Quem não chora, não mama …

Diz a experiência que chorar é a primeira manifestação de qualquer ser humano quando vem a este mundo. Provavelmente isso acontece porque, depois de terem vivido durante meses num “meio protegido” onde nada lhes falta, ao “darem de caras” com a realidade do local onde vieram parar, choram e berram como querendo dizer “deixem-me voltar lá para dentro” … Se a maioria soubesse antecipadamente ao que vem, recusava-se a nascer, “fincava” os pés nos bordos antes da saída só para continuar a viver no “bem bom” … É por isso que há os defensores da teoria que devemos chorar quando a pessoa nasce e não quando morre porque, mau, mau, é andar aqui neste mundo. Já William Shakespeare dizia: “choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes” … 

Desde bem cedo o choro faz parte da nossa condição humana e serve para revelar sentimentos distintos como alegria e tristeza, emoção e raiva, riso e medo, depressão e saudade, aflição ou … que estamos a cortar uma cebola crua. Também é um meio muito usado como forma de chantagem, de atingir determinados objetivos simulando falsos sentimentos, algo em que se tornaram especialistas as crianças e … as mulheres, embora alguns homens também o usem esporadicamente, mas com interesses bem diferentes daquelas!!!

Chorar não é só a primeira forma de manifestarmos uma emoção, mas também a mais elementar. Enquanto crianças, choramos por alguma dor física, por falta de segurança ou para chamar a atenção. Daí o choro quando se está com fome, em sofrimento ou sozinho. E, sendo a primeira forma de expressão, a criança quando está com fome chora, percebendo depressa e por instinto que “se não chorar, não mama”. Nada de anormal, pois acontece com todos os mamíferos. E isso só passa a ser um problema quando essa atitude se prolonga ao longo da vida toda. Aí, algo está errado. Não deixa de ser curiosa a forma como os bebés aprendem rapidamente a fazer do choro uma arma terrível que disparam de forma infalível contra os progenitores nos momentos críticos. Quando a mãe está a meio do cozinhado que não pode largar, com o pé na porta para ir à rua ou a abrir a torneira do duche, o bebé solta bem lá do fundo aquele choro estridente que andou a ensaiar durante nove meses na barriga da progenitora, em registo esganiçado que a faz largar tudo e correr para a criança como se ela estivesse a morrer. A verdade é que, com essa arma que nada tem de secreta, conseguem (quase) sempre o que querem e criam o hábito de a usar à medida que vão crescendo, com exigências tolas e imperiosas de que não abdicam, transformando-se bem cedo nuns pequenos ditadores impossíveis de calar, contrariar e pôr na ordem. E os paizinhos rendem-se incondicionalmente, passando de chefes da manada a súbditos apeados do poder …  

Fui educado numa sociedade em que se dizia às crianças do meu sexo que “um homem não chora” e mais ainda, “chorar é para as meninas”. Por isso, os homens continham as lágrimas nos momentos de estado emocional alterado como no medo, na tristeza, na raiva, na saudade, na alegria intensa ou na depressão, naquelas ocasiões em que as emoções fazem com que as lágrimas escapem dos olhos sem pedir autorização. Houve uma época em que entre as classes abastadas o choro passou a ser contido e efetuado em áreas restritas à intimidade de cada um. Criou-se o hábito de não verter lágrimas publicamente. Foi por essa razão que apareceram as “carpideiras”, as choradeiras profissionais substitutas dos fidalgos para quem não era de bom tom chorar em público, mesmo que fosse no enterro de um filho. 

Nos dias de hoje ainda são as mulheres e as crianças quem chora com mais frequência, as primeiras por emoção quando não por estratégia e as outras para revindicar o que precisam ou desejam. No entanto, já é comum ver homens a deixarem correr as lágrimas livremente sem as conter, ao contrário dos meus tempos de infância. E à medida que envelhecemos ficamos mais sensíveis a histórias de vida ou imagens e, quando damos por isso, as lágrimas correm-nos no rosto. Por isso, já acho normal sentir os olhos húmidos diante de alguma coisa que vejo, ouço, me sensibiliza e emociona. Até a ler tenho sido obrigado a parar com os olhos marejados de lágrimas como uma “madalena”. Dizem que as lágrimas aliviam a alma e um bom choro vale mais que doses de tranquilizantes. Não quer isto dizer que desatemos a chorar a torto e a direito sempre que tivermos um problema ou preocupação pois, se fosse assim, havia de ser lindo …

O provérbio “quem não chora não mama” faz todo o sentido para as crianças, porque é a forma de chamarem a atenção da família de que querem mamar para se alimentar. Continua a fazer sentido com os jovens adolescentes, se bem que em muitos casos já nem precisam de “chorar” para “mamar” um smartphone, computador ou quando não um automóvel para ir “trabalhar”. É especialmente importante para quem trabalha por conta dum patrão pois se não “chorar” da forma adequada para ser ouvido por quem de direito, muitas vezes não vê o seu mérito reconhecido e assim “mamar” mais um pouco no fim do mês. Como o é na prática para os compradores se não “marralharem” os preços; municípios se não “chorarem” junto do governo central tal como juntas de freguesia perante os municípios; os sindicatos se não reivindicarem melhores salários e regalias para os seus filiados; além de muitas outras instituições que não chegam a “mamar” se ficarem caladas perante quem tem a obrigação de as apoiar

Todos eles têm necessidade de “chorar” para serem ouvidos por quem governa seja lá qual for o nível, de maneira a poder “mamar” a sua parte, quando não uma parte maior do bolo que há para distribuir. O problema para todos eles, desde as crianças aos municípios, das pessoas às regiões, é se aqueles que querem sensibilizar com o seu choro “fazem ouvidos de mercador” por não pertencerem à mesma “família” seja ela qual for vendo assim o seu “choro cair em saco roto”. E, se é esse o caso, não valerá a pena insistir porque, por muito que eles choraminguem, chorem ou se desfaçam em lágrimas, baba e ranho, vão ter de ficar a “chuchar no dedo” ainda que façam birra, enquanto veem os outros “mamar” à grande …  

