Tive uma infância muito feliz

Ao olhar para trás, não tenho qualquer dúvida: “Tive uma infância muito feliz”. Não porque tivesse muito, pois era um tempo em que (quase) toda a gente tinha muito pouco, mas porque tive coisas que hoje já não existem, já não se fabricam e nem sequer estão à venda. São coisas que se perderam, provavelmente para sempre e com que as crianças de agora nem sequer chegam a sonhar.

Para começar, tive a liberdade total para ser criança com um recreio do tamanho de toda uma aldeia para as minhas brincadeiras, sem condicionantes nem condicionalismos, em segurança inquestionável, sem risco de ser raptado, violado, abusado, assaltado e nem sequer ameaçado, com uma porta aberta em cada casa onde podia comer um caldo mal adubado e beber água do poço ou da fonte.   

Tive a natureza por companhia, todos os dias, antes e depois de sair da escola, uma mestra da vida com quem aprendi a viver, conviver e a fazer parte dela. Conheci de perto bandos de pintassilgos, rouxinóis, papa-figos, petos (pica-paus), guarda-rios e tantas outras, muitas que já nos deixaram pelos desmandos do ser humano. Fiquei a saber dos seus hábitos de vida, onde os encontrar, como descobrir-lhes o ninho, identificar-lhes o canto e apreciar a sua beleza. 

Fui muito feliz por ter uma mãe a tempo inteiro, que estava sempre presente e era o centro do meu mundo e da nossa casa. Nunca deixou de estar por perto, vigilante, para o bem e para o mal, mas dando-me liberdade para “cair” e força para me levantar, numa aprendizagem de todos os dias. Mas também tinha todas as outras mães da aldeia a tomar conta de mim no caso de algo correr mal, porque todas essas mães eram solidárias. Se fosse caso disso, tinham luz verde para me dar uma palmada no rabo ou um puxão de orelhas. Aprendi a cair, levantar-me e lavar as feridas, no caso de um dedo, mão ou braço chupando o sangue do corte com a boca, fazendo da saliva o melhor desinfetante.

Como havia muito pouco de tudo, tinha de inventar os jogos e fazer os brinquedos. Para fazer uma bola usava uma meia velha enchida com trapos; o espeto fazia-o dum pau pesado, aguçado na ponta; a bilharda com uma tábua dando-lhe o feitio duma raquete; e a roda de arame tirava-a esfolando ou queimando a banda dum pneu velho. Já para fazer os peões tinha livre acesso ao torno do senhor Alberto espingardeiro perto de minha casa, trabalhando bocados de madeira que o Avelino, pauzeiro de profissão, me arranjava.

Desde tenra idade tive contacto quase diário com os trabalhadores e os trabalhos agrícolas, na época fundamentais para a subsistência e sobrevivência das gentes da aldeia, amanhos que aprendi bem antes de entrar para a escola porque eram parte daquela vida comunitária e uma forma da minha mãe me incutir hábitos de trabalho e o gosto por ver as culturas a crescer e dar fruto.

Cedo a prendi a respeitar pai e mãe, avós tios e toda a família, os mais velhos, as autoridades civis e religiosas e, por regra, todos os outros. Ah, e os professores, mesmo os que usavam a régua ou a cana para impor disciplina e castigar, sem que os meus pais se fossem queixar que lhe “bateram no seu menino”. Pelo contrário, se levasse, “comia e calava”, pois ainda podia levar mais. Felizmente, nunca sofri grandes castigos corporais …

Vivi a infância sem nunca ter ouvido sequer falar em drogas nem nas suas consequências, desconhecendo por completo aquilo em que se tornaria um flagelo dos tempos modernos.  

A minha mãe só me levou à escola no primeiro dia de aulas e nunca mais o fez, ficando eu com o encargo de ir a pé até lá, sozinho ou na companhia de algum colega, mas com a obrigação de não faltar às aulas. No único dia em que fiz gazeta, aliciado pelo Martins porque os pais iam colher diospiros no Souto e os dois podíamos comer quantos quiséssemos, quando cheguei a casa a minha mãe já sabia que faltara, num sistema de comunicações mais sofisticado que as redes sociais de hoje. Não me bateu, mas passei a tarde fechado na varanda da casa a ver os outros amigos passar e gozar comigo. Toda essa liberdade fez crescer em nós a autonomia, independência e responsabilidade!!!

Aprendi a respeitar os alimentos, fossem eles o pão, os legumes ou o que quer que fosse, pois eram escassos e não se podiam desperdiçar. A nada do que me era posto na mesa para comer disse “não gosto”, tal como nada que nos deitassem no prato ficava por comer. Era “luxo” a que ninguém se podia dar. A tal ponto se valorizava a comida que, no caso de haver um bocadinho melhor, quer fosse um pedacinho de carne ou o lombo duma sardinha, ficava sempre para o fim, para a “apresigar” na última garfada como guloseima final. Além disso, não havia desperdício de nada, nem sequer lixo como hoje. Os restos dos legumes como as cascas de batata ou da couve-galega e outras, iam parar ao balde e serviam de alimento para os porcos e as galinhas. Os outros, os que não eram comestíveis pelos animais, iam parar à estrumeira e dali saiam feitos estrume para os quintais, num eterno retorno, dando razão à afirmação que “nesta vida nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma”.  

Tenho consciência de que quase nada disto seria possível no mundo de agora que já nada tem a ver com aquele tempo e que até a mim já me parece ter acontecido noutra era, noutra vida. 

Não me fez falta o telemóvel para comunicar com amigos ou família porque uns e outros estavam por perto. Em compensação, tinha mais tempo para brincar e todo o meu mundo para explorar. Não precisei do computador nem do Ipad, até porque tinha uma lousa com um lápis do mesmo material, onde escrevia, desenhava ou fazia cálculos e usava vezes sem conta, bastando uma simples cuspidela e limpá-la com o cotovelo para apagar e ficar pronta para novos trabalhos, sem desperdício, sem necessidade de pilha ou ser ligada à eletricidade para carregar. Não tive jogos de computador, mas improvisei o jogo do “pica” com botões ou o jogo da “malha” com pedras, fazia espetos para jogar com os colegas num charco de lama ou jogava ao peão em qualquer sítio, que não sendo “tão limpinho”, era muito divertido e saudável. Não tive piscinas, mas o Rio Sousa esteve sempre lá, com a sua água pura e natural, sem químicos nem conservantes, para me banhar, beber se tivesse sede e deitar-me ao sol na erva da margem, ouvindo o canto dos pássaros. E para “fazer as necessidades”, tinha o campo de milho mais próximo. O mau cheiro desaparecia depressa com a brisa da tarde, havia sempre folhas de videira à disposição, as precursoras do papel higiénico, a “posição de descarga”, de cócoras, sempre foi a mais correta e o “produto” que ficava não se perdia, pois era aproveitado pelas plantas. 

