Ainda antes de eu nascer, houve um ano de seca em que quase não choveu. Nas fontes, ou corria um “fio de água” ou secaram. Até os poços, cuja captação é a alguma profundidade, estavam reduzidos a um nível muito baixo de água, insuficiente para as necessidades da população. A situação era grave, as pessoas andavam preocupadas e com receio que a água faltasse por completo. Ciente da preocupação popular e da necessidade de ajuda divina, o pároco da minha aldeia convocou os paroquianos a orarem em conjunto no domingo à tarde. Com a igreja cheia de gente movida pela fé e crença da intervenção divina, a cerimónia começou. Todos rezavam com fervor e devoção. Já a oração conjunta decorria há algum tempo, quando a trovoada se fez anunciar através de um trovão distante. Mas isso não fez com que pároco e fieis interrompessem a cerimónia e continuaram a rezar. Pouco a pouco o ribombar dos trovões foi-se aproximando e centrou-se sobre a igreja, fazendo-se acompanhar duma chuva torrencial. No entanto, o celebrante continuou a cerimónia sem vacilar, como que a agradecer essa dádiva de Deus. Dentro da igreja sentia-se que chovia muito e era grande a quantidade de água caída sobre o telhado do templo. As pessoas sentiam-se esmagadas pela resposta ao seu apelo. E, às tantas, a água começou a entrar pela porta, numa enxurrada mista de água e terra, invadindo a igreja. Quando se aperceberam que a água já estava no interior do templo, algumas pessoas entraram em alvoroço e outras desataram a gritar. Ao ver toda aquela agitação, o padre interrompeu a oração. Ao manter-se a agitação, fechou o livro de orações e disse: “Vamos embora. O povo já está farto de água …”
É normal que andemos meses a queixar-nos que não chove, que há falta de água, as albufeiras estão baixas e, quando a chuva vem, logo ao segundo dia é vulgar ouvir-se: “Já estou farto de chuva”. Dois dias antes resmungava-se por não chover e mal ela chega já se quer outra coisa?
É por isso que se costuma dizer que “as pessoas nunca estão satisfeitas com nada”. E é verdade. Somos um ser “defeituoso”, pois temos uma insatisfação permanente. Queremos sempre o que não temos. Essa insatisfação já a manifestava António Variações numa das suas canções, ao dizer: “… porque eu só estou bem, aonde eu não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou” …
É normal ter-se ambição, querer ir mais longe, mais além. Mas se achamos que a felicidade só está naquilo que não temos, algo está errado. É como correr atrás do arco-íris para o agarrar. As pessoas se têm pouco querem muito, se têm muito, querem muito mais e se têm muito mais, “têm a lata” de dizer que desejam ser felizes com pouco. Só que não dão um passo nesse sentido, para ficarem mesmo com o “pouco” … É que custa muito libertarem-se dos “teres e haveres”, num desprendimento dos bens materiais. E depois? Começariam tudo de novo a partir do zero?
Para além de sermos seres insatisfeitos, também não damos valor ao que temos, a tudo aquilo de que usufruímos. Nem sequer percebemos quanto somos privilegiados em milhentas pequenas e grandes coisas que não valorizamos nada, mas a que milhões de pessoas gostariam de ter acesso e não têm. Ao abrir a torneira de água e poder escolher entre fria e quente, com muita ou pouca pressão, estou agradecido. Ao carregar no interruptor elétrico e fazer acender a lâmpada, estou agradecido. Ao ter uma casa onde me abrigar com a família, mais ou menos equipada, bem ou mal decorada, climatizada ou não, tenho de estar agradecido e feliz pela localização. Há melhor? Oh se há, mas não é isso que me deve fazer lamentar porque tenho quanto baste.
Um homem que queria vender uma propriedade ao andar pela rua encontrou o poeta Olavo Bilac seu conhecido. E perguntou ao poeta: “Poeta, eu quero vender a minha propriedade que o senhor conhece tão bem. O senhor poderia redigir um anúncio de venda para eu pôr no jornal”? O poeta pegou em papel, lápis e escreveu: “Vende-se uma propriedade encantadora onde, num extenso arvoredo, cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por águas límpidas e cristalinas de um belo ribeiro. A casa nela existente é banhada pelo sol nascente e oferece as sombras tranquilas das tardes nas varandas”. Passados uns dias o poeta encontrou-se com o homem e perguntou-lhe: “Então, já vendeu a propriedade? E ele respondeu: “Nem pensei mais nisso. Depois de ver o anúncio que você escreveu é que eu vi a maravilha que tenho”.
Ao tomar conhecimento deste caso com o poeta Olavo Bilac, lembrei-me de uma viagem que fiz ao Brasil, tendo passado alguns dias numa fazenda em pleno Pantanal atravessada por um riacho sinuoso, onde se passeiam onças, jacarés e muitos outros animais e aves selvagens, além de poder andar de barco ou a cavalo. Para quem gosta de estar de bem com a natureza é algo espetacular. O dono da fazenda morava numa cidade próxima e, com a família, ia-se revezando na assistência aos clientes como nós. Numa das conversas contava ele que um dia contou a uma cliente oriental estar a pensar vender a propriedade. Então ela perguntou-lhe: “O que vai fazer com o dinheiro da venda”? E ele respondeu-lhe: “Vou comprar um paraíso qualquer para passar o resto dos meus dias”. E ela, sem rodeios, disse-lhe o que ele nunca ouvira: “Se o senhor já tem aqui um paraíso incrível, praticamente virgem, vai largá-lo de mão e procurar outro que não sabe se algum dia vai encontrar? Você não precisa de procurar o que já tem” …
Assim é na vida. Não deixemos que seja necessário vir alguém de fora para valorizar o que nós não conseguimos ver, para admirar o que já não nos satisfaz e só porque queremos outra coisa. Sintamos a beleza da vida porque estamos dentro dela. E teremos sempre a escolha por viver com dificuldades, sem dificuldades e apesar das dificuldades. Mas viver, valorizando sempre tudo o que temos, muito ou pouco …
E a pandemia fez ver, a quem quer ver, o muito que tínhamos, mas que achávamos não ser suficientemente bom. E se era …