A vida ensina-nos a desconfiar …

Tenho saudades de quando era ingénuo, crédulo e inocente. De só ouvir sem necessidade de ter opinião. De acreditar que era o Menino Jesus que punha as prendas de Natal no sapatinho. De sonhar com príncipes, princesas, castelos, histórias de encantar, sempre com final feliz. De jogar ao peão, ao espeto, à cabra-cega e arrancar os botões da roupa para jogar ao “pica”. Só que, à medida que os anos passam, tendemos a ficar empedernidos, de coração duro, frio e desconfiado. Dizem que são os pontapés que se apanham ao longo da vida que nos vão mudando, transformando o ingénuo em malicioso, o sonhador no realista, o puro num libertino e o inocente em mau caráter. Claro que os anos nos fazem desconfiados e ficamos com dúvidas demasiadas vezes porque, diz o ditado, “gato escaldado de água fria tem medo”. Da adolescência aos primeiros anos de adulto comecei a perceber que tinha de ajustar a minha visão à realidade porque a pureza de intenções não tem cabimento no mundo dos homens, já que fazem tudo, mas mesmo tudo, para acumular dinheiro e isso e muito mais para alcançar o poder. Se no início comecei por selar negócios com um simples aperto de mão e confiar na “palavra de honra” como boa garantia, com o tempo e conselho do meu pai reduzi ao mínimo os contratos orais para os passar a escrito. E, mesmo assim, encontrei gente que não cumpriu. Mas nunca me tornei totalmente cético, pois sempre fui fazendo alguns acordos verbais e tive, sobretudo dos mais pobres, quem nunca faltasse à palavra. Por isso acredito que ainda há esperança, embora os maiores sinais nos obriguem a desconfiar … 

Os supermercados são hoje locais de frequência obrigatória para todas as pessoas, goste-se ou não, pois vieram para tomar conta do setor de distribuição alimentar, mas já vão muito para além disso abarcando cada vez mais áreas de comércio, do têxtil às ferramentas, dos eletrodomésticos aos artigos para o lar, da cosmética aos artigos para animais, plantas de jardim e uma variedade enorme de todo o tipo de inutilidades que carregamos para casa como acumuladores de lixo que somos. Desde o início souberam como nos fazer consumir mais do que realmente precisamos, mas hoje atingiram o cúmulo da eficiência comercial ao associaram a tecnologia ao marketing além da publicidade, para nos controlar e induzir os impulsos consumistas que lhes sejam mais convenientes. Não bastavam os folhetos, cartões de descontos, selos de coleção com direito a produto, valor de crédito em talões com prazo, ilusão de preço mais baixo ao retirar um único cêntimo no preço para ele terminar em …,99 €, embalagens de pesos variados que nada têm a ver com o kg e que enganam muitas vezes o consumidor ao dar a ilusão de preço mais baixo, mas que às vezes nem meio quilo têm e todo o tipo de promoções e descontos variados. Um supermercado desenvolvido hoje controla os nossos hábitos de consumo, os produtos mais comprados e quais as prateleiras onde vamos, para selecionarem os artigos dos talões de descontos que nos enviam. Enfim, controlando e orientando-nos só para consumir mais.

Tirando as estratégias comerciais que muitas vezes são lesivas dos interesses dos clientes e induzem ao consumo desnecessário, sempre considerei os supermercados corretos no que cobram e, por isso, não controlava à saída o valor da fatura nem o preço dos produtos. Nunca pus em causa a seriedade dessas “catedrais de consumo” no que diz respeito ao objetivo deles, “a conta”. Até um dia …

Depois de passar pela caixa de um supermercado local com os artigos comprados a quererem fugir-me da mão (recuso-me a comprar saco), dirigi-me ao carro enquanto enfiava a conta no bolso sem a verificar, apesar de me ter parecido algo exagerada para o que trazia. Quando abri o carro vi o cliente que passou a caixa antes de mim a acabar de arrumar as suas compras, fechar o carro e voltar ao supermercado a olhar a fatura das compras na mão como quem não concorda com alguma coisa. Então fiz o mesmo: arrumei as minhas, tirei a fatura do bolso e pus-me a verificar parcela a parcela. E lá estava um produto de que comprara 10 unidades debitado ao preço normal embora na prateleira estivesse como uma boa promoção. E fiz o mesmo que o outro cliente: voltei à loja e à caixa onde ele ainda estava a reclamar. Quando acabou, foi a minha vez de colocar a questão à funcionária que, depois de mandar verificar o preço do produto na prateleira, pediu desculpa e devolveu-me pouco mais de treze euros que, se o acaso não me tivesse feito olhar para o outro cliente, bem ficaria sem eles em benefício de quem precisa menos do que eu …

Nas idas seguintes aos supermercados continuei a confiar, mas, por precaução, passei a fazer um cálculo aproximado da conta à medida que colocava os artigos no cesto. Até que noutro supermercado cá da terra aconteceu um erro semelhante ao anterior em prejuízo também do meu bolso. Foi assim que a vida me deu nova lição e me ensinou a desconfiar dos supermercados e da fatura. Foi assim que evitei já por mais duas vezes erros – e vou chamar-lhe isso para ser simpático – mas sempre contra mim. Quando em casa falei nestas “anomalias” a Ana Maria contou-me logo vários casos passados com ela pois desde há muito passou a escrutinar rigorosamente a fatura e foram muitas as vezes em que sairia prejudicada se o não fizesse. E os erros que ela tem detetado são os mais diversos, ao contrário dos que aconteceram comigo. Havia uma coisa comum a todos os “erros” que aconteceram comigo e com ela: o prejuízo era sempre do cliente …

A vida ensina-nos que, mesmo que alguns dos nossos pensamentos pareçam tontos, não podemos ignorá-los, pois são alertas de que há algo de estranho e alguém pode querer “passar-nos a perna”. Sem ter medo de desconfiar de quem quer que seja, devemos comprovar as suspeitas, até porque é melhor desconfiar do que vir a ser enganado. E pelo que me tem acontecido ultimamente, bem posso dizer que os supermercados não estão acima de suspeita ainda que, por alguma questão de bondade, lhes chamemos “erros” …

Pen drives, Gigas, USB, Bluethooth …

Os avanços da tecnologia trouxeram com eles numerosos termos novos em inglês que os jovens apreendem cedo e com facilidade, mas que as pessoas da minha geração têm alguma dificuldade em “encaixar” na mona e, sobretudo, a perceberem o seu significado.  A conversa podia ter acontecido comigo ou com qualquer outro “maduro” como eu, para quem o computador pouco mais é que uma máquina de escrever. 

Circula pela internet este texto que um amigo me fez chegar há dias: “Numa loja de material informático o senhor Belmiro tirou um papel do bolso, leu as suas anotações e perguntou ao funcionário: – Por favor, tem uma “pen drive”? E o jovem respondeu prontamente: – Temos sim. – Pode-me dizer o que é uma “pen drive”? É que o meu filho pediu para lhe comprar uma! – Bom, a “pen drive” é um pequeno aparelho onde pode salvar tudo o que tem no computador. – Ah, é como uma disquete? – Não. Com a “pen drive” o senhor pode salvar textos, imagens e filmes. Com a disquete, que já não há, o senhor só salva texto.

– Está bem, já percebi. Quero uma. – Está bem. De quantos gigas? 

– Como? E o funcionário: – De quantos gigas quer a “pen drive”? 

– O que são gigas? diz ele. E o funcionário: – É o tamanho da “pen”. 

– Ah, estou a ver. Quero uma pequena que dê para levar no bolso sem fazer grande volume. E o rapaz – São todas pequenas, senhor. O tamanho é a quantidade de coisas que ela pode arquivar.