E ficaram-me imagens dos apertos de mão a selar um negócio com as pessoas “presas” à sua palavra; o “ponha no livro” na mercearia do meu tio Peixoto, um “empréstimo” informal aos mais carenciados até voltarem a trabalhar sendo certo que “pagar” era a primeira coisa que faziam; o Abílio do Abel a tocar viola rua abaixo com a ganapada aos saltos numa felicidade sã apesar da sua pobreza; a interajuda das pessoas da aldeia nos trabalhos agrícolas, a comunidade no melhor e mais nobre, num espírito comunitário que se perdeu; e as mulheres a cantar, fosse a lavar a roupa na presa ou nos trabalhos agrícolas. E tantas outras que ainda continuam gravadas na minha memória e se calhar, no coração. Por isso, sem saudosismos porque a vida é feita de mudança, devo reconhecer que tive uma infância livre, responsável e, apesar do pouco que havia na época, muito feliz …

Acasos, acidentais ou não, e o sucesso

Há momentos na vida em que algumas circunstâncias acidentais são determinantes para se conseguir alcançar um fim em vista. Nalguns casos, a originalidade dos imprevistos é tal, que deixa os dois lados como que incapazes de levantar obstáculos a um consenso que nem sempre seria fácil. Quando tenho uma reunião onde estarão em causa questões que envolvam interesses de valor considerável, antes olho e analiso o objetivo e a estratégia para o alcançar. Mas, verdade seja dita, há momentos em que acontecimentos excecionais apagam todas as estratégias e nos deixam sem argumentos e entregues na mão do acaso.

O doutor Gabriel (nome fictício), capitão do exército que, por mero acaso, entrara no negócio do marisco congelado, viajava até Espanha no intuito de comprar uma empresa da especialidade que já operava em Portugal e era fornecedor do marisco. Acompanhava-o um tio de quem era muito próximo, também ele um oficial distinto das Forças Armadas que passara à reserva depois da viatura em que seguia nas suas deslocações no Ultramar durante a Guerra Colonial ter ido ao ar com o rebentamento de uma mina e que fez com que perdesse as duas pernas. Depois de uma longa recuperação, passou a usar duas próteses a que acabaria por se adaptar bem, de tal forma que só uma pessoa muito atenta se apercebia que as suas pernas eram artificiais. Durante a viagem os dois foram conversando sobre as dificuldades que previam nas negociações, pelo insucesso dos primeiros contactos que não tinham corrido da melhor forma. Quando chegaram a Vigo e ao armazém onde se encontravam os escritórios da empresa visada, estacionaram o carro no parque em frente, entraram no armazém e tiveram de subir umas escadas que os levavam ao primeiro andar. O tio, de espírito militarista, seguia à frente fardado a rigor. No cimo das escadas e à entrada dos escritórios, esperavam-nos o dono da empresa, a assistente, o responsável financeiro e outro colaborador. No momento em que os dois venciam o último degrau das escadas, o tio do doutor Gabriel tropeçou no degrau com alguma violência e a sua perna direita completa, sapato e meia incluídos, saiu disparada em direção aos anfitriões que, por instinto, se desviaram dela para a deixar passar, enquanto ele gritou para o sobrinho: “Segura-me” e ele segurou-o. “Encosta-me à parede” e ele assim fez. “Traz-me a perna e encaixa-a” e ele, passando no meio dos anfitriões paralisados pelo insólito acontecimento, pegou na perna e foi junto do tio que estava encostado à parede, arregaçou-lhe as calças e encaixou a perna no suporte. “Arranja fita cola” e a assistente atónita foi buscar um rolo de fita cola. “Prende-a com a fita cola” e ele assim fez, dando uso total ao rolo que a mulher lhe dera. Depois, fez descer a perna das calças e o tio pôs-se direito assumindo uma postura militar, pediu desculpa e, cumprimentando todos, entrou no escritório. Em poucos minutos o negócio foi consumado sem que da parte dos espanhóis fosse posta qualquer objeção às condições que os dois apresentaram. Não foram capazes de dizer nada um ao outro depois de saírem dos escritórios e só quando estavam a chegar à fronteira de regresso a Portugal é que pararam o carro, olharam um para o outro, desataram à gargalhada com o tio a perguntar: “Que raio se passou ali”? Muitos anos depois, não sei, nem eles sabem, se a extrema facilidade com que fecharam o negócio se deveu a esse insólito que terá deixado os negociadores de Espanha perplexos e, eventualmente, vulneráveis.   

Noutras ocasiões, a chave para desbloquear situações que, à primeira vista, são insanáveis, depende do expediente ou espontaneidade dos intervenientes e em muitos casos da sua capacidade de improviso. Ainda eu trabalhava numa empresa de produtos químicos para a agricultura quando o meu colega Almeida, com a responsabilidade de supervisão técnica e comercial de uma grande parte do Alentejo para além do apoio aos vendedores da região, foi chamado por um deles, já que estava com dificuldades em lidar com um grande agricultor alentejano. Ao marcar o encontro com o meu colega num restaurante de Évora, o vendedor teve o cuidado de o avisar para ele ser pontual pois o cliente era muito exigente no cumprimento do horário. Apesar do alerta, a verdade é que o Almeida ao deslocar-se de Lisboa para Évora num tempo em que não existia autoestrada, atrasou-se. Ainda não tinha chegado a hora marcada e o vendedor, que conhecia os atrasos crónicos do Almeida, começou a preparar o cliente para a eventualidade dele se atrasar alegando o trânsito, a estrada e o que lhe vinha à cabeça. Passados quinze minutos o lavrador manifestava-se incomodado e ao fim de meia hora de espera chegou a levantar-se da cadeira para ir embora e só o empenho do vendedor fez com que se voltasse a sentar. Até que apareceu o Almeida, a correr, respirando com dificuldade, quase sem conseguir falar. 

Quando o lavrador lhe ia pregar um raspanete, o Almeida disse: “Desculpem, mas eu vim com tanta velocidade que lá em baixo, na curva à entrada da ponte, até trazia uma roda no ar”. Perante esta tirada, o lavrador respondeu-lhe: “Oh homem, não era preciso chegar a andar em três rodas e pôr a sua vida em perigo”. E o Almeida, tirando partido do expediente que usou e tinha preparado, rematou: “Obrigado pela preocupação, mas a roda que eu trazia no ar era a roda suplente”!!! Com esta tirada, o lavrador rebentou a rir e o Almeida ganhou um cliente incondicional …

Tudo muda de nome. Porque não eu?

Está na hora de mudar de nome. O que tenho já é velho, tem décadas e décadas e já não se usa. José, Joaquim, António, Manuel, Fernando e outros que tais, já passaram à história, substituídos por Tiago Afonso, César Augusto, João Miguel ou Paulo Alexandre. Mas se formos para as mulheres, já lá vai o tempo da Maria, Conceição, Alzira ou Isabel. Deixaram de ser escolhidos, dando lugar à Andreia, Diana, Rafaela ou Joana. No entanto, “como na moda só é novo o que está esquecido”, na atualidade recomeçamos a ver muitas crianças batizadas de Maria, Beatriz e Ana, tal como nos rapazes com Francisco, João ou Santiago. Apesar de termos sido batizados com um determinado nome, tendo como apelidos na parte final um dos nomes da mãe e do pai, cedo me apercebi que lá na aldeia eram alterados com aquele jeitinho popular de fazer do José o “Zé da tia Quina”, pôr o António a ser chamado de “Toneca da Igreja”, com o Joaquim a mudar para o “Quim da Zefa da Quinta” e, para não ser muito cansativo, a Alzira a ouvir chamar-lhe de “Zira da Milinha da fruta”. É que na aldeia ninguém era conhecido pelo nome que “botaram” no papel …

Não podemos esquecer que, para além destas alcunhas carinhosas, há ainda as bem menos simpáticas com que somos brindados de vez em quando ao passar na rua, seja no meio de uma discussão ou quando falam de nós em tom pouco lisonjeiro. O Albertino, tal como qualquer um que ande por aí, passa depressa a “Filho da mãe”, “Barrigudo”, “Lingrinhas”, “Burro”, “Atrasado Mental” ou “Cabrão” (interrogo-me sempre se isso quererá dizer “macho da cabra” ou “cabra grande”, estando “excluído por completo” o sentido em que estão a pensar) … 

