, pediu orientação a Deus. Então lembrou-se que, dois anos antes escreveu um poema simples, também na véspera de Natal, após uma caminhada pelos bosques nas montanhas da região. Encontrou o manuscrito do poema numa gaveta da sacristia e correu para casa de um professor e músico humilde chamado Franz Xaver Gruber a quem perguntou se podia musicar a sua letra para que toda a gente a pudesse cantar na Missa do Galo desse dia. Depois de ler o poema, Gruber disse que sim pois a letra era simples e permitia uma melodia fácil. Mas teria de ser tocada só com viola porque não havia tempo para fazer algo mais elaborado. Ele respondeu que não era um problema. Pelo contrário, até vinha a calhar já que o órgão estava avariado.

O padre Mohr agradeceu e voltou à igreja para organizar os detalhes da Missa do Galo, enquanto Gruber se entregou à tarefa de fazer em tão poucas horas a música para o seu amigo. O músico chegou cedo à igreja com a viola e reuniu o pessoal do coro para lhes ensinar o hino improvisado, já que a hora da Missa se aproximava. E naquela noite de Natal de 1818, os participantes nessa Missa do Galo da igreja de S. Nicolau de Oberndorf, em Salzburgo, cantaram maravilhados o hino singelo e tocante escrito por Mohr e musicado por Gruber, que viria a tornar-se na canção natalícia mais conhecida no mundo. 

E como se espalhou? Semanas depois, o técnico que foi consertar o órgão ouviu a história e pediu para tocar essa música. Impressionado com a riqueza melódica da composição, decidiu divulgá-la por todas as igrejas por onde passava, até que o caso chegou aos ouvidos do rei, Friedrich Wilhelm IV da Prússia, em 1838 e difundida de forma ativa. Depois, o Cristianismo levaria a música para todo o mundo através dos missionários, tornando-a global.  

O que começou como um momento de pânico e promessa dum fiasco, terminou com um eterno presente de Natal para toda a humanidade em forma de música.

A canção a que o padre austríaco Joseph Mohr deu letra, inspirada no humilde Natal de Jesus em Belém e o seu amigo professor e organista Franz Xaver Gruber a linda música, emergida das marcas das guerras napoleónicas e em tempo de pobreza, incêndios, inundações, falta de segurança e fome, tornou-se popular e um dos temas musicais mais conhecidos. A tal ponto, que conseguiu parar por uma noite a Grande Guerra. O poema foi criado em tempos muito difíceis para Salzburgo. Daí as palavras deste cântico expressarem uma ânsia de redenção e paz. A letra original do padre Joseph Mohr, em alemão, fala de Jesus que, “como irmão, abraça carinhosamente os povos do mundo”. E, passados 200 anos, a classe de Franz Gruber tem o tamanho de uma civilização.

A divulgação da canção pelo mundo em muitos idiomas resultou em traduções nem sempre fieis ao texto original, como é o caso da versão portuguesa. No entanto, geralmente mantiveram o sentido principal da canção: O Natal como festa da redenção e sinal de paz. Mas, nem sempre isso foi respeitado, como aconteceu com a versão nazi deste cântico. O regime nazi tinha um problema óbvio com o Natal: Jesus era judeu. Por isso, a sua equipa tentou remover todo o contexto religioso da celebração sem conter referências a Deus, Cristo ou fé e torná-la um louvor a Hitler.

Na versão do americano Bing Crosby, que aparece na terceira posição entre os singles mais vendidos em todo o mundo com cerca de 30 milhões de cópias comercializadas em todo o mundo ou na naquela versão simples que ouvi pela primeira vez na minha infância, “Noite Feliz” é um cântico celestial que nos toca os sentidos, conforta a alma e faz “regressar a casa” na noite de Natal …

Vai um cigarro? Não, obrigado…

A imagem mais remota que eu tenho de alguém a fumar é a do senhor Moura, jornaleiro de profissão. Já lá vão “uns anitos” … Encostado à enxada, tirava a caixa de mortalhas do bolso e um pequeno saco com tabaco a granel. Pegava numa mortalha, dobrava-a ligeiramente para lhe pôr dois dedos de tabaco e enrolava-a com as mãos. Terminava levando à boca a aba da mortalha, que molhava com a língua para a colar à parte de dentro e rematar o cigarro. Para o acender, usava um fósforo da caixa que trazia no bolso das calças. E retomava o trabalho com o cigarro pendurado no canto da boca. Cedo me apercebi que os cigarros feitos na hora, como os do senhor Moura, eram comuns nos pobres. Os cigarros “Fortes” já eram mais caros. Muito parecidos com os que o senhor Moura fazia, já vinham prontos, amarrados com uma tira de papel. Mais caros ainda eram os “Provisórios” e o “Português Suave”.

Já agora, posso dizer que tive a sorte de “ter passado entre a chuva sem me ter molhado”. Ou seja, nunca peguei sequer num cigarro para fumar, apesar de ter sofrido uma grande pressão própria dos tempos de juventude em que a malta apertava connosco para fumar, usando expressões fortes para nos convencer como “se não fumares não és homem” ou “fumar é para homens de barba rija”. E ainda hoje não sei se o nunca ter fumado se deve ao facto de não ter havido fumadores em casa dos meus pais ou à imagem que me ficou de certas pessoas agarradas ao cigarro, como se disso dependesse a sua vida. Bem cedo me ficou um sentimento de desconforto ao ver pessoas conhecidas a fumar com sofreguidão, escravos desse fumo na queima de folhas de tabaco enroladas, a arder lentamente.