– E quantos tamanhos tem? E ele: Dois, quatro, oito, dezasseis …

– Hum, meu filho não disse quantos gigas queria. – Nesse caso, o melhor é levar a maior. Dá para tudo. – Acho que tem razão. Quanto custa? – Bem, o preço varia conforme o tamanho. A sua entrada é USB? – Como? – Para acoplar a “pen” ao computador a entrada tem de ser compatível. E o senhor Belmiro: – USB não é a potência do ar condicionado? – Não, isso é BTU. – Ah, é isso mesmo. Confundi as iniciais. Bom, eu sei lá se a minha entrada é USB! E o rapaz: USB tem dentinhos que encaixam nos buracos do seu computador. O outro tipo é este, o P2, mais tradicional e o senhor só tem que enfiar o pino no buraco redondo. O computador é novo ou velho? Se for novo é USB, se for velho é P2. – Acho que o meu tem uns dois anos. O antigo era com disquete. – Hoje não têm entrada para disquete. Ou é CD ou “pen drive”. – Pois, não sei o que fazer. Acho melhor perguntar ao meu filho. – Pode telefonar-lhe?    – Eu queria, mas o telemóvel é novo e tem tantas coisas que ainda nem sequer sei funcionar com ele.

– Deixe-me ver. Puxa, que Smartphone! Tem Bluetooth, câmara fotográfica, TV digital, enviar e receber e-mail, micro-ondas …

– Blu… Blu… Blutufe? E micro-ondas? Dá para cozinhar com ele?

– Não, não. Funciona no sub-padrão. Por isso é mais rápido. 

– E para que serve esse tal Blutufe? – Para um telemóvel comunicar com outro, sem fios. ­Que maravilha! É uma grande novidade!   – Mas os telemóveis já não se comunicam com os outros sem fio? Nunca precisei de fio para ligar para outro telemóvel. Fio em telemóvel, que eu saiba, é apenas para carregar bateria… -Não, já vi que o senhor não entende nada. Com o Bluetooth o senhor passa os dados do seu telemóvel para outro sem usar fio. A lista de telefones, por exemplo. ­Ah, e antes precisava de fio? – Não, tinha que trocar o chip. ­ Ah, sim, o chip. E hoje não precisa mais de chip… precisa, mas o Bluetooth é bem melhor. ­Interessante o negócio do chip. O meu telemóvel tem chip? Um momento … deixe ver… Sim, tem chip. ­E faço o quê com o chip? – Se o senhor quiser trocar de operadora, a portabilidade, o senhor sabe. ­Sei, sim, portabilidade, não é? Claro que sei. Não ia saber uma coisa dessas, tão simples? – Imagino que para ligar tudo isso no meu telemóvel, depois de fazer um curso de dois meses, só preciso clicar nuns duzentos botões… – Não! É tudo muito simples, o senhor apreende logo. Quer ligar para o seu filho? Anote aqui o número dele. Isso. Agora é só teclar, um momentinho, e apertar no botão verde… pronto, está a chamar.

Osvaldo segura o telemóvel com a ponta dos dedos temendo ser levado pelos ares, para um outro planeta: Olá filho, é o pai. Diz-me filho, a tua pen drive é de quantos… Como é o nome? Ah, obrigado, quantos gigas? Quatro gigas está bom? Ótimo. E tem outra coisa, o que era? A conexão é USB? É? Que loucura.

Filho, comprei a tua pen drive. À noite levo-a para casa.           – Que idade tem o filho? ­Vai fazer dez em Março. – Curioso…

É isso, vou levar uma de quatro gigas, com conexão USB.

– Certo, senhor.

Mais tarde, no escritório, examinou a pen drive, um minúsculo objeto menor do que um isqueiro e capaz de gravar filmes!!! Onde iremos parar? Então olha com receio para o telemóvel sobre a mesa. “Máquina infernal”, pensa. Tudo o que ele quer é um telefone só para fazer e receber chamadas. E tem nas mãos um equipamento sofisticado, tão complexo que só um especialista ou quem tenha menos de quarenta anos saberá compreender.

Em casa ele entrega a pen drive ao filho e pede para ver como funciona. O miúdo insere-a no computador e no monitor abre-se uma janela. Em seguida, com o rato abre uma página da internet em inglês. Seleciona umas palavras e um ‘havy metal’ infernal invade o quarto e os ouvidos de Osvaldo. Um outro clique e, quando a música termina, o garoto diz: – Pronto, pai, baixei a música. Agora levo a pen drive para qualquer lugar e posso ouvir a música onde tiver entrada USB. No telemóvel, por exemplo. ­O teu telemóvel tem entrada USB? – É claro, o teu também tem. ­ É? Quer dizer que eu posso gravar músicas na pen drive e ouvir pelo telemóvel? Se não quiser tirar direto da internet…

Naquela noite, antes de dormir, deu um beijo na Clarinha e disse: ­Sabes que eu tenho Blutufe? – O que é isso? ­ Blutufe. Não me vais dizer que não sabes o que é o Blutufe? – Não me chateies, Osvaldo, deixa-me dormir. ­Meu amor, lembras como era boa a vida quando telefone era telefone, gravador era só gravador, gira-discos tocava discos e só tínhamos carregar num botão para as coisas funcionar? Claro que me lembro, Osvaldo. – Hoje é bem melhor, não? Várias coisas numa só e até Blutufe tem. E conexão USB também. – Que bom, Osvaldo, os meus parabéns. ­ Clarinha, com tanta tecnologia a gente envelhece cada vez mais depressa. Fico doente só de pensar quantas coisas existem por aí que nunca vou usar. – Ai sim? Porquê? ­ Porque aprendi a usar o computador e o telemóvel e tudo o que sei já está ultrapassado. Por falar nisso temos que trocar de televisão.- Como? A nossa avariou? – Não. Mas não tem HD nem tecla SAP, slowmotion e reset. ­Tudo isso?… – Tudo. ­ A nova vai ter blutufe?