Até os papeis mudam: à nascença começaram por me arranjar uma “Cédula Pessoal” para a qual tive de ir a Lousada tirar uma fotografia com ar inocente, cédula essa que viria a “passar de moda” para dar lugar ao primeiro cartão de identificação, o “Bilhete de Identidade”, que me obrigou a nova pose fotográfica. Mas, como a vida é feita de mudança, também resolveram “matar” o Bilhete de Identidade anos mais tarde trocando-o pelo “Cartão Único”, com a sigla “CU”. Ora, essa escolha revelou-se desastrosa pelas situações caricatas que iria criar no dia a dia e morreu antes de nascer para evitar casos. Imaginemos que no Banco ou na Repartição de Finanças, muito educadamente nos pediam: “Mostre-me o seu CU”! Com toda a certeza as reações seriam muito diversas: haveria quem se mostrasse ofendido, nalguns casos perplexos, mas alguns, distraídos ou a gosto, acabavam por baixar as calças para mostrar o “dito cujo”. Resultado: para evitar confusões, trocaram o nome ao “CU”, desta vez para CC (Cartão de Cidadão). E cá estamos hoje com o cartão que devia ter um único número capaz de servir para a Identificação, Segurança Social, Contribuinte fiscal e Utente do SNS, razão de ser do CU (Cartão Único), quando afinal tem vários números que só servem para nos atrapalhar e confundir. Mas ainda não devemos ficar por aqui …

À escola onde comecei a dar os meus primeiros passos chamavam de Escola Primária e assim permaneceu por muitos e bons anos. Mas os “reformadores” do ensino público não gostavam do nome e vai daí, há que mudá-lo para Escola Básica (no meu tempo de tropa, básico era o militar que não servia para nenhuma especialidade). E o Liceu, como aquele de Guimarães onde fui fazer alguns exames (para ser mais exato, falhei um com estrondo), desapareceu nominalmente e deu lugar à Escola Preparatória e à Escola Secundária, em mais uma revolução escolar.

Na minha aldeia, como na grande maioria das aldeias deste país, os nomes dos lugares da minha infância foram apagados, substituídos de forma provinciana e sem o mínimo de bom senso por travessas, ruas, largos e avenidas (que na maioria não passam senão de vielas irregulares e “mal-amanhadas”) a que atribuíram nomes pomposos ou de pessoas só porque eram da família de quem decidiu, de quem pediu ou doutra qualquer falta de critério. Estupidamente, perderam-se para sempre nomes que eram referências para as pessoas que ali viviam e viveram só porque se tinham de acabar com os lugares para dar espaço a arruamentos, alegadamente em nome da modernidade e do código postal. Um desmando de quem não soube preservar o que pertencia a todos. E era tão simples …

As “vendas” da minha meninice, misto de tasca e mercearia onde tanto se vendia o petróleo para os candeeiros, os pavios e carboneto para os gasómetros, como o vinho a copo, massa, feijão, arroz (com pedras), broa ou marmelada, dariam lugar às mercearias, depois aos minimercados, sendo quase todos(as) engolidos(as) por modernos e grandes supermercados. 

Inúmeras profissões mudaram a designação sem que tivesse mudado o que quer que seja da função, não sei se por uma questão de estigma ou se por estatuto. O empregado de balcão passou a ser um agente comercial, tal como a telefonista deu lugar à “assistente operacional”. Será que a mudança também trouxe mais dinheiro?

Se fosse registar todos os nomes de instituições, organismos e cargos públicos, de ruas, praças, avenidas, alamedas, pontes, edifícios mais diversos e sei lá bem o que mais, que mudaram de nome de um dia para o outro após o 25 de Abril no enorme “vendaval reformista” que varreu o país de alto a baixo, num “trabalho exigente, profundo e que deu muito que fazer, essencial para o desenvolvimento de Portugal”, precisava de escrever um livro. Só a título de exemplo, a Assembleia Nacional virou da República. A Ponte Salazar de um dia para o outro passou a ser feita pelo 25 de Abril (a título de curiosidade, quando propuseram a Salazar o seu nome para batizar a ponte, rejeitou e propôs “Ponte de Lisboa” pois, dizia ele, “os nomes dos políticos só devem ser dados a monumentos e obras públicas 100 a 200 anos depois da sua morte”’. Só não sei como é que o Cristo-Rei escapou a ser rebatizado …      

Claro que a vida é feita de mudança até porque o ser humano cansa-se demasiado depressa do que tem e até do que é. Para mudar não existem regras nem limites e por isso se mudam os nomes, as faces e as fases. Cá por mim ando a pensar em mudar o meu, mas para falar francamente, ainda não encontrei um que me agradasse mais, apesar de algumas pessoas “com boas intenções”, me irem atirando alguns nomes “mais ousados”, para ver se cola. Estou como o Bocage numa das histórias que lhe é atribuída. Andava ele enrolado num enorme pedaço de tecido para fatos há quase um mês, quando alguém lhe perguntou o porquê. E ele respondeu: “Estou à espera que chegue a última moda para mandar fazer o fato”. E eu espero como ele pela última moda de nomes, que afinal está em constante mudança … 

No futuro, dar no duro só no ginásio…

Estamos no “fim da linha” pois mal se acabem as gerações que ainda trabalham na construção civil e outros trabalhos braçais, como é o caso da agricultura, e só nos vão valer africanos, orientais e, com um pouco de sorte, brasileiros ou até outros sul-americanos. Portugueses de Portugal para trabalhar “no duro”, já não se fabricam. Pior, porque a nossa malta já não está para aí virada. Podem ter só o 12º. ano, mas quando tiverem de ir procurar emprego, querem … um emprego bom e o mesmo é dizer … “limpinho”. Algo onde não tenham de “vergar a mola”, “meter a mão na massa” nem “dar o corpo ao manifesto”. Para quem está “habituado e treinado” a “trabalhar no telemóvel”, chapar massa ou espetar pregos, carregar tijolos ou sacos cimento às costas, está fora de questão. Um “corpinho” daqueles, com “peitorais” bem desenvolvidos no “trabalho de ginásio”, não pode ser desperdiçado em “trabalhos menores”. Seria um desprestígio. Só o imaginar que alguém na rua os poderia chamar de “Oh trolha” é algo horrível, um estigma que os perseguiria toda a vida.   

Há dias dizia-me um empresário da construção civil que já há vários anos não tem um único aprendiz português. Houve uma mãe que lhe apareceu com o filho quase “pelas orelhas” para ver se ele conseguia “fazer alguma coisa do rapaz”, mas “foi sol de pouca dura”. Ao outro dia a mãe levou-o ao “emprego”, mas antes do almoço “já ele se tinha posto ao fresco” e nunca mais o viu. Dizia este empresário: “Hoje a rapaziada é obrigada a estudar até ao 12º. ano mesmo que andem lá só a polir os assentos das cadeiras. Por isso, como é que um moço com 16 ou 18 anos, já cheio de vícios e sem hábitos de trabalho, se agarra a “moço de massa” ou aprendiz do que quer que seja? Daqui a alguns anos vamos querer um bom profissional da construção ainda que seja para fazer uns biscates e ou não vai haver ou vão-se pagar a peso de ouro, melhor até que um grande número de gente licenciada que, nalguns casos, nem sequer sabe para que lhe serve o curso”.