Em criança não conheci nenhuma mulher que fumasse, pois era vício (quase) exclusivo de homens. Não “ficava bem uma mulher de cigarro na boca”, nem se imaginava um pai a autorizar. Se já era difícil para um rapaz, muito pior era com as raparigas, senão mesmo impossível. Só os homens podiam ficar horas seguidas a engolir fumo …

Já adulto, dizia-me um amigo que eu nunca conheceria o prazer que o cigarro dava a um fumador. E eu contrapunha sempre com o mesmo slogan: “Não conheço, nem quero conhecer”. Ele insistia, enumerando algumas (supostas) vantagens dos “inaladores de fumo ambulantes” como lhes chamava. Dizia então que “os fumadores sabem que vão morrer, enquanto os outros andam enganados”; “não preciso que me façam radiografias aos pulmões, pois sei o resultado mesmo antes de as fazer”; “os fumadores divertem as crianças a fazer anéis de fumo e têm o cigarro por companhia quando meditam”; “fumar é uma boa razão para ter cancro, mas quem não fuma não tem razão nenhuma”; “o cigarro aceso na mão dá estilo, uma aparência sexy e faz-nos mais homens”. Ora, terá sido precisamente o cigarro que lhe antecipou os dias, confirmando então uma outra suposta vantagem: “Os fumadores vivem menos, mas só deitam fora os últimos anos, ou seja, os piores”.

Para um fumador, pior do que não fumar, é não ter tabaco no bolso. É ter a sensação que, quando lhe vier a necessidade, pode faltar-lhe o produto.  É como sentir-se despido no meio do nada. Por isso, tem de encontrar rapidamente um local onde possa abastecer-se, ainda que não seja para fumar logo. Só o facto de sentir o tabaco no bolso já lhe dá tranquilidade. 

Nos anos 80 a Tabaqueira fez uma longa greve, que provocou falta de tabaco no mercado nacional. A partir de certa altura, era muito difícil encontrar cigarros à venda. Para quem se dispusesse a observar um qualquer centro urbano, rapidamente identificava o “corrupio” de pessoas a caminhar apressadas e cabeça baixa, de um café para outro, entrando e saindo sem se demorar, à procura de cigarros. Já nem se davam ao cuidado de pedir a marca que fumavam, pois a resposta era sempre a mesma. De tal forma era um drama que um dia o Lourenço, motorista de camião, num desabafo sentido, disse-me: “Sabe, nem imagina quanto sofro com a falta de tabaco. Nem é só pelos cigarros. Como ando por lá, sempre que vejo um café paro para ver se arranjo tabaco. Mas como fica mal entrar e pedir logo um maço, tomo uma bica e só depois pergunto se têm tabaco, para ouvir quase sempre: “Não temos”. E o que mais me custa é que tenho de tomar café atrás de café e … não gosto de café”. Nesse período, já um colega e amigo me confessava viver em pânico, com medo de ficar sem cigarros. “Só a possibilidade de não conseguir abastecer-me para o dia seguinte gera-me uma ansiedade terrível” … 

Não sendo objetivo desta crónica fazer qualquer campanha para que os fumadores deixem de consumir tabaco pelo respeito que tenho pelo livre arbítrio e o direito de cada um poder fazer as suas escolhas, boas ou más, não posso deixar de dizer que, não sendo fumador, fui muitas vezes incomodado no “meu canto” por aquela pequena coluna de fumo irritante que vinha dum cigarro qualquer, direitinha ao meu nariz, como de propósito, nalguns casos a vários metros de distância. No estádio, três filas à frente sentava-se um homem que fumava com muita frequência durante o jogo. E não é que aquele fiozinho de fumo saído do seu cigarro acertava sempre com o meu nariz!!! E não posso deixar de lembrar o ocorrido com o Vasco Lemos. Depois de fazer um exame aos pulmões, o médico ao olhar os resultados disse-lhe: “Você deve ser um grande fumador”!!! E ele, surpreendido, respondeu-lhe: “Senhor doutor, nunca na minha vida fumei qualquer cigarro”. Então o médico retorquiu: “Nesse caso, passa muito tempo junto de alguém que fuma, pois os seus pulmões parecem de um fumador crónico”. Aí, o médico acertou. A mulher dele fumava muito e até na mesinha de cabeceira tinha um maço de cigarros para fumar durante a noite, na cama … 

Os fumadores são uma legião com cerca de dois milhões de pessoas em Portugal, um campo que os governantes sempre exploraram com impostos obscenos sobre o tabaco, alegadamente para aliviar o custo que eles são para o Serviço Nacional de Saúde, já para não falar na poluição que provocam através das beatas e isqueiros descartados, além do fumo que se entranha nos espaços e roupas, mesmo dos não fumadores. Com tão grande “população votante”, não sei como ainda ninguém se lembrou de formar o PTA (Partido do Tabaco e Afins), capaz de vir a eleger um grupo parlamentar semelhante ao PAN para, em tempo de geringonças, exigirem redução de impostos, liberdade de fumar e incomodar os outros sem serem confinados. 

Recordo quando, em época de dificuldades, se ouvia com frequência um convite expresso na pergunta “vai um cigarro?”, efetuado por um qualquer fumador. Fui convidado muitas vezes e, apesar de “não ser fumador”, não deixava de responder com o agradecimento que esse gesto, de partilha e solidariedade, merecia: “Não, obrigado”.