Acasos, acidentais ou não, e o sucesso

Há momentos na vida em que algumas circunstâncias acidentais são determinantes para se conseguir alcançar um fim em vista. Nalguns casos, a originalidade dos imprevistos é tal, que deixa os dois lados como que incapazes de levantar obstáculos a um consenso que nem sempre seria fácil. Quando tenho uma reunião onde estarão em causa questões que envolvam interesses de valor considerável, antes olho e analiso o objetivo e a estratégia para o alcançar. Mas, verdade seja dita, há momentos em que acontecimentos excecionais apagam todas as estratégias e nos deixam sem argumentos e entregues na mão do acaso.

O doutor Gabriel (nome fictício), capitão do exército que, por mero acaso, entrara no negócio do marisco congelado, viajava até Espanha no intuito de comprar uma empresa da especialidade que já operava em Portugal e era fornecedor do marisco. Acompanhava-o um tio de quem era muito próximo, também ele um oficial distinto das Forças Armadas que passara à reserva depois da viatura em que seguia nas suas deslocações no Ultramar durante a Guerra Colonial ter ido ao ar com o rebentamento de uma mina e que fez com que perdesse as duas pernas. Depois de uma longa recuperação, passou a usar duas próteses a que acabaria por se adaptar bem, de tal forma que só uma pessoa muito atenta se apercebia que as suas pernas eram artificiais. Durante a viagem os dois foram conversando sobre as dificuldades que previam nas negociações, pelo insucesso dos primeiros contactos que não tinham corrido da melhor forma. Quando chegaram a Vigo e ao armazém onde se encontravam os escritórios da empresa visada, estacionaram o carro no parque em frente, entraram no armazém e tiveram de subir umas escadas que os levavam ao primeiro andar. O tio, de espírito militarista, seguia à frente fardado a rigor. No cimo das escadas e à entrada dos escritórios, esperavam-nos o dono da empresa, a assistente, o responsável financeiro e outro colaborador. No momento em que os dois venciam o último degrau das escadas, o tio do doutor Gabriel tropeçou no degrau com alguma violência e a sua perna direita completa, sapato e meia incluídos, saiu disparada em direção aos anfitriões que, por instinto, se desviaram dela para a deixar passar, enquanto ele gritou para o sobrinho: “Segura-me” e ele segurou-o. “Encosta-me à parede” e ele assim fez. “Traz-me a perna e encaixa-a” e ele, passando no meio dos anfitriões paralisados pelo insólito acontecimento, pegou na perna e foi junto do tio que estava encostado à parede, arregaçou-lhe as calças e encaixou a perna no suporte. “Arranja fita cola” e a assistente atónita foi buscar um rolo de fita cola. “Prende-a com a fita cola” e ele assim fez, dando uso total ao rolo que a mulher lhe dera. Depois, fez descer a perna das calças e o tio pôs-se direito assumindo uma postura militar, pediu desculpa e, cumprimentando todos, entrou no escritório. Em poucos minutos o negócio foi consumado sem que da parte dos espanhóis fosse posta qualquer objeção às condições que os dois apresentaram. Não foram capazes de dizer nada um ao outro depois de saírem dos escritórios e só quando estavam a chegar à fronteira de regresso a Portugal é que pararam o carro, olharam um para o outro, desataram à gargalhada com o tio a perguntar: “Que raio se passou ali”? Muitos anos depois, não sei, nem eles sabem, se a extrema facilidade com que fecharam o negócio se deveu a esse insólito que terá deixado os negociadores de Espanha perplexos e, eventualmente, vulneráveis.   

Noutras ocasiões, a chave para desbloquear situações que, à primeira vista, são insanáveis, depende do expediente ou espontaneidade dos intervenientes e em muitos casos da sua capacidade de improviso. Ainda eu trabalhava numa empresa de produtos químicos para a agricultura quando o meu colega Almeida, com a responsabilidade de supervisão técnica e comercial de uma grande parte do Alentejo para além do apoio aos vendedores da região, foi chamado por um deles, já que estava com dificuldades em lidar com um grande agricultor alentejano. Ao marcar o encontro com o meu colega num restaurante de Évora, o vendedor teve o cuidado de o avisar para ele ser pontual pois o cliente era muito exigente no cumprimento do horário. Apesar do alerta, a verdade é que o Almeida ao deslocar-se de Lisboa para Évora num tempo em que não existia autoestrada, atrasou-se. Ainda não tinha chegado a hora marcada e o vendedor, que conhecia os atrasos crónicos do Almeida, começou a preparar o cliente para a eventualidade dele se atrasar alegando o trânsito, a estrada e o que lhe vinha à cabeça. Passados quinze minutos o lavrador manifestava-se incomodado e ao fim de meia hora de espera chegou a levantar-se da cadeira para ir embora e só o empenho do vendedor fez com que se voltasse a sentar. Até que apareceu o Almeida, a correr, respirando com dificuldade, quase sem conseguir falar. 

Quando o lavrador lhe ia pregar um raspanete, o Almeida disse: “Desculpem, mas eu vim com tanta velocidade que lá em baixo, na curva à entrada da ponte, até trazia uma roda no ar”. Perante esta tirada, o lavrador respondeu-lhe: “Oh homem, não era preciso chegar a andar em três rodas e pôr a sua vida em perigo”. E o Almeida, tirando partido do expediente que usou e tinha preparado, rematou: “Obrigado pela preocupação, mas a roda que eu trazia no ar era a roda suplente”!!! Com esta tirada, o lavrador rebentou a rir e o Almeida ganhou um cliente incondicional …

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