Na agricultura alentejana, especialmente nas estufas do litoral, são os indianos, paquistaneses e outros emigrantes daquelas bandas que cá nos vão safando, por ser a mão de obra mais barata que se consegue encontrar no mercado e que mais se sujeita a ser usada e explorada por traficantes de “seres humanos”, como se tem visto, lido e ouvido na imprensa nos últimos tempos. Mas a maior curiosidade do drama social que todos vimos em noticiários e outros programas televisivos, chocados e revoltados no imediato, mas logo esquecidos e até incomodados como se o assunto não fosse connosco, foi o facto de ter sido a pandemia a pôr a nu o que vai por Odemira e outras terras da região, o que não deixa de ser um paradoxo: uma doença a denunciar outra “doença”. E, pelo que vimos, até parece que ninguém sabia o que por lá se passava. Foi uma “enorme surpresa” para os nossos governantes!!! Andaram a assobiar para o lado durante anos e anos fazendo “vista grossa” às condições miseráveis em que aquela gente vivia, vive e são explorados e abusados, de certo modo coniventes por omissão com a situação, enquanto reclamam do que lá fora se faz aos nossos porque, convém não esquecer, somos e continuamos a ser um país de emigrantes. Deixamos de ter autoridade moral para exigir para os nossos o que recusamos aos outros …

Esta coisa de se não gostar de trabalhos braçais, especialmente dos mais duros, não é um exclusivo dos nossos jovens. Lá fora também há  

quem pense e faça o mesmo. Estive na Costa Rica e cedo me apercebi que os trabalhos mais pesados são todos para os emigrantes idos da Nicarágua, Guatemala e outros países vizinhos. Os habitantes locais recusam terminantemente esse tipo de trabalhos tidos por menores. Já há mais de trinta anos me dizia um francês dono de uma grande empresa de construção que toda a sua mão de obra era estrangeira e só nos quadros superiores tinha alguns franceses, pois os nacionais não se dedicavam a trabalhos braçais. E mais: avisou-me num tom de adivinho que estivéssemos a contar que o mesmo iria acontecer em Portugal desde que o nosso nível económico melhorasse e os jovens tivessem mais acesso ao ensino. E não é que o homem até parece ser bruxo?!!!     

A falta de mão de obra qualificada na construção civil, para não falar noutros setores de atividade, já era um problema sério antes da crise de 2008 e agravou-se com a saída de grande número de profissionais. Já tivemos levas de ucranianos e outros cidadãos de leste, que quase sempre tinham formação noutras áreas que não na construção civil, causando sérios problemas como se compreende. Vieram brasileiros em grande número, mas os mais consistentes têm sido os africanos oriundos de diversos países, que foram encobrindo a falta de mão de obra nacional, mesmo assim insuficientes para tanta necessidade. Daí estarmos numa encruzilhada: sem níveis salariais capazes de trazer de regresso a Portugal os nossos concidadãos que andam lá por fora, não sei bem o que nos resta, a não ser uma crise grave no setor. Trazer para o setor indianos, paquistaneses e outros orientais não me parece grande ideia por duas razões que são mais que evidentes: não têm um mínimo de formação e, por outro lado, seria aumentar o número de explorados aos que já existem na agricultura alentejana, nomeadamente na produção de azeite e frutos vermelhos, presas fáceis para traficantes de seres humanos como os acontecimentos provocados pela pandemia vieram expôr à luz do dia.  

Resta-nos a esperança de que a tecnologia venha a encontrar formas de “fabricar” todo o tipo de construções com robôs que, isso sim, não se importem de “sujar as mãos”, e todo o tipo de automatismos como é o caso das impressoras 3D, que têm sido ensaiadas em trabalhos de construção civil. Entretanto, como já tenho “barraca” própria para me acoitar com a família, esta só precisa de pequenas obras e pinturas de conservação, biscates para os quais se não conseguir ninguém que os faça, seja homem ou robô, cá me vou ter de desenrascar ainda que tal esforço a seguir me traga uma crise de dor de costas. Mas para essas tenho eu uma boa desculpa: são os chamados “ossos do ofício” …

“Estórias” dum pedaço de caminho…

Ao olhar a fotografia que me caiu nas mãos quando andava a remexer na muita papelada que ainda tenho e de que me quero livrar o mais depressa possível, não posso deixar de sentir uma certa nostalgia e a sensação de ser um privilegiado porque, daquele grupo de pessoas que ali aparecem sorridentes e que de uma ou outra forma estiveram ligadas ao Clube Automóvel de Lousada e aos muitos eventos que em seu nome realizamos, só eu e o José Pinto estamos vivos. Porque os outros, Jaime Moura, Bernardo Lousada, Lúcia Lousada, Paulo Sérgio e Soares Gomes, não são mais do que uma recordação e uma imensa saudade nas muitas “batalhas” em que estivemos juntos e fomos bem sucedidos, mas sobretudo da sua amizade. Ao rever aquela imagem e o fim de festa que julgo ter sido o jantar de confraternização com os participantes num Europeu de Autocross, para além de uma ou outra lágrima mais traiçoeira, vieram-me à memória pequenas “estórias” e curiosidades desses meus 23 anos feitos de corridas, das motas aos automóveis, da ACML ao CAL, algumas delas que ficaram pequenas lições de vida e retratos do povo que somos. O que começou por ser um meio para conseguir receitas para a ACML, depressa virou paixão e adrenalina pelo “circo” motorizado, até se esgotar o entusiasmo. 

Na primeira prova de motocross tudo era improvisado: a direção de prova e cronometragem estavam em cima da camioneta, a vedação era em esteira, os comissários estavam nas bordas da pista, tal como o público. As bilheteiras eram dois furgões da Lousafil e os bilhetes vendidos pelas janelas. No final do dia, com a corrida terminada e as tralhas arrumadas, levei as duas dúzias de colaboradores que haviam ficado até ao fim a jantar na pensão Avenida. Estávamos cansados, mas felizes pelo sucesso organizativo e de bilheteira, quando entrou o Adriano Rafael, da Lousafil. Trazia na mão um saco de plástico e veio direto a mim: “No fim, levei as carrinhas para a fábrica e quando as fui limpar e lavar encontrei espalhado no interior este dinheiro” e entregou-me o saco, num gesto raro que nunca esqueci. Na avalanche dos três a quatro mil espectadores os “bilheteiros” atiravam com as notas para uma caixa, mas muitas voaram e ficaram nos furgões.

Numa das primeiras provas de autocross nacional, para preparar a pista contratamos os serviços de uma motoniveladora à empresa de Lousada Irmãos Magalhães, de Lodares. Depois dos treinos na tarde de sábado a máquina entrou em pista para os arranjos do costume e eu vim para casa pois o domingo seria longo. Logo de manhã quando entrei no circuito vi a motoniveladora parada na reta da meta mesmo na partida. Não pensei nisso até ao momento em que pedi para a retirarem porque se aproximava a hora de começar. E o manobrador da máquina? Não estava nem ninguém sabia quem era. Aguardamos um pouco à espera que aparecesse, mas em vão e o tempo urgia. Enquanto o Jaime Moura tentava entrar na máquina fechada à chave, meti-me no carro e fui a Lodares, ao armazém e sede da empresa, mas estava fechado. Perguntei aos vizinhos que encontrei e nada sabiam até que um me disse quem era o encarregado e onde morava. Estava em casa, mas o choque veio a seguir: o manobrador tinha as chaves e morava em Fonte Arcada, para lá de Penafiel, mas não sabia onde. Para não perder tempo, fiz-me à estrada, pois a hora da partida aproximava-se depressa. Em Fonte Arcada andei às cegas de porta em porta até que alguém me soube dizer onde morava o rapaz. Apareceu-me a mãe: o João saíra, fora para um casamento. E lá fui ao casamento procurar o João, conseguindo finalmente encontrá-lo e levá-lo a entregar-me a chave porque só contava regressar à pista no final do dia. Cheguei ao circuito à justa e dei com o Jaime e o Rodrigo Ribeiro a acabar de desmontar a porta da máquina …