Boa noite, Osvaldo, vai dormir que eu não aguento mais” …

Este é o diálogo possível entre duas gerações separadas por um mundo tecnológico que não para de nos surpreender, com uma linguagem própria que os jovens apreendem facilmente, mas que para a minha geração é uma confusão danada …

Feliz de quem recebe “flores” em vida

O senhor Joaquim vive há cem anos na mesma aldeia de um concelho vizinho, de onde quase nunca saiu para ver o mundo, mesmo que o mundo fosse só o Porto ou Lisboa. Passou fome, viveu com inúmeras dificuldades, atravessou uma Guerra Mundial, uma Guerra Colonial e conseguiu que os seus cinco filhos e filhas sobrevivessem, ganhassem asas e tivessem (e ainda tenham) uma vida boa apesar de, para tal, terem emigrado para França, por onde se mantêm. E tudo isso foi conseguido somente com o fruto do seu trabalho de jornaleiro e com a ajuda da senhora Maria, sua mulher, que governou a casinha onde moravam na aldeia e cuidou dos filhos enquanto não “voaram” para a “estranja”, para além de cultivar o pequeno quintal de onde tirava as hortaliças para o “caldo”, até ser “levada pelo Senhor” já lá vai “um bom par de anos”. Ainda com a cabeça completamente coberta de cabelo, mas a quem o tempo pintou de branco como um sinónimo de experiência e sabedoria, todos os dias depois do almoço vai até ao ponto de convívio da aldeia, uma antiga “tasca” que os proprietários teimaram em “modernizar” batizando-a de “Café da Aldeia” apesar de quase só lhe acrescentarem meia dúzia de mesas e nenhumas obras, por onde fica quase toda a tarde em conversa com quem está por ali. E ele, como bom contador das muitas histórias de uma vida longa e intensa, alimenta com facilidade as tertúlias com amigos e vizinhos. Há dias recebeu a visita de um velho amigo, “rapaz” mais novo que ele, emigrante em França, mas que nos últimos anos tem vivido entre cá e lá, que não deixa de o visitar sempre que vem a Portugal nem de convidar e acompanhar ao tal “café” da aldeia onde passam horas a fazer o que melhor sabem: falar. Naquele dia sentou-se à mesa um dos filhos do senhor Joaquim, também ele emigrante em França, que assistia mais à conversa do que participava e ouvia o pai repetir com frequência “aqui o Manel é o meu maior amigo”. E, volta e meia, lá vinha mais um novo “aqui o Manel é o meu maior amigo”. 

Às tantas, o filho do senhor Joaquim perguntou-lhe: “Ó pai, porque é que está sempre a dizer que o Manel é o seu maior amigo”? E ele, sem desviar o olhar, respondeu: “Porque o Manel já me levou a França e trouxe duas vezes, deu-me cama e mesa em sua casa e levou-me a passear por aquelas terras que eu nunca vira, para além de me visitar e fazer companhia sempre que cá vem, coisa que nenhum dos meus filhos fez apesar de virem cá todos os anos nuns “brutos carrões” e mostrarem que “puxam bem” e a vida lhes corre de feição. Mas só o meu amigo Manel se lembrou de mim” …

Encontrei-me há dias com esse tal Manel e estivemos à conversa, embora não tenha sido tão prolongada como as que ele tem com o seu amigo. Vinha muito incomodado pelo comportamento da mulher de um seu familiar porque, enquanto no funeral fizera um espetáculo de dor e sofrimento, chorando e gritando desalmadamente em plena igreja, já na missa de sétimo dia apareceu feita “viúva alegre”, sem sinal de dor pela perda do marido, permitindo-se até contar anedotas nada adequadas à sua condição, quanto mais ao momento. “E eu sei bem como é que ela o tratou em vida”, acrescentou. “Já preparou um espetáculo de viúva cheia de saudades do marido para o Dia de Fiéis e Defuntos. É por isso que, apesar de respeitar a tradição, nesse dia não vou ao cemitério colocar flores na campa dos meus familiares. As “flores” dou-as às pessoas em vida” …

É no Dia de Finados que milhões de pessoas vão ao cemitério levar flores, rezar e acender velas ou lamparinas pelos seus entes queridos que morreram, numa romagem anual que faz viajar de muito longe quem não se esquece, sentida para muitos, uma mera formalidade a “cumprir calendário” para outros. Podia ser o “Dia da Memória” por levar a que muita gente não se esqueça por completo dos familiares e amigos que partiram nesta vida tão atarefada e de pressa, obrigando-os a recordar ainda que uma só vez por ano, porque há quem ali vá com mais ou menos regularidade prestar homenagem e cuidar do espaço e para quem o dia 1 de Novembro é só mais um dia. No meio rural como o nosso, também há quem “vire o bico ao prego” e veja no momento uma oportunidade para “fiscalizar” todos os túmulos do cemitério, julgar e condenar a família que não cuidou e alindou o seu, além de avaliar enquanto “jurados num suposto concurso de arranjos florais” quem teve os ramos de flores mais valiosos e de maior beleza, motivo de rivalidades e competições entre familiares, vizinhos ou conhecidos e matéria de comentários na aldeia durante a semana seguinte. 

Parece muito estranho ver algumas viúvas que foram tão maltratadas pelos seus homens e que neste dia não deixam de lhes levar arranjos florais vistosos. Será que é mesmo para homenagear o defunto, para lhes dar o seu perdão ou, pelo contrário, para agradecer a Deus o ter-lhes concedido a liberdade e o fim do martírio? Fica a dúvida …

O Papa Francisco não deixa de nos enviar numa das suas mensagens estas considerações: “O ser humano é estranho. Briga com os vivos e leva flores para os mortos. Lança os vivos na sarjeta e pede “um bom lugar para os mortos”. Afasta-se dos vivos e agarra-se desesperado a eles quando morrem. Fica anos sem conversar com o vivo e desculpa-se e faz homenagens se ele morre. Não tem tempo para visitar o vivo, mas tem o dia todo para ir ao velório do morto. Critica, fala muito mal e ofende o vivo, mas santifica quando ele morre. Não liga, não abraça e não se importa com os vivos, mas se autoflagela quando morrem. Aos olhos cegos do homem, o valor do ser humano está na sua morte e não na sua vida” … 

Será preciso perder para valorizar? Porque é que se passa a ser uma excelente pessoa e os elogios só aparecem depois de morto? Qual a razão por que só se recebem muitas flores já quando se não podem cheirar, olhar e apreciar? Estamos demasiado ocupados com a vida para “dar flores” aos vivos e só nos lembramos de o fazer quando eles já estão do lado de lá? Considero importante e indispensável a tradição do Dia de Finados como Dia da Memória que é para todos nós e a homenagem sincera que cada um faz aos entes queridos diante da campa ou jazigo onde estão depositados os seus restos mortais, expressa das mais diversas formas, seja através de um simples ramo de flores do campo, de uma vela ou lamparina acesa, de uma oração em silêncio ainda que diante da campa despida de enfeites para além da cruz, como um despertar de consciências para aqueles que se esqueceram deles, de tão presos e entregues à pressa dos dias. Pelo contrário, os arranjos e enfeites de flores e artefactos caros, mais não são do que vaidades expressas na arrogância do dinheiro ou na tentativa de aliviar as consciências pelas “flores” que se não ofereceram ao morto em vida. É notável como a jovem Anne Frank, com menos de 15 anos, percebeu bem a natureza humana ao escrever um desabafo no seu célebre Diário: “Os mortos recebem mais flores que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão”.   
Razão tem o Manel quando diz que “as “flores” devem dar-se em vida às pessoas de quem gostamos, pela presença e companhia, a forma como as tratamos, lhe dizemos que as amamos e saberem que podem contar connosco”. Essas “flores”, sim, temos a certeza de que chegam diretas aos seus destinatários e os ajudam a suportar melhor esta vida terrena…

Seremos nós os animais mais especiais?

