“Quando a tempestade passar” …

Terminou mais um ano que não vai deixar saudades e será um marco nas nossas vidas. Nunca tínhamos passado por algo tão difícil, não só enquanto pessoas, mas também enquanto país e humanidade. Ficará para a história como o ano da pandemia covid-19, com gravíssimas consequências sanitárias, económicas e sociais cuja dimensão ainda se não conhece. 

Perderam-se familiares, amigos, vizinhos, conhecidos e muita gente de que nem ouvimos falar. Tem-se sofrido muito, tanto física como psicologicamente, até porque as medidas de proteção nas, quais se inclui o confinamento, por prolongadas no tempo, são uma violência terrível, em especial para idosos e crianças. E como é difícil manter distantes os que nos são próximos, acenar ao longe a quem se queria abraçar bem perto, ter de dar um carinho sem o necessário toque de que todos sentem falta. E as despedidas de entes queridos que nunca se deram, o luto que não foi feito, o adeus que se perdeu. Será que alguém ficou indiferente às imagens televisivas das enormes valas comuns com que as televisões nos chocaram contendo milhares e milhares de urnas alinhadas como em parada militar e onde foram a sepultar (quase) na clandestinidade pessoas como nós, sozinhos e afastados daqueles a quem amavam? Foram-se empresas, empregos, economias, projetos de vida e sonhos. As promessas que cada um fez para o 2020 no final do ano anterior esfumaram-se com a chegada de algo invisível, mas que se revelou superior a todos nós. Temos muito a lamentar pela pandemia que virou do avesso este nosso mundo, temos muitas lições a tirar se as quisermos aprender ou assobiamos para o lado “quando a tempestade passar” e retomamos o caminho errado que nos trouxe até aqui. A escolha será nossa.

Mas se quiser ver o 2020 com outro olhar, acho que no meio da luta brilhou de forma cintilante uma enorme legião de heróis anónimos na solidariedade, na dedicação, na entrega aos outros, ainda que em muitos casos pagando tudo isso com a sua vida. Na linha da frente do combate estão, sem dúvida, todos os profissionais de saúde, mas não podemos esquecer também os que cuidam de idosos, crianças e das pessoas com deficiências, com os minutos feitos horas e horas feitas dias ou semanas. Ficou essa lição de superação e sacrifício pessoal, da família, da saúde e descanso. E vi isso na maioria dos colaboradores da Misericórdia de Lousada, dos Lares ao Hospital, do Infantário ao Apoio Domiciliário, numa entrega sem precedentes, uma lição de como é importante o reconhecimento e valorização das pessoas. 

No final do ano que findou chegou, finalmente, um sinal de esperança com a vinda das primeiras vacinas num programa comum da União Europeia e de entrega proporcional à população de cada país, num caso raro de solidariedade real. Mas não nos iludamos nem baixemos a guarda, porque é muito cedo para pensar que “são favas contadas”. Vamos ter ainda de penar muito, vamos continuar a ver partir gente de quem gostamos, a ter de ficar contidos com vontade de abraçar, a ser pacientes e esperar que chegue a bonança, que ainda não chegou. Até lá acreditemos que tudo isto vai mudar as nossas vidas, a forma de olhar, ver e nos relacionarmos uns com os outros, de respeitar a terra que nos dá abrigo e se há algum verdadeiro significado para a nossa presença aqui que não seja o “Ter” só para pensar que somos donos do que quer que seja. E vale sempre a pena acreditar … 

Neste momento em que se começa a vislumbrar uma pequena luz ao fundo do túnel, faz todo o sentido transcrever um poema cuja autoria se atribui a Kathleen O’Meara durante a epidemia de peste em 1800, mas que, afinal, terá sido escrito pelo cubano Alexis Valdés em plena pandemia de Covid-19. Por um ou por outro, vale o momento:

“Quando a tempestade passar

As estrelas se amansarem

E formos sobreviventes

De um naufrágio coletivo,

Com o coração choroso

E o destino abençoado

Nós sentir-nos-emos bem-aventurados

Só por estarmos vivos.

E daremos um abraço ao primeiro desconhecido

E rejubilaremos por ter a sorte de ter um amigo.

E aí lembraremos tudo aquilo que perdemos;

E de uma vez aprendemos tudo o que não aprendemos.

Não teremos mais inveja, pois todos sofreram,

Não teremos mais o coração endurecido,

Pois seremos todos mais compassivos.

Valerá mais o que é de todos do que eu nunca consegui,

Seremos mais generosos

E muito mais comprometidos.

Entenderemos o quão frágeis somos

E o que significa estarmos vivos!

E sentiremos empatia por quem está e por quem se foi …

Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado,

Aquele de quem nunca soubemos o nome e sempre esteve ao nosso lado.

E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado …

Mas nunca perguntamos o nome dele

Porque estávamos com pressa …

E tudo será milagre!

E tudo será um legado

E a vida que ganhamos será respeitada!

Quando a tempestade passar,

Eu te peço, Deus, eu te suplico,

Que nos tornes melhores.

… Como Tu, Deus, nos sonhaste!”

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