Uma das muitas funções que tinha durante os primeiros anos era a montagem da vigilância ao redor do circuito e controle de entradas, organizando elementos da GNR e da empresa de segurança para que as “borlas” fossem o menos possível. Mas era uma luta difícil pois até tinha de vigiar quem tinha essa função. Um dia descobri um vigilante sentado na bancada a ver a corrida, muito tranquilo, em vez de estar no seu posto e, logo a seguir, um membro da autoridade a dar a mão a três borlistas para os ajudar a subir a borda e entrar. E que fazer quanto o vigilante da entrada que controla os bilhetes dá sinal a um pequeno grupo e, um a um, espaçadamente, vão até ele, fingem que mostram o bilhete, ele finge que o rasga e deixa-o entrar? Ou quando apareciam pessoas com todo o tipo de cartões alegando ser oficiais de justiça, licenciados federativos, polícias, etc.? Atém um elemento da judiciária entrou alegando estar a perseguir um criminoso que, alegadamente, estaria entre a multidão …

Numa das minhas voltas de controle ao sistema, apanhei o “penetra” precisamente no momento em que ele chegou dentro. Estava um autêntico Cristo, a sangrar na cara, braços e mãos. Atravessara um silvado fechado por onde nunca pensei que alguém fosse capaz de passar. Pelo sacrifício e saber que não tinha como pagar bilhete, ficou a ver a prova. Mas a mais interessante “entrada” foi-me contada por um amigo. Alguns dias depois dum Ralicrosse Europeu ele disse-me que tinha ido ver a prova, gostara muito e nem sequer pagara.  Quis saber como o conseguiu e lá contou a história. Um amigo de Braga passou em casa dele e perguntou-lhe se queria ir à corrida. Disse que sim, convencido que ele comprara bilhetes. No carro adaptado por causa da deficiência o amigo deu-lhe boleia, dirigindo-se à entrada principal. Quando os seguranças de serviço se iam a dirigir ao carro, levantou a cabeça num gesto autoritário como quem diz “abram a porta” e, sem mais, deixaram-nos passar e entrar para um parque destinado à organização. A esta distância pergunto-me se o amigo do meu amigo não teria um amigo na porta de entrada!

Numa prova nacional de autocross um piloto de Paços de Ferreira despistou-se numa curva e contracurva, capotou e deu três ou quatro cambalhotas. Corremos para o local, vimos que ele estava bem e um dos comissários perguntou-lhe se custava muito dar uma cambalhota assim. E ele, com ar divertido, disse: “Só custa nas primeiras 500” …

Numa das primeiras vezes que o Rali de Portugal veio a Lousada o Jaime fez questão de convidar todos os presidentes e vereadores do Vale do Sousa para assistirem à prova numa bancada junto à torre. Correu tudo bem até que me chamaram porque o vereador de uma câmara qualquer queria falar com um responsável do CAL. Quando cheguei o vereador, de forma grosseira, reclamou porque aquilo não eram condições para receber autarcas, pois devia fazer isto, aquilo e aqueloutro, num rol de requisitos absurdos que eu ouvi, paciente e tranquilamente. Quando acabou, só lhe disse: “Que eu saiba, o senhor aqui é convidado e não pagou bilhete. Saiba que estamos a oferecer-lhe o que temos e o melhor que conseguimos fazer, a troco de nada. Devia agradecer. E não aceitamos conselhos de quem saiba mais, mas de quem tenha feito melhor”. E virei as costas àquele tipo arrogante e mal agradecido.        

Olhando para trás e a muitos anos de distância dessa viagem incrível que fiz pelo mundo dos desportos motorizados, sem nunca ter sequer experimentado as emoções de um guiador ou volante, sem valorizar a arrogância, sobranceria, oportunismo e chico-espertice que encontrei pelo caminho, relembro e agradeço a Deus sobretudo o que recebi, e foi muito, por ter partilhado essa viagem com pessoas excecionais de diversos quadrantes sociais, todas elas importantes para o sucesso do desporto motorizado em Lousada, mesmo que o seu nome nunca apareça nos relatos nem nos registos dessas histórias. E pelas muitas lições de vida desde a solidariedade, resiliência, humildade, partilha, entusiasmo, alegria, capacidade de sofrimento e espírito de sacrifício. Mas, muito especialmente, pelas amizades que ficaram para o resto do caminho …

A despedida de um amigo …

Não gostamos de falar da morte e até achamos que o simples facto de a mencionar pode atrai-la. Daí ser assunto que não é tema para uma conversa simples e toda a gente foge dele “como o diabo da cruz”. É sabido por nós que nascemos, vivemos e morremos e não há como fugir à morte. Todos temos um “prazo de validade”, que só não vem impresso na testa ou noutra parte mais discreta do corpo como nos produtos do supermercado porque os políticos andam distraídos. No dia em que algum achar que isso pode dar votos, irá propor aos seus correligionários uma lei que obrigue o “fabricante” a gravar o prazo numa qualquer parte do corpo à “saída da fábrica”, indicando a data a partir da qual “estamos impróprios para consumo”, que é com quem diz, “para deitar fora”.  

Vendo bem, ainda não andamos com rótulo nenhum à vista a indicar o nosso “prazo de validade”, mas temos de andar permanentemente com um cartão onde, indiretamente, esse prazo está explícito. Assim, quando o agora “cartão de cidadão” indica a data de nascimento, é o mesmo que dizer há quantos anos fomos “fabricados”. E o consenso é geral: “estamos impróprios para consumo” a partir de certa idade, a idade da reforma, que tem vindo a aumentar só por conveniência do orçamento de estado, já que não há como “alimentar tantos inúteis”. A partir daí somos tratados como qualquer produto descartável do tipo “use e deite fora”. Mas, como nos produtos do supermercado em que ainda há quem os consuma muito para além do prazo de validade que vem escrito no pacote sem receio de apanhar uma intoxicação, também com nas “pessoas fora de prazo” se verifica essa tolerância, o que me permite continuar a andar por aí e ser “consumido” por quem não tem medo de “morrer intoxicado”, numa última oportunidade. Claro que também nos tornamos mais baratos, tal e qual os produtos que estão em fim de prazo e que os supermercados vendem a metade do preço ou menos, para ver se recuperam algum, caso contrário vai tudo para o lixo a rendimento zero, como com todos nós.

No período do Renascimento era vulgar as pessoas deixarem crânios sobre a mesa sem qualquer problema. Não passavam disso mesmo, mas tinham uma mensagem implícita: “lembra-te que vais morrer”. O objetivo desse lembrete era para se encarar sem receio a existência da morte e a certeza de que não somos eternos, passando a dar mais valor a cada dia e conseguir aproveitar plenamente a vida. Ora, meia dúzia de séculos depois temos muito mais medo dela. E a prova disso é que antigamente morria-se em casa e em casa se fazia ainda velório e funeral. Mas pouco a pouco fomos afastando tudo isso, escondendo, ao ponto de hoje se morrer nos hospitais para além de ter empurrado tanto o velório como o funeral para fora de casa, dando toda a razão a Woody Allen quando diz: “Eu não tenho medo da morte. Só não quero estar lá quando ela acontecer”.