Como é que o urso-cinzento consegue farejar a presa a cerca de 32 Kms de distância? Como é que a sépia (peixe) muda de cor, textura e padrão completamente num segundo? E os cães como conseguem detetar cancros e ataques epiléticos? Veja-se a medusa, praticamente imortal, quando atinge a maturidade sexual regressa a pólipo vezes sem conta? Porque será que nas horas ou dias antes de uma catástrofe como um terramoto, os animais fogem para longe da área ou região que será afetada? A antecipação dos terramotos é comum a muitas espécies de animais, desde sapos a fugir do habitat, cobras a saírem dos locais onde estão a hibernar e ainda antes do seu fim, aves a voarem para longe tal como outros animais mais a retirarem-se antecipadamente das zonas de risco. Foi especialmente noticiada a disparada de elefantes asiáticos para terras altas por ocasião do terramoto seguido de um tsunami em 26 de Dezembro de 2004. Muitas vidas foram salvas graças a isso.

E qual é a nossa capacidade de previsão destes fenómenos? Zero. 

Sendo nós um animal como outros, ao afastarmo-nos da natureza fomos perdendo algumas capacidades e, neste caso, o “instinto de sobrevivência” deixou de funcionar. Vamos agora correr atrás do prejuízo usando animais para nos servirem de “alarme de catástrofes”. Eles têm capacidades extraordinárias que ultrapassam a nossa compreensão …

Lawrence Anthony tinha uma carreira bem-sucedida no ramo de seguros e comércio de imóveis. Porém, trocou tudo para dedicar a sua vida às espécies em vias de extinção.                                                                                                  Em 1999 este homem abriu os portões da Thula Thula Game Reserve, na África do Sul, para elefantes selvagens, embora não fosse esse o plano original da reserva. No entanto, deu um salto de fé e aceitou os elefantes agressivos e em risco, porque se não os acolhesse seriam mortos. Segundo ele, nunca foram fáceis de lidar já que eram conhecidos por escapar de outros recintos e agir sem controle. “Eram um grupo complicado, mas eu vi que tiveram uma vida difícil e estavam com muito medo”. Lawrence arriscou ao tomar conta destes animais majestosos e tratou-os como crianças. Usou certas palavras para os incitar e alguns gestos para mostrar que estavam muito seguros com ele. Além disso, concentrou-se principalmente na matriarca Nana para se conectar com o resto dos elefantes. Lawrence descia a cerca e implorava a Nana para não a quebrar na sua tentativa de fuga. Ele sabia que Nana não entendia o inglês, mas conseguia perceber a linguagem corporal.                                                                                             Um dia deu-se um novo começo quando Nana estendeu a tromba a Lawrence. Percebeu então que ela queria que a acariciasse e isso significava o início de um belo relacionamento. Os elefantes passaram a gostar muito de Lawrence, bem como de sua esposa François. Na verdade, tornaram-se tão próximos que os elefantes até pensavam que a casa de Lawrence também era a sua casa. Eram a família e os melhores amigos.                                      Durante anos as manadas e Lawrence estabeleceram uma grande relação entre si, mas, infelizmente, o conservacionista morreu em 2 de Março de 2012. De acordo com o New York Times, Lawrence morreu devido a um ataque cardíaco e deixou para trás a esposa e dois filhos. O homem que abandonou uma carreira em seguros e imóveis, salvara todo o tipo de animais além das manadas de Nana. Lawrence até conseguiu convencer os rebeldes africanos – que eram todos procurados como criminosos de guerra – a cuidar dos rinocerontes brancos restantes no norte. No entanto, nada se compara ao relacionamento e vínculo sagrado que ele tinha com Nana e as suas manadas.                                                                   O mais inexplicável e emocionante desta relação deu-se após o falecimento de Lawrence. Dois dias após a morte, esses animais majestosos que já não iam a casa do seu amigo há mais de ano e meio, apareceram depois de 12 horas a caminhar desde Zululand, para lhe prestarem a sua homenagem. E ficaram de vigília durante dois dias à volta da casa antes de voltarem às suas vidas lá longe, no mato. 

Luto de Elefantes - World Of Buzz 1

Fonte: instagram

O incrível é que, não tendo ninguém “avisado” as duas manadas lideradas pela matriarca Nana da morte de Lawrence, como é que elas “souberam” disso? Ninguém sabe dizer como. Isto só vem confirmar que os animais podem sentir coisas que nós, humanos, não podemos. Mas desengane-se quem pensar que foi a única vez que Nana e as suas manadas fizeram vigília a Lawrence. Todos os anos, no dia 2 de Março, os elefantes viajam 12 horas para homenagear o seu camarada caído na esperança de que ele volte …  

Em 2009, Lawrence publicou o livro “The Elephant Whisperer” ou “O Encantador de Elefantes”, que descreve com caráter testemunhal o período em que conviveu com os elefantes na savana africana, despertando assim no leitor uma perceção diferente e sensível em relação aos animais. Numa das suas passagens, Anthony declara: “Talvez a lição mais importante que aprendi é que não há muros entre seres humanos e os elefantes, exceto aqueles que nós construímos. E, enquanto não permitimos que não apenas os elefantes, mas todas as criaturas vivas tenham um lugar ao sol, nunca poderemos sentir-nos completos” …              

A cozinha da minha avó …

A casa da minha avó materna ficava (e fica) do outro lado do caminho mesmo em frente à casa dos meus pais e era frequente eu aparecer por “aquelas bandas” quando era criança, fosse para ir aos figos na figueira que pendia um pouco sobre a casa da Emilinha “Séria”, fosse para ir aos “ameixos de aparta caroço” que pendiam sobre a mata traseira, fosse por muitas outras razões. Mas as saudades ficaram-me mais da cozinha rústica com o lar de pedra onde o lume ardia quase todo o dia. Na lareira estava sempre uma grande panela de ferro de “três pés”, a “caldeira de água quente” daquele tempo, que já era um luxo. Dali tirava-se água quente para tudo pois não havia cilindros elétricos, esquentadores ou outras modernices para aquecer água e que só viriam a chegar à aldeia muitos anos mais tarde. Aliás, nem sequer havia água canalizada, pois na casa da minha avó, como na nossa, era tirada do poço, a princípio a balde puxado com sarilho e anos mais tarde tirada a motor elétrico, outra modernice, tal como a eletricidade, fraca e com muitas falhas, que nos obrigava a usar com frequência os candeeiros a petróleo, velas e candeias. 

