O esquecimento é a morte antecipada

Os últimos dias têm vindo a confirmar aquilo que eu já sabia há muito tempo, mas que não queria reconhecer na dimensão devida: que sou um “grande acumulador de lixo”. Essa confirmação devo-a, em parte, à pandemia, porque me tem obrigado a conter e ficar mais tempo em casa, dando bom uso a esse tempo de confinamento, especialmente ao “correr de fio a pavio” algumas divisões, identificando a tralha que se acumula em todo o lado, fazendo a separação do que é ou não útil e mandando para o lixo o que já era lixo há muitos anos. A verdade é que, ao fim de uma semana, ainda nem sequer saí do escritório e dum pequeno arrumo, tendo-me limitado a separar papelada e material eletrónico desatualizado. Ao “passar a pente fino” estantes, gavetas, armários, caixas, sacos, pastas, arquivos e embalagens diversas, foi como viajar no tempo, recordar momentos, relembrar razões que me levaram a conservar isto e aquilo, enfim, arranjar desculpas por não ter enviado tanta coisa há mais tempo para o caixote do lixo. Livros, relatórios, orçamentos, contratos, faturas, notificações, folhetos, revistas, cadernos, agendas, projetos e todo o tipo de documentos já com muitos anos de arquivo, desta vez foram “arquivados” de vez em caixas de cartão com destino ao Ecocentro. Ao todo, mais de 300 Kgs de papel para reciclar, um crédito a abater na conta da água e alívio cá em casa. Já no material eletrónico foram televisões, monitores, leitores de CD e DVD, walkman, rádios, telemóveis desde o “tijolo” aos mais recentes, antenas, carregadores, despertadores, cassetes, vários relógios e todo o tipo de cabos que as empresas vão trocando permanentemente para nos obrigarem a comprar novos. Enfim, lixo.

Depois entrei no material da Luísa, todo arrumado em caixas que fui abrindo e selecionando. Bem, não foi propriamente selecionar, pois pouco restou daquilo tudo. Dos seus arquivos escolares dos muitos anos de ensino em várias escolas, ficaram as fotografias dos alunos de algumas classes, crianças que hoje são homens e mulheres, apesar    

de, para ela, permanecerem crianças para sempre. De certo modo, dei comigo a pensar que lhe “apaguei o passado”, se bem que ela já o terá perdido desde o dia em que sofreu o derrame cerebral. A ligação que foi mantendo a esse passado manifestava-se nas manhãs em que me dizia que tinha de se levantar para ir à escola ou nas visitas que uma colega lhe fez durante vários anos após ter adoecido e mais duas ou três pessoas. Fora isso, não há outra ligação às escolas por onde passou e às pessoas com quem conviveu nesse longo período de vida.

Enquanto rasgava papeis, selecionava livros ou carregava caixas de velhos equipamentos eletrónicos, fui refletindo sobre a importância do afastamento e do esquecimento, uma espécie de morte antecipada que acontece frequentemente com as pessoas que atingem uma idade avançada e que, por várias razões a começar pela saúde, têm de ficar mais em casa, viver mais recolhidos. Lentamente, muitas vezes de forma quase impercetível, as visitas inicialmente normais vão sendo cada vez mais espaçadas, passando a raras, para serem substituídas por chamadas telefónicas que depois escasseiam, até se perder a “ligação” por completo. Por outro lado, as outras pessoas da mesma geração vão envelhecendo também, perdem a mobilidade e isso não ajuda a encontrarem-se com regularidade. E os mais novos já não conhecem, já nem sabem de quem se trata. 

Quando faleceu o senhor José Dias, um empresário de enorme importância em Lousada e que marcou uma época, apercebi-me que é essa a realidade. Para alguém como ele que deu emprego a muita gente criando oportunidades de uma vida melhor, que foi um dos três maiores industrias de Lousada, apoiou instituições e pessoas tornando-se uma figura importante na terra, ter na “despedida final” muito poucas pessoas a acompanhá-lo à sua última morada, seria algo que eu não imaginaria. Mas a verdade é que, se hoje perguntar aqui na sua terra quem era José Dias, a maior parte abana a cabeça e diz que não sabe. Só algumas pessoas de idade que viveram no seu tempo responderão à pergunta. A verdade é que, lamentavelmente, o senhor Dias foi praticamente esquecido na terra por quem tanto fez quando ainda estava vivo. “Morreu“ na memória dos conterrâneos muito antes da sua morte física. Aliás, o povo tem uma expressão que diz tudo: “Quem não é visto, não é lembrado”.

No seu caso, como acontece com muitas outras pessoas que se reformam e retiram da atividade vivendo mais recolhidas em casa, foi esquecido por uma parte dos que o conheciam e ainda estão vivos e foi ignorado pelos mais novos a quem nada dizia. E o certo é que, se pessoas como ele fizeram o que fizeram e depressa foram esquecidas ou passaram praticamente ao anonimato, que dizer do cidadão comum? É uma lei da vida muito injusta para as pessoas que merecem ser lembradas e confesso que, quando mais novo, acreditava que não era assim. Por isso defendi a necessidade de termos memória enquanto sociedade, se bem que hoje, mais que nunca, tenho consciência que rapidamente seremos esquecidos, sendo os filhos (e nem todos) o último “livro” onde nós seremos memória. Se pensarmos bem nisso, talvez sejamos menos arrogantes, convencidos, estúpidos e imbecis.

Defendi aqui nestas crónicas que algumas pessoas deveriam ver o seu nome perpetuado numa rua, praça ou bairro por tudo aquilo que fizeram e deram à sociedade, sendo uma delas o senhor José Dias cujo nome deveria ficar para sempre no parque industrial existente nas instalações fabris que construiu. No entanto, já duvido de mim mesmo, pois questiono quantas pessoas saberão quem foi Sá e Melo ou o Visconde de Alentem que dão nome a arruamentos da vila. 

O doutor Abílio Alves Moreira cujo nome serviu para batizar o bairro social local, contava muitas vezes o que determinada figura pública, que não consegui identificar, dizia ao saber que pretendiam fazer isso com ele: “Se acham que eu fiz alguma coisa de útil, que me imitem. Prefiro isso a ter o meu nome na placa de uma rua, que só servirá para mijatório de cães e pasmaceira de vadios” …  

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