“Estórias” dum pedaço de caminho…

Ao olhar a fotografia que me caiu nas mãos quando andava a remexer na muita papelada que ainda tenho e de que me quero livrar o mais depressa possível, não posso deixar de sentir uma certa nostalgia e a sensação de ser um privilegiado porque, daquele grupo de pessoas que ali aparecem sorridentes e que de uma ou outra forma estiveram ligadas ao Clube Automóvel de Lousada e aos muitos eventos que em seu nome realizamos, só eu e o José Pinto estamos vivos. Porque os outros, Jaime Moura, Bernardo Lousada, Lúcia Lousada, Paulo Sérgio e Soares Gomes, não são mais do que uma recordação e uma imensa saudade nas muitas “batalhas” em que estivemos juntos e fomos bem sucedidos, mas sobretudo da sua amizade. Ao rever aquela imagem e o fim de festa que julgo ter sido o jantar de confraternização com os participantes num Europeu de Autocross, para além de uma ou outra lágrima mais traiçoeira, vieram-me à memória pequenas “estórias” e curiosidades desses meus 23 anos feitos de corridas, das motas aos automóveis, da ACML ao CAL, algumas delas que ficaram pequenas lições de vida e retratos do povo que somos. O que começou por ser um meio para conseguir receitas para a ACML, depressa virou paixão e adrenalina pelo “circo” motorizado, até se esgotar o entusiasmo. 

Na primeira prova de motocross tudo era improvisado: a direção de prova e cronometragem estavam em cima da camioneta, a vedação era em esteira, os comissários estavam nas bordas da pista, tal como o público. As bilheteiras eram dois furgões da Lousafil e os bilhetes vendidos pelas janelas. No final do dia, com a corrida terminada e as tralhas arrumadas, levei as duas dúzias de colaboradores que haviam ficado até ao fim a jantar na pensão Avenida. Estávamos cansados, mas felizes pelo sucesso organizativo e de bilheteira, quando entrou o Adriano Rafael, da Lousafil. Trazia na mão um saco de plástico e veio direto a mim: “No fim, levei as carrinhas para a fábrica e quando as fui limpar e lavar encontrei espalhado no interior este dinheiro” e entregou-me o saco, num gesto raro que nunca esqueci. Na avalanche dos três a quatro mil espectadores os “bilheteiros” atiravam com as notas para uma caixa, mas muitas voaram e ficaram nos furgões.

Numa das primeiras provas de autocross nacional, para preparar a pista contratamos os serviços de uma motoniveladora à empresa de Lousada Irmãos Magalhães, de Lodares. Depois dos treinos na tarde de sábado a máquina entrou em pista para os arranjos do costume e eu vim para casa pois o domingo seria longo. Logo de manhã quando entrei no circuito vi a motoniveladora parada na reta da meta mesmo na partida. Não pensei nisso até ao momento em que pedi para a retirarem porque se aproximava a hora de começar. E o manobrador da máquina? Não estava nem ninguém sabia quem era. Aguardamos um pouco à espera que aparecesse, mas em vão e o tempo urgia. Enquanto o Jaime Moura tentava entrar na máquina fechada à chave, meti-me no carro e fui a Lodares, ao armazém e sede da empresa, mas estava fechado. Perguntei aos vizinhos que encontrei e nada sabiam até que um me disse quem era o encarregado e onde morava. Estava em casa, mas o choque veio a seguir: o manobrador tinha as chaves e morava em Fonte Arcada, para lá de Penafiel, mas não sabia onde. Para não perder tempo, fiz-me à estrada, pois a hora da partida aproximava-se depressa. Em Fonte Arcada andei às cegas de porta em porta até que alguém me soube dizer onde morava o rapaz. Apareceu-me a mãe: o João saíra, fora para um casamento. E lá fui ao casamento procurar o João, conseguindo finalmente encontrá-lo e levá-lo a entregar-me a chave porque só contava regressar à pista no final do dia. Cheguei ao circuito à justa e dei com o Jaime e o Rodrigo Ribeiro a acabar de desmontar a porta da máquina …