Na cozinha da minha avó todos os netos gostavam muito de se sentar no “preguiceiro”, uma peça de mobília fundamental numa cozinha tradicional, espécie de banco comprido com “costas” altas onde nos recostávamos com os pés no “lar” bem perto do lume. Em madeira de pinho, para além das costas o “preguiceiro” tinha “braços” para apoio e, na zona central um pequeno tampo de madeira que fazia de mesa quando se baixava e apoiava numa haste de madeira, servindo para comer, jogar ou outra coisa qualquer. Ali sentados, gozávamos dos prazeres do fogo e ficávamos a ver as mulheres cozinhar. No meio da fogueira e ao lado da panela grande de três pés havia uma “trempe” feita em ferro onde colocavam panelas e tachos para cozinhar, fosse o caldo que nos era servido em grandes “malgas” de barro, fossem as batatas cozidas com casca que muitas vezes não tinham nada para acompanhar além de um fio de azeite já que o azeite era caro, com um pouco de vinagre tinto feito num grande garrafão com vinho do quintal e uma “tripa” que mais não era senão um aglomerado de bactérias acéticas necessárias à acidificação do vinho. No tempo das castanhas aproveitava-se a fogueira para as assar, depois de cortar um canto a todas elas para não rebentarem, atiradas para o meio do fogo onde ficavam enterradas na cinza. Ao ajudar a cortar os cantos das castanhas, de malandrice deixava ir algumas inteiras para depois ver as mulheres a assustarem-se (ou a fingir) com os rebentamentos no meio da fogueira, espalhando pequenos pedaços de carvão.

No inverno era crónico ver as mulheres com “murras” nas pernas como resultado de andarem muito tempo junto do lume com elas à mostra. As murras são manchas pouco persistentes causadas pelo calor do fogo e que causam algum desconforto. Como nós, homens, andávamos de calças, não tínhamos esse problema.

O canto da cozinha por detrás do preguiceiro era o espaço onde se “fabricava” o pão, mais concretamente a broa de milho. Ali estava o forno de barro aquecido a lenha e, ao lado, a “amassadeira”. O milho era de produção própria no Campo dos Morgadinhos ou noutro mais abaixo e moído pelo moleiro dos Moinhos. Gostava de ver a minha avó misturar a farinha com água quanto baste, fermento e um pouco de sal e amassar. Às vezes ela deixava-me “meter a mão na massa” e seguia com atenção as fases seguintes, desde o aquecer do forno, o retirar das brasas e cinza, o meter o pão a cozer e o tapar da porta do forno com fezes de boi. Mas a parte mais interessante era sempre a abertura do forno e a retirada das broas já cozidas. Tinha logo direito a um naco de broa quente que me “sabia pela vida”. 

No inverno, depois da matança do porco, a base do saco da chaminé ficava atravessada por três varas carregadas de salpicões e chouriças de sangue, além de presuntos e outras partes do porco a precisarem de ser defumadas depois de salgadas, para se conservarem. Às vezes tínhamos direito a provar para saber se estavam em condições de ser consumidas. Por nós, estavam sempre.

No Natal, com a “mesa” do preguiceiro montada, eu sentava-me de um lado e o meu irmão do outro e jogávamos o jogo do “rapa” usando um pequeno pião de quatro lados. Em cada lado havia uma letra: R (Rapa), T (Tira), D (Deixa) e P (Põe). Jogávamos a pinhões com casca que conseguíamos num pinheiro manso grande na mata atrás da casa da minha avó. Eu era perito a subir pelo tronco do pinheiro, agarrado à casca (nalguns, como só conseguia abraçar metade da árvore, era agarrado à casca rugosa que trepava) e apanhava as pinhas de onde extraía posteriormente os pinhões. Para começar o jogo, eu e o meu irmão colocávamos em cima da mesa do preguiceiro um pinhão cada e fazíamos rodopiar à vez o “Rapa”, o pequeno pião. Quando saía o R, “rapava” os pinhões sobre a mesa. O T dava direito a tirar um pinhão. O D era para deixar tudo como estava. E o P queria dizer que éramos obrigados a pôr lá um pinhão. E ali ficávamos horas seguidas a jogar, alternando com mais “jogadores” interessados. Quando fora de jogo, aproveitávamos para comer os pinhões ganhos a jogar, partindo-os com uma pedra sobre o lar. A Noite de Natal “convidava-nos” a ficar por ali logo a partir do almoço porque durante a tarde faziam-se as rabanadas de mel e os formigos, uma coisa fora do comum pelo que aguardávamos pacientemente para ver e “provar” aquelas doçuras que eram de “comer e chorar por mais”. E a espera valia a pena …

Estas memórias vieram-me à cabeça enquanto observava algumas crianças insatisfeitas com os diversos jogos que tinham para brincar e, mais tarde, resmungando diante de um lanche muito bem aviado. Fiquei a pensar que hoje valorizam pouco ou nada o muito que lhes é dado, grande parte das vezes sem terem necessidade sequer de pedir. É que os pais, no seu desejo de darem aos filhos tudo e mais alguma coisa do bom e do melhor, numa competição implacável com outros pais, sejam familiares, amigos, vizinhos ou simples conhecidos, fazem do brinquedo mais caro à gulodice mais sofisticada uma coisa comum e comum, que faz passar a mensagem errada aos “beneficiários” de que são coisas sem valor. E, para quem nem sequer teve de pedir, são mesmo. Pelo contrário, num outro tempo em que havia muito pouco, dava-se importância a tudo, nada se desperdiçava e ficava-se grato pelo que se recebia e tinha, fosse para comer ou brincar …   

Para mim, não. Preferia emigrar …

A natureza colocou pelos no nosso corpo e dele fazem parte, quer se queira, quer não. Porquê? Porque sendo todos muito diferentes, em comum todos eles servem para nos proteger, seja da radiação solar, frio, calor, fricção da pele, infeções devido a pequenos cortes e até de doenças. Cabelos, sobrancelhas, cílios ou pelos da região pubiana, dos ouvidos, nariz, axilas ou qualquer outra parte do corpo, cada um tem funções específicas, seja na diminuição de queimaduras nas virilhas, seja na diminuição da fricção existente no contacto de pele com pele do ato sexual ou de uma coisa tão simples como andar, seja a criação de uma barreira contra as bactérias e muitas outras funções.

Quando garoto, os pelos no homem eram sinal de masculinidade e nas mulheres, em menor quantidade, eram … naturais. Aliás, como a maior parte dos corpos femininos andavam tapados, a estética não se colocava. Mas, sobretudo a partir da industrialização com a saída das mulheres para o mercado de trabalho, a subida das saias e à medida que foram aumentando os centímetros quadrados do corpo feminino a nu, a propaganda começou por convencer as mulheres que os pelos são um “embaraço” e a indústria criou e vendeu os primeiros cremes e aparelhos depilatórios para elas. E a mentalização levou que estas passassem a interiorizar que pelos são feios, sujos e masculinos. Foi então que alastrou o conceito estético feminino de hoje alicerçado na publicidade, imprensa, moda, televisão, cinema e, anos mais tarde, no erotismo e pornografia, levando-as a rituais regulares de purificação daquilo que consideram ser uma maldição feminina, num sacrifício supremo em nome do “padrão estético” e da aceitação. Deixaram de ter escolha e de ser donas do seu corpo. 