Tudo isto para dizer que recebi uma chamada telefónica de um amigo que há muitos anos emigrou para França, “a salto”, e onde fez toda a sua vida de adulto até se reformar. Ali constituiu família e viu nascer dois filhos, tendo nos últimos anos vivido numa roda viva entre Paris e Lousada. Estranhei a voz muito arrastada e sofrida que revelava um grande esforço para falar. Começou por perguntar pela minha saúde e da família e depois disse: “Estou a telefonar-lhe para me despedir de si. O meu tempo está a chegar ao fim e restam-me poucos dias de vida”. Surpreendido pela chamada telefónica, mas especialmente pela razão que acabava de me revelar, perguntei-lhe o que se estava a passar. E ele, a muito custo, foi dizendo: “Apareceu-me um cancro nos pulmões e tenho andado a fazer tratamento aqui em França. Agora descobriram outro nos intestinos e já não há nada a fazer. É o fim e os médicos já nem me deixam sair aqui do hospital. É por isso que me venho despedir de si e agradecer-lhe por ter sido um bom amigo com quem pude contar sempre”. Enquanto ele falava, permaneci calado, estupidamente calado perguntando-me o que se podia dizer a alguém nestas circunstâncias? Mentir-lhe piedosamente, tentando fazer crer que havia esperança quando os médicos já o haviam desenganado? Naquele momento o que melhor me pareceu fazer foi ouvi-lo, estando ele totalmente consciente de que a morte se aproximava a passos largos e que lhe restava pouco tempo para fazer o que desejava: despedir-se de algumas pessoas. Falou tranquilamente embora com muita dificuldade sobre como a doença ficou fora de controle e de estar muito próximo o seu fim. Consegui retribuir o agradecimento e dizer-lhe que a nossa amizade continuava para lá do que viesse a acontecer hoje, amanhã ou na semana que vem. A nossa despedida, apoiada na fé de ambos, foi a promessa dum reencontro numa outra dimensão, numa outra vida.

A caminho de Lisboa, a chamada telefónica acompanhou-me sempre durante toda a viagem, como um recado a lembrar-me que podemos receber “guia de marcha” a qualquer instante, sem pré-aviso, apesar da sociedade manipular tudo para nos fazer crer na eterna juventude, escondendo a existência da morte como algo que faz parte da vida. E pensei no meu amigo e na sua coragem ao pegar no telefone e ligar-me com três objetivos claros: Dizer que iria morrer (sem citar esta palavra) dentro de poucos dias, despedir-se com um “até breve” e agradecer-me por ser seu amigo. Confesso que não sei como reagiria no seu lugar e se seria capaz desta chamada telefónica, embora diga frequentemente que não tenho medo da morte nem sequer de falar dela, mas sim do sofrimento, especialmente do sofrimento inútil que não tem esperança. 

E estou com o filósofo brasileiro Mário Costella quando diz que “não temos que ter medo da morte, mas sim de uma vida inútil” …      

A “Lei dos Azarados” e a vida …

Existe um adágio da cultura ocidental, normalmente citado como “qualquer coisa que possa correr mal, correrá mal e no momento pior possível”, conhecido por Lei de Murphy. Sendo conhecidos alguns relatos antigos sobre esta “Lei”, a expressão só viria a ganhar esse nome em 1949 a partir do resultado num teste de tolerância à gravidade por seres humanos, feito pelo engenheiro aeroespacial Edward A. Murphy. Ao ensaiar o equipamento que registava os batimentos cardíacos e a respiração dos pilotos, aconteceu uma anomalia pelo facto de ter sido montado de forma errada. Nessa altura, Edward pronunciou o seguinte: “Se alguma coisa pode dar errado, dará”. A frase viria a ser repetida vezes sem conta, acabando pelo nome de Murphy ser usado para o batismo dessa regra da nossa vida, que hoje é conhecida em todo o mundo por Lei de Murphy, também tida por Lei dos Azarados.                                               As frases, quase sempre com uma boa dose de humor, não são mais do que a constatação de que qualquer coisa que tenha de correr mal … vai correr. E temos de viver com isso. Ao longo do tempo as “Leis” foram aumentando em número e variedade, num contributo de muitos para um resultado que nunca é final, já que a lista está sempre aberta a novos conceitos e visões da vida.                               A primeira da lista é mesmo a expressão de Murphy, “se alguma coisa pode dar errado, dará”, hoje acrescentada de: “E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”. E todos nós já nos confrontamos com uma ou outra situação em que tal aconteceu, a provar que tinha razão. Para dizer coisas sérias a brincar com os “atalhos” e confirmar o ditado “quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos”, nasceu a expressão que “um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos”. Na mesma linha, são interessantes “nada é tão fácil quanto parece, nem tão difícil quanto a explicação do manual” e ainda “tudo leva mais tempo do que todo o tempo que você tem disponível”. Tal como “quando um trabalho é mal feito, qualquer tentativa de melhorá-lo piora” ou “os acontecimentos infelizes acontecem sempre em série”, enquanto “todas as vezes que se menciona alguma coisa, se é bom, acaba, se é ruim, acontece”. Nós revemo-nos em praticamente todas as expressões da Lei de Murphy porque não são mais do que registos precisos, preciosos, com bom humor, de situações comuns a todos.                              O que dizer desta: “Se tens alguma coisa há muito tempo de que não precisas, podes deitá-la fora. Se a deitares fora, vais precisar logo dela”. Isto já me aconteceu algumas vezes e acabei por ter de comprar coisas que tinha há muito tempo, mas que tinha dado ou atirado ao lixo pouco antes de fazer falta. Acaso? Lembro mais: “O modo mais rápido de encontrar uma coisa é procurar outra. Vocêencontra sempre aquilo de que não está procura”. Em relação ao telefone, há uma Lei que diz: “Quando te ligam, se tens caneta não tens papel; se tiveres papel, não tens caneta; se tiveres ambos, ninguém liga; quando ligares para um número de telefone errado, nunca estará ocupado; todo o corpo mergulhado numa banheira faz tocar o telefone”. Não passamos já por isso? É como a expressão que revela o conhecimento pela experiência: “Só sabe a profundidade da poça quem cai nela”. 
Vi uma notícia na televisão sobre um homem que andou algumas dezenas de quilómetros na autoestrada em contramão e lembrei-me daquela: “Se consegues manter a cabeça fria enquanto à tua volta todos a estão perdendo, provavelmente tu não entendes a gravidade da situação”. Já para quem quer tirar um curso ou afins:
“Se o curso que mais desejavas fazer só tem “25” vagas, podes ter certeza de que serás o aluno “26” a tentar matricular-se. E no exame final, 80% será baseado na única aula que tu perdeste e baseado no único livro que não leste. E a citação mais valiosa da tua redação será aquela de que não consegues lembrar o nome do autor”. 
Já agora, quando for às compras, lembre-se desta Lei: “Se estiver escrito “tamanho único” é porque não serve a ninguém”. E tenha atenção às quedas, sejam elas quais forem, respeitando o que a elas diz respeito: “Qualquer esforço para agarrar um objeto em queda provocará mais destruição do que se deixássemos o objeto cair naturalmente. Tal como a probabilidade dum pão cair com o lado da manteiga virado para baixo é proporcional ao valor da carpete”. E sobre as filas: “A fila do lado anda sempre mais rápida e não adianta mudar de fila, pois a outra é sempre mais rápida”. Já lhe aconteceu isso nas filas do supermercado ou noutra fila qualquer? A mim já, muitas vezes, deixando-me a resmungar comigo mesmo por não acertar na fila certa. Às vezes até tenho mudado e o resultado chega a ser pior.
Já se deu conta de que “tudo que é bom na vida é ilegal, imoral ou engorda”. Há quem acrescente: “Ou engravida”. É como a atração das partículas: “Toda a partícula que voa sempre encontra um olho aberto”.                                                                                 Na vida pensamos que tudo vai dar sempre certo, mas não dá. E temos de estar preparados e disponíveis para encarar isso como uma probabilidade, por muito que nos custe. As expressões a que alguém resolveu chamar Lei de Murphy, são provocações sérias às nossas certezas, em tom de brincadeira, mas que vale a pena ter em conta para não sermos surpreendidos quando as coisas correm mal. Até porque, como diz uma das Leis, “a Natureza está sempre a favor da falha” ou “tudo o que começa bem acaba mal e tudo o que começa mal, termina pior”, até porque “nada é tão ruim que não possa piorar”.  As “conversas sérias que são necessárias, só acontecem quando estamos com pressa”, é uma das máximas deste conceito.                                                                                    Ora, e apesar de eu estar com pressa de acabar esta crónica porque o diretor do jornal já me fez um “ultimato”, não quis fazer desta uma conversa séria, se bem que algumas coisas são sérias, mas ditas a brincar. E por isso o lembro antes de terminar que, “o único filho que ronca é aquele que quer dormir consigo” e ainda, “nenhuma bola acerta no vaso que você detesta”. É que a realidade nem sempre está de acordo com os nossos desejos … 

