A despedida de um amigo …

Não gostamos de falar da morte e até achamos que o simples facto de a mencionar pode atrai-la. Daí ser assunto que não é tema para uma conversa simples e toda a gente foge dele “como o diabo da cruz”. É sabido por nós que nascemos, vivemos e morremos e não há como fugir à morte. Todos temos um “prazo de validade”, que só não vem impresso na testa ou noutra parte mais discreta do corpo como nos produtos do supermercado porque os políticos andam distraídos. No dia em que algum achar que isso pode dar votos, irá propor aos seus correligionários uma lei que obrigue o “fabricante” a gravar o prazo numa qualquer parte do corpo à “saída da fábrica”, indicando a data a partir da qual “estamos impróprios para consumo”, que é com quem diz, “para deitar fora”.  

Vendo bem, ainda não andamos com rótulo nenhum à vista a indicar o nosso “prazo de validade”, mas temos de andar permanentemente com um cartão onde, indiretamente, esse prazo está explícito. Assim, quando o agora “cartão de cidadão” indica a data de nascimento, é o mesmo que dizer há quantos anos fomos “fabricados”. E o consenso é geral: “estamos impróprios para consumo” a partir de certa idade, a idade da reforma, que tem vindo a aumentar só por conveniência do orçamento de estado, já que não há como “alimentar tantos inúteis”. A partir daí somos tratados como qualquer produto descartável do tipo “use e deite fora”. Mas, como nos produtos do supermercado em que ainda há quem os consuma muito para além do prazo de validade que vem escrito no pacote sem receio de apanhar uma intoxicação, também com nas “pessoas fora de prazo” se verifica essa tolerância, o que me permite continuar a andar por aí e ser “consumido” por quem não tem medo de “morrer intoxicado”, numa última oportunidade. Claro que também nos tornamos mais baratos, tal e qual os produtos que estão em fim de prazo e que os supermercados vendem a metade do preço ou menos, para ver se recuperam algum, caso contrário vai tudo para o lixo a rendimento zero, como com todos nós.

No período do Renascimento era vulgar as pessoas deixarem crânios sobre a mesa sem qualquer problema. Não passavam disso mesmo, mas tinham uma mensagem implícita: “lembra-te que vais morrer”. O objetivo desse lembrete era para se encarar sem receio a existência da morte e a certeza de que não somos eternos, passando a dar mais valor a cada dia e conseguir aproveitar plenamente a vida. Ora, meia dúzia de séculos depois temos muito mais medo dela. E a prova disso é que antigamente morria-se em casa e em casa se fazia ainda velório e funeral. Mas pouco a pouco fomos afastando tudo isso, escondendo, ao ponto de hoje se morrer nos hospitais para além de ter empurrado tanto o velório como o funeral para fora de casa, dando toda a razão a Woody Allen quando diz: “Eu não tenho medo da morte. Só não quero estar lá quando ela acontecer”.

Tudo isto para dizer que recebi uma chamada telefónica de um amigo que há muitos anos emigrou para França, “a salto”, e onde fez toda a sua vida de adulto até se reformar. Ali constituiu família e viu nascer dois filhos, tendo nos últimos anos vivido numa roda viva entre Paris e Lousada. Estranhei a voz muito arrastada e sofrida que revelava um grande esforço para falar. Começou por perguntar pela minha saúde e da família e depois disse: “Estou a telefonar-lhe para me despedir de si. O meu tempo está a chegar ao fim e restam-me poucos dias de vida”. Surpreendido pela chamada telefónica, mas especialmente pela razão que acabava de me revelar, perguntei-lhe o que se estava a passar. E ele, a muito custo, foi dizendo: “Apareceu-me um cancro nos pulmões e tenho andado a fazer tratamento aqui em França. Agora descobriram outro nos intestinos e já não há nada a fazer. É o fim e os médicos já nem me deixam sair aqui do hospital. É por isso que me venho despedir de si e agradecer-lhe por ter sido um bom amigo com quem pude contar sempre”. Enquanto ele falava, permaneci calado, estupidamente calado perguntando-me o que se podia dizer a alguém nestas circunstâncias? Mentir-lhe piedosamente, tentando fazer crer que havia esperança quando os médicos já o haviam desenganado? Naquele momento o que melhor me pareceu fazer foi ouvi-lo, estando ele totalmente consciente de que a morte se aproximava a passos largos e que lhe restava pouco tempo para fazer o que desejava: despedir-se de algumas pessoas. Falou tranquilamente embora com muita dificuldade sobre como a doença ficou fora de controle e de estar muito próximo o seu fim. Consegui retribuir o agradecimento e dizer-lhe que a nossa amizade continuava para lá do que viesse a acontecer hoje, amanhã ou na semana que vem. A nossa despedida, apoiada na fé de ambos, foi a promessa dum reencontro numa outra dimensão, numa outra vida.

A caminho de Lisboa, a chamada telefónica acompanhou-me sempre durante toda a viagem, como um recado a lembrar-me que podemos receber “guia de marcha” a qualquer instante, sem pré-aviso, apesar da sociedade manipular tudo para nos fazer crer na eterna juventude, escondendo a existência da morte como algo que faz parte da vida. E pensei no meu amigo e na sua coragem ao pegar no telefone e ligar-me com três objetivos claros: Dizer que iria morrer (sem citar esta palavra) dentro de poucos dias, despedir-se com um “até breve” e agradecer-me por ser seu amigo. Confesso que não sei como reagiria no seu lugar e se seria capaz desta chamada telefónica, embora diga frequentemente que não tenho medo da morte nem sequer de falar dela, mas sim do sofrimento, especialmente do sofrimento inútil que não tem esperança. 

E estou com o filósofo brasileiro Mário Costella quando diz que “não temos que ter medo da morte, mas sim de uma vida inútil” …      

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