Desde então, sofisticaram-se métodos, aumentou a exigência de uma pele “limpa” e todas as “armas” eram válidas para a conseguir: Laser, cremes, cera, lâminas e múltiplos aparelhos num negócio crescente. A verdade é que os homens criaram uma “mulher padrão” totalmente depilada (como as castanhas de outrora), caso contrário não seriam “consumíveis” pelo olhar masculino. Enquanto nos homens os pelos significavam poder e masculinidade, nas mulheres a depilação era o símbolo da feminilidade e fragilidade. Assim foi construída a imagem do corpo da mulher: limpinho de pelos, pele suave (pelos cremes) à custa de muita dor, sofrimento e consequências no pós-depilatório.

Já nos homens os pelos não eram (nem são) considerados nojentos e feios, embora tenham as mesmas funções e sejam mais abundantes. E enquanto nas mulheres a depilação passou a ser uma obrigação, em alguns homens levados pela corrente da efeminização, é opção, mas não uma necessidade. Ninguém olha de lado um homem de calções e pelos nas pernas nem nos rimos do emaranhado de pelos no peito ou na axila. Já nas mulheres tornaram-se inaceitáveis para a sociedade e mentalidade de hoje, tornando-as quase proscritas … 

É verdade que as mulheres vivem apavoradas com “esses malfadados pelos”: Correm a depilar-se quando se aproxima o tempo de ir à praia ou chega o verão. Vestem calças em vez de saias por terem pelos nas pernas. Plantam-se diante do espelho catando cada um e julgam-se. Enquanto isso, como o mercado para os produtos e serviços que são essenciais na depilação precisava de crescer para além das mulheres, os homens passaram a ser “formatados” em novos conceitos como o metrossexual, que retrata a “sintonia do homem heterossexual com o seu lado feminino” e vive nas grandes metrópoles, com preocupação excessiva na sua aparência, o que até há pouco tempo era anormal e tido como próprio de um homossexual. Com a adesão a este novo tipo de apresentação masculina por parte de algumas vedetas, o conceito cresceu e com ele a depilação masculina, no todo ou em parte. Jovens são o terreno onde o mercado procura crescer, conquistando crentes vendendo a ideia de que é moderno e higiénico, o mesmo que se usou para atrair as mulheres.

Dizia uma reputada especialista na matéria: “À pergunta “porque nos depilamos?”, lá vem a maior mentira: porque é mais higiénico. Logo a seguir, a segunda mentira: os pelos são feios. E, finalmente, a terceira: é uma escolha minha”. A verdadeira razão da depilação é a pressão social, que não tem deixado outra escolha às mulheres (e agora a um certo grupo de homens). Curiosamente, na altura em que assistimos a uma adesão crescente à depilação por parte dos homens, sobretudo os mais jovens, assiste-se ao nascimento de um movimento feminino em sentido contrário, naquilo que consideram ser “retomar a posse do corpo” e o direito de recusar a depilação sem qualquer complexo pelo facto de ter pelos, que consideram naturais, livrando-se desse sacrifício crónico e regular que é o ato depilatório.

Quando penso em depilação masculina até os pelos se arrepiam e não sei como é que eles sentem o que eu sinto. É verdade que eles sabem que os defendo “com unhas e dentes” e até nem concebo arrancar um único, quanto mais puxar a “carpete” inteira à força! Quando muito, a aparadela do costume, seja ela na cabeça, nariz ou outro local onde se tornem demasiado grandes e a ultrapassar os limites do razoável. Em nome da moda, pressão social ou do que quer que seja, é preciso ter-se uma certa dose de loucura para os arrancar à força, sujeitos à dor e a um sofrimento voluntário. A mim é que não me apanham! E se um dia, por mais absurdo que pareça, vier a ser obrigatório, emigro … 

Nisto da depilação cada um deve ter o direito de escolher livremente se quer arrancar, rapar, queimar, aparar ou deixar crescer livremente a “penugem”, tal como já o fazem em tantas “decorações” (?) seja com todo o tipo de grafitis a preto e branco ou coloridos nos locais mais bizarros e secretos da pele, seja por apêndices metálicos pendurados ou enterrados em posições e partes do corpo mais ou menos visíveis. E essa escolha para ser livre devia ser consciente, mas em regra, não se faz mais do que alinhar pelas modas, copiar os “tiques” da vedeta A ou B e, o mais comum, ser induzido pela publicidade, marketing e os outros meios que a indústria e os media utilizam para nos manipular. E só não seremos levados a regressar aos usos e costumes do Homem das Cavernas, peludos e desnudados, por não interessar ao negócio e muito menos aos “manipuladores desta sociedade de consumo” em que vivemos e de que somos meras “marionetes” … 

Entre “dormir como uma pedra” ou … nada

Passamos um terço das nossas vidas a dormir, o que é essencial para sobrevivermos. E, se a memória não me falha, apesar de ter nascido a berrar, passei a “dormir como uma pedra” por muitos e bons anos. Se havia alguma qualidade boa que eu tinha enquanto jovem era essa, de me deitar, adormecer depressa e só acordar de manhã. E estou a falar do tempo em que na aldeia nos deitávamos às dez horas da noite, já que não havia televisão, não havia rádio nem iluminação pública. Aliás, a maioria das casas não tinha iluminação sequer. Por isso, como não havia nada para ninguém a única opção era ir dormir. No verão, como a noite chegava mais tarde e os vizinhos ficavam cá fora na conversa, a hora da deita era retardada, mas nunca depois das onze.

Quando fui estudar para Coimbra não estranhei a cama e continuei a dormir bem. E para o confirmar, logo na primeira noite de internato os alunos mais velhos quiseram pregar-nos uma partida, a mim e aos outros caloiros, deixando a cama metálica fora dos encaixes pelo que, mal me deitei, a cama caiu desmontada e o colchão ficou no chão com a roupa entalada. Como queria dormir e para não dar oportunidade a gozo, deitei-me ali assim mesmo e adormeci logo de seguida e só ao outro dia de manhã me preocupei em montá-la.

Quando acabei o curso fui estagiar a Angola e se nos primeiros três meses em que permaneci em Luanda dormi no quarto de uma pensão sem razões para que o meu sono pesado se alterasse, quando fui para Malange a comodidade acabou. Passei a dormir no quarto duma casa particular, com a rede mosquiteira a garantir-me a tranquilidade do sono, além dumas pequenas latas com óleo onde estavam enfiadas as quatro pernas metálicas da cama. É que os “percevejos” eram muitos e enquanto uns tentavam subir pelas pernas da cama sem conseguir porque acabavam a boiar no óleo das latas, havia muitos outros que subiam pela parede do quarto, andavam pelo teto até ficarem mesmo em cima da cama e atiravam-se em queda livre para aterrarem sobre “a comida”. Valia-me a rede mosquiteira, que não só os impedia de terem êxito no ataque aéreo, como me protegia ainda do voo picado dos mosquitos que “eram mais que muitos”. Por isso, o meu sono foi-se mantendo repousante e recuperador. Quando tinha de sair para os locais onde o Instituto do Algodão tinha campos experimentais e que me obrigava a ficar fora vários dias, dormia em casas próprias desse organismo, sem grandes condições, mas a rede mosquiteira que fazia questão de levar na bagagem era, quase sempre, garantia duma noite sem “bicharada” a estragar-me a noite de um sono só.