Heróis à força, mas … Heróis

Ninguém quer estar doente, muito menos receber a notícia de que tem uma doença grave pois nunca imaginou que um dia lhe bateria à porta. Mas pode chegar a qualquer momento e quando menos se espera já que não somos diferentes dos outros. Na roleta da vida as doenças vão sendo distribuídas por toda a gente, sem exceção, numa lotaria em que o “prémio”, grande ou pequeno, pode tocar a qualquer um e não há como dizer “não quero”. É de aceitação obrigatória.

Rosalinda (nome fictício) ainda estava distante dos sessenta anos quando começou a sentir algumas dores na mama até notar um pequeno nódulo com os dedos. Conhecendo o historial de algumas vizinhas, começou a supor o pior e falou disso ao marido. Ao outro dia foram ao médico, que a mandou fazer uma mamografia. Estava sozinha no hospital quando recebeu o resultado e viu confirmada a sua suposição de que tinha cancro da mama. Apesar das suspeitas, foi “como se o mundo lhe caísse aos pés”, confessa. “Chorei como já não o fazia há muito tempo. De tal forma que, quando liguei à minha nora que estava ali perto, não consegui sequer dizer-lhe o que era. Mas ela entendeu e apareceu para me apoiar. A partir daí percebi que não valia a pena chorar. Aquilo era para mim e tinha de o enfrentar sem receio, mas com esperança, tendo a Nossa Senhora de Fátima como minha protetora. Fui tratada no IPO onde fiz cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Aceitei com resignação todo o tipo de tratamentos que os médicos e enfermeiros me aconselharam, seguindo à risca os seus conselhos, pois eles é que sabem qual a melhor maneira de cuidar de nós. Avisaram-me sempre previamente do que iria acontecer a seguir e quais as consequências. Quando me disseram que o meu cabelo iria cair e me aconselharam a cortá-lo curto para que o choque não fosse tão grande, eu assim fiz, se bem que nunca quis usar peruca porque não senti vergonha de mim por não ter cabelo. O choque sempre foi para as outras pessoas. Hoje dou graças a Deus por poder fazer a minha vida normal e estar de volta”. 

Há algo que Rosalinda valorizou muito durante o combate à doença: o extraordinário apoio da família e amigos, um pilar fundamental da sua recuperação. E a sua Fé e devoção a Nossa Senhora de Fátima, que lhe deu forças e esperança de vencer o cancro, essa doença cujo nome só por si, é um monstro que causa muito medo. 

Já Mariana não teve a mesma sorte. Também diagnosticada com um cancro da mama teve de retirar uma completamente, para além de se sujeitar a tratamentos de quimioterapia e radioterapia. Depois do choque inicial que a fez chorar muito, acabou por aceitar e encarar os tratamentos como o caminho certo para ultrapassar esse momento difícil. Mas, apesar da doença ser um fardo seu, houve quem não se tenha aguentado e aproveitou a sua fragilidade para a abandonar no momento em que ela mais precisava de solidariedade e apoio: o seu marido pediu o divórcio deixando-a só, com um filho de tenra idade. Valeu-lhe o apoio incondicional de algumas amigas e ainda de outras doentes do IPO a quem se dedicou de alma e coração, ajudando-as a levantar o ânimo de que tanto precisava também.                                                              O diagnóstico do cancro é quase sempre o momento mais crítico da doença. Perde-se o chão, o mundo desaba e parece que é o fim, pois trata-se de uma doença com uma carga negativa muito forte e que carrega um estigma, embora hoje já não corresponda à realidade.  Nos primórdios do século XX a sociedade via o cancro como uma condenação à morte, o que ainda faz com que muitas pessoas não acreditem que um tratamento adequado pode levar à cura. A falta de informação e a crença de que não tem cura acabam por gerar o medo e esse medo muitas vezes faz com que a pessoa não queira saber se tem algum tumor maligno, adiando o diagnóstico e a possibilidade de um tratamento eficaz.

Com 27 anos Liliana nem queria acreditar no que o médico lhe dizia: “Tem cancro”! Ficou apática até entrar num choro convulsivo. Pensou que ia morrer, porque sempre ouvira muita coisa má sobre a doença. “Será que vou morrer? Será que vou ficar sem seios? Irei aguentar o tratamento”? Apesar de se considerar uma pessoa forte, percebeu que não era assim tão forte quando quis desistir do tratamento logo na segunda sessão de quimioterapia. Mas, com a ajuda da mãe e dos amigos não desistiu. Acabou por descobrir no tratamento um meio para atingir o fim e o medo e a incerteza iniciais foram diminuindo com o tempo. A cirurgia da mama foi uma etapa vencida, tal como a quimioterapia, apesar dos enjoos, náuseas e outras reações. Mas foi a queda do cabelo que mais lhe custou, apesar de estar de sobreaviso. Chegou a cortá-lo tipo Chanel, mas não adiantou. Quando começou a cair em tufos, ficou chocada e acabou por aceitar rapá-lo, mas achou horrível. Inicialmente nem se queria ver ao espelho, mas depois foi-se acostumando até festejar o nascimento de qualquer cabelo. Como também se foram as sobrancelhas, pestanas e todos os pelos do corpo o que viu como uma vantagem: “Já não precisava de gastar dinheiro a depilar-se”. E, com o tempo, passou a olhar o lado bom das coisas, em especial o sentimento de gratidão. Gratidão a Deus que, diz, sempre esteve na sua vida, embora ela andasse tão desatenta da sua fé. Mas Ele nunca a abandonou. Gratidão por ter a mãe por perto, sempre a cuidar dela. Gratidão pelos amigos maravilhosos que estiveram bem presentes o tempo todo, apoiando e incentivando. Gratidão por ter um namorado compreensivo, paciente e companheiro. Gratidão por ter perdido o cabelo e não a cabeça. Gratidão ao passar a ver a vida de forma diferente, com mais amor e paciência.  