Uma das muitas funções que tinha durante os primeiros anos era a montagem da vigilância ao redor do circuito e controle de entradas, organizando elementos da GNR e da empresa de segurança para que as “borlas” fossem o menos possível. Mas era uma luta difícil pois até tinha de vigiar quem tinha essa função. Um dia descobri um vigilante sentado na bancada a ver a corrida, muito tranquilo, em vez de estar no seu posto e, logo a seguir, um membro da autoridade a dar a mão a três borlistas para os ajudar a subir a borda e entrar. E que fazer quanto o vigilante da entrada que controla os bilhetes dá sinal a um pequeno grupo e, um a um, espaçadamente, vão até ele, fingem que mostram o bilhete, ele finge que o rasga e deixa-o entrar? Ou quando apareciam pessoas com todo o tipo de cartões alegando ser oficiais de justiça, licenciados federativos, polícias, etc.? Atém um elemento da judiciária entrou alegando estar a perseguir um criminoso que, alegadamente, estaria entre a multidão …

Numa das minhas voltas de controle ao sistema, apanhei o “penetra” precisamente no momento em que ele chegou dentro. Estava um autêntico Cristo, a sangrar na cara, braços e mãos. Atravessara um silvado fechado por onde nunca pensei que alguém fosse capaz de passar. Pelo sacrifício e saber que não tinha como pagar bilhete, ficou a ver a prova. Mas a mais interessante “entrada” foi-me contada por um amigo. Alguns dias depois dum Ralicrosse Europeu ele disse-me que tinha ido ver a prova, gostara muito e nem sequer pagara.  Quis saber como o conseguiu e lá contou a história. Um amigo de Braga passou em casa dele e perguntou-lhe se queria ir à corrida. Disse que sim, convencido que ele comprara bilhetes. No carro adaptado por causa da deficiência o amigo deu-lhe boleia, dirigindo-se à entrada principal. Quando os seguranças de serviço se iam a dirigir ao carro, levantou a cabeça num gesto autoritário como quem diz “abram a porta” e, sem mais, deixaram-nos passar e entrar para um parque destinado à organização. A esta distância pergunto-me se o amigo do meu amigo não teria um amigo na porta de entrada!

Numa prova nacional de autocross um piloto de Paços de Ferreira despistou-se numa curva e contracurva, capotou e deu três ou quatro cambalhotas. Corremos para o local, vimos que ele estava bem e um dos comissários perguntou-lhe se custava muito dar uma cambalhota assim. E ele, com ar divertido, disse: “Só custa nas primeiras 500” …

Numa das primeiras vezes que o Rali de Portugal veio a Lousada o Jaime fez questão de convidar todos os presidentes e vereadores do Vale do Sousa para assistirem à prova numa bancada junto à torre. Correu tudo bem até que me chamaram porque o vereador de uma câmara qualquer queria falar com um responsável do CAL. Quando cheguei o vereador, de forma grosseira, reclamou porque aquilo não eram condições para receber autarcas, pois devia fazer isto, aquilo e aqueloutro, num rol de requisitos absurdos que eu ouvi, paciente e tranquilamente. Quando acabou, só lhe disse: “Que eu saiba, o senhor aqui é convidado e não pagou bilhete. Saiba que estamos a oferecer-lhe o que temos e o melhor que conseguimos fazer, a troco de nada. Devia agradecer. E não aceitamos conselhos de quem saiba mais, mas de quem tenha feito melhor”. E virei as costas àquele tipo arrogante e mal agradecido.        

Olhando para trás e a muitos anos de distância dessa viagem incrível que fiz pelo mundo dos desportos motorizados, sem nunca ter sequer experimentado as emoções de um guiador ou volante, sem valorizar a arrogância, sobranceria, oportunismo e chico-espertice que encontrei pelo caminho, relembro e agradeço a Deus sobretudo o que recebi, e foi muito, por ter partilhado essa viagem com pessoas excecionais de diversos quadrantes sociais, todas elas importantes para o sucesso do desporto motorizado em Lousada, mesmo que o seu nome nunca apareça nos relatos nem nos registos dessas histórias. E pelas muitas lições de vida desde a solidariedade, resiliência, humildade, partilha, entusiasmo, alegria, capacidade de sofrimento e espírito de sacrifício. Mas, muito especialmente, pelas amizades que ficaram para o resto do caminho …

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