Apesar dos grandes avanços conseguidos na luta contra o cancro, não temos dúvidas que continua a ser uma doença assustadora que deixa em pânico os mais informados. E de tal forma o é, que muitas pessoas ainda hoje se recusam a pronunciar a palavra “cancro”, substituindo-a por “mal ruim”, como se ao dizê-lo o possam atrair. Fazer frente à doença depois do choque terrível a que ninguém escapa ao ouvir o diagnóstico como se fosse uma sentença, é um ato heroico, o desafio de uma vida que merece ser relevado e digno de louvor.

As mulheres que aqui trouxe, todas elas com cancro da mama, fazem parte de um número imenso de pessoas que fez da sua vida uma luta constante e persistente no combate à doença, caindo e levantando-se de seguida, sofrendo, mas fazendo das tripas coração, percorrendo um caminho de derrotas e vitórias, tantas vezes a lutar ao mesmo tempo contra outras adversidades da vida pessoal num combate de várias frentes que se torna violento e difícil, num manancial infinito de histórias comoventes e heroicas. Trazê-las aqui é render homenagem a gente que nós conhecemos, mas a quem tantas vezes não soubemos ou não conseguimos levar conforto e força de ânimo por múltiplas razões, a começar pelo nosso egoísmo e falta de solidariedade. E percebemos melhor que nunca a importância dessa solidariedade quando somos nós a apanhar o choque de um diagnóstico que, apesar dos avanços da medicina, continua a ser terrivelmente assustador …     

Somos mesmo um animal de hábitos…

Cá em casa sou eu que preparo o meu pequeno almoço. O ritual e os passos são sempre os mesmos: ainda em jejum, bebo um copo de água (no inverno aqueço-a ligeiramente no micro-ondas durante 35 segundos. Sempre). Depois, coloco na mesa da cozinha um tabuleiro com uma colher de sopa e uma tigela (a minha). Encho-a até um dedo abaixo do bordo com bebida de soja (vulgarmente conhecida como leite de soja), um quarto de litro mais coisa menos coisa. Levo-a ao micro-ondas durante 1 minuto e 30 segundos e, enquanto aquece, vou à sala retirar um medicamento e dois do armário na cozinha bem como o pacote de flocos de cereais. E é quando toca a campainha do micro-ondas a avisar que está quente. Com duas pegas retiro a tigela que volto a colocar no tabuleiro e tiro da lata de bolachas uma para a cliente do costume: a minha cadela Becas. Sento-me, mexo a bebida e, à medida que vou colocando flocos vou comendo, porque gosto de os sentir a estalar na boca. A cada quatro colheradas a Becas tem direito a um bocado da bolacha Maria. Faço coincidir o final do meu pequeno almoço com o último bocado de bolacha e arrumo tudo pela mesma ordem. Todos os dias cumpro este ritual, sem alterações de monta, como se o momento fosse reproduzido por uma cassete gravada. A mesma cena repetida ao longo dos dias, semanas, meses e anos. 

Esta é uma cena diária, repetitiva, um hábito que não sofre qualquer alteração. Mas há muitos mais. Desde que acordo, a forma como o faço, como me levanto, o roupão, o telemóvel, a casa de banho, o cortar a barba, o banho e tantos outros ritos que se repetem dia após dia, ano após ano, sendo cada gesto, ato ou tique algo muito pessoal, mas sempre igual. Porquê? Porque sou um animal de hábitos.

Ao longo da vida, especialmente quando adultos, adquirimos hábitos. Uns podem ser bons e outros ruins. Alguns ajudam-nos a progredir e seguir em frente, enquanto outros não passam de um travão. Daí que a qualidade da nossa vida é o reflexo dos nossos hábitos, bons, ruins ou nem uma coisa nem outra. Aliás, há hábitos tidos como maus, mas que podem ser geradores de algo bom. Se um jovem tem o costume de usar e abusar da internet e dos jogos eletrónicos, isso pode dar-lhe capacidades que, bem orientadas e aproveitadas, podem vir a ser uma mais valia.

Se analisarmos ao pormenor cada dia da nossa vida, veremos que a maioria deles é quase uma cópia dos anteriores, como que tirada a papel químico. Nenhum de nós é igual ao outro nos seus hábitos, na sua maneira de ser. Cada um tem a sua forma de executar uma ação com frequência e regularidade até a tornar um hábito.

Para quem trabalha numa indústria em que os procedimentos fabris estão bem estandardizados, como é a de confeções, os gestos, os procedimentos, os movimentos de braços e pernas não passam de cópias ritmadas em cadências muito semelhantes ao longo da vida profissional. Se olharmos bem, até o levantar da cabeça, o ajeitar a peça com o braço, acionar o marcador das peças fabricadas, o respirar fundo, coçar o pescoço ou outra parte do corpo, são gestos automáticos, instintivos, fotocópias umas das outras ao longo de dias, semanas, meses, anos, vidas. Tudo é uma eterna repetição, como quando em criança cometia um erro no ditado ou cópia e a professora, por castigo, me obrigava a escrever a mesma palavra cinquenta vezes seguidas para não voltar a cometê-lo. E, na fábrica, essa repetição faz-se indefinidamente, vezes sem conta, como numa aprendizagem sem fim à vista …

Como procedemos quando vamos tomar banho pala manhã? Será que variamos a sequência dos passos a seguir ou cumprimos à risca uma “cartilha” sem um mínimo de variação? Eu dispo-me, coloco a roupa no mesmo lugar, entro no chuveiro, corro a cortina, abro a água e espero até ficar temperada, molho o corpo na mesma sequência do dia anterior (e dos outros), fecho a água, ensaboo-me, volto a abrir a água, enxaguo e retiro a espuma seguindo sempre o mesmo ritual, fecho a misturadora, limpo-me com a toalha a partir da cabeça, para terminar nos pés. E passo à fase do vestir. Todos os momentos são os mesmos do dia anterior e dos outros, como se já não soubesse tomar banho doutra forma. Como se fosse um robô programado e em piloto automático. 

Tenho um amigo que tem horror aos hábitos e às rotinas. Quando vai a qualquer lado, a pé ou de automóvel, faz questão de voltar por um caminho alternativo. Acha ele que toda a repetição é monocórdica, entediante. Por isso, varia em tudo o que pode, desde o restaurante à comida, do que faz à música que ouve. Já lhe perguntei porque é que ainda está casado com a mesma mulher há quase quarenta anos, mas não me respondeu, nem eu quis saber se “quebra” essa rotina e com que frequência o faz …

É natural que cada um de nós tenha os seus hábitos, bons e maus, que definem muito quem somos e como somos. É verdade que podemos, e em muitos casos devemos trabalhar alguns deles, no mínimo para ter melhor qualidade de vida. Cá por mim preciso de “dar um jeito” a todos aqueles hábitos a que chamamos “males da vida moderna”, tais como alimentação não saudável, horários de sono desorganizados, vida sedentária, falta de descanso, excesso de trabalho e outros tidos como normais na nossa sociedade, mas que, mais dia menos dia, nos vão cobrar o seu preço.  

Diz-se que somos um animal de hábitos. E, se olharmos bem para os nossos comportamentos e atitudes, temos de reconhecer que é bem verdade. A questão verdadeiramente importante é saber se somos capazes de manter os bons hábitos, os que funcionam a favor de uma saúde física e mental equilibrada, ao mesmo tempo que reduzimos o peso dos outros que não ajudam, naquilo que faz da vida “uma eterna repetição” …