Seguiu-se o serviço militar, na época duro e exigente. E nem as noites passadas nas casernas de cá, nem os cerca de dois anos dormidos em Moçambique em condições precárias me tiraram o sono. A título de exemplo, no primeiro local para onde fomos, em Nantuego, dormia no “depósito dos géneros alimentares”, tendo “por companhia” um cabo quando não estava de serviço, centenas de ratos a passarem por todos os lados e milhões de baratas que faziam um barulho enorme e estranho ao esconderem-se sempre que se acendia a luz. Mas o sono integral mantinha-se. E nem na noite em que um soldado disparou três ou quatro tiros contra um leopardo que rondava perto da rede do aquartelamento com a arma apoiada na janela junto à qual dormia e continuei a dormir sem ter ouvido os estrondos da “caçada”.

As primeiras noites mal dormidas tive-as nos primeiros três meses após o nascimento do meu filho mais velho e até o pediatra detetar a bactéria intestinal que lhe provocava as dores e nos obrigava a dar-lhe colo toda a noite ou a abanar o berço, não por falta de sono, mas por falta de oportunidade para dormir o necessário. Eliminada essa causa, passamos a dormir bem, ele e nós, sem interrupções, insónias ou dores crónicas e eu voltei ao bom registo de “dormir toda a noite”.

Só quando entrei nos “entas” e me apareceu na coluna uma hérnia discal com as dores que só quem as tem ou teve é capaz de imaginar é que, verdadeiramente, passei a sentir o que são “noites malpassadas” e a ressaca que se tem no dia seguinte, com todas as consequências daí resultantes. Para mim passou a fazer sentido o provérbio “dormir é meia mantença”. Aliás, o médico que me diagnosticou hérnia antes mesmo de fazer o exame radiológico, fez-me um aviso em tom solene: “A partir de agora, lembre-se que tem costas”. 

E foram cerca de três anos com altos e baixos, crises e bonanças, noites mal dormidas pois nem me conseguia virar na cama tal era a dor, até a eliminarem sem recurso à cirurgia, mas mantendo a “hérnia de estimação”. Aí entrei numa nova fase de sono pois, sem a dor a “moer”, regressei ao regime de “boa noite”, mas sem poder dizer “como uma pedra”. Isso já se fora, provavelmente para sempre …

Daí em diante os anos foram acrescentando maleitas e estas “calhaus no dormir” que ajudaram a perturbar o sono. Depois de andar tempo sem conhecer a razão do mal-estar nas pernas, aumentado pelo calor da cama que me faz passar a noite num “destapa” que me dá frio ou no “tapa” que me volta a fazer calor, descobriram e batizaram esse mal-estar de “síndrome das pernas irrequietas”. E quando há noite de crise, apesar do sono estar lá, não dá para dormir. Ainda posso juntar a isto a tendinite do ombro, cotovelo e mão e as dores de costas que são recorrentes, mais quando abuso nos meus trabalhos de jardineiro e horticultor, além de ressonar muito durante um certo período, que até dava para me acordar a mim próprio.

Sendo o sono muito importante para a saúde física e psíquica de cada um de nós, pois é quando o organismo repara os tecidos, restaura o corpo, repõe energias e regula metabolismos, dou-me por felizardo pois durante algumas décadas usufrui dum sono profundo e único, de que saía “fresco como uma alface” no dizer do nosso povo. E mesmo depois, com alguns “inconvenientes” a perturbá-lo, posso dar-me por feliz se “olhar para o lado” e ver que há muitíssimas pessoas que já nem se queixam porque “dormir” é um castigo de tão mal que passam e sofrem. Só hoje, a Isabel lamentou-se porque o neurologista não lhe encontra causas para os “choques” que sente sempre que se mexe na cama e fazem da noite um martírio. Para a Maria o trabalho acaba por ser um alívio já que quando deitada na cama sente uma dor tal que é como se lhe estivessem a cortar a perna, o que não acontece durante o dia. O Maurício, que é crónico sofredor de insónias há muitos anos, não consegue que elas lhe deem folga e umas pequenas “férias” para descansar a cabeça desse pesadelo que é o não conseguir dormir e apesar da muita medicação a que tem estado sujeito. Além de uma mulher jovem que, disse, nunca soube nem sabe o que será “dormir como uma pedra”, tal a sua dificuldade em ter sonos prolongados e repousantes.

Dizem que “dormir é tão bom que nem dá para acreditar que é de graça”. Ora, sendo assim, não deveríamos ter problemas para dormir, pois já nos basta os que temos para nos levantar …   

7 palmos de terra ou pira funerária?

Como diz o ditado, a morte é parte incontornável e única certeza que temos da vida. Por si só, já é um assunto cheio de mistérios e tabus que muita gente nem sequer quer discutir, embora todos saibam que é aquilo que os espera. A sociedade leva-nos a evitar falar sobre esse processo e a substituir a palavra “morte” por eufemismos. Deixamos de falar sobre a “morte” e de usar a palavra, trocando-a por outras similares. Em vez de “morto” dizemos “falecido”, o quando “está a morrer” vira a “muito doente” e o “morreu” trocamos por “partiu”, “faleceu”, “finou-se” ou “apagou-se”. A morte até é tão democrática, chega a todos por igual não deixando ninguém de fora, ora um pouco mais cedo, ora um pouco mais tarde. Para a maioria das pessoas é um tabu de que se não pode falar como se, com isso, a possamos atrair. A verdade é que todos nós deveríamos pensar nela com tranquilidade. Perdemos a imensa sabedoria humana de aceitar a morte de modo natural. Claro que já ouvi algo como: “Para quê preocupar-me com a morte se tenho tantos problemas para resolver primeiro em vida”? Já percebemos que temos menos medo da morte, mas muito mais de pensar nela.

José Barbosa da Mota era uma figura da minha infância que, traído pela mulher num tempo em que traição era caso sério, deixou a terra no Alto Minho e veio parar à minha aldeia onde sobrevivia fazendo biscates. Com muita antecedência comprou o caixão que tinha ao alto atrás da porta do palheiro onde vivia. Ele dizia-se “estar preparado”. 

As funerárias anunciam funerais em jazigos, sepulturas ou cremações e até funerais sociais, com serviço completo do tipo “tudo incluído”. Não sei se na lista há o serviço de bar. Além do mais, também vendem serviços para melhorar a apresentação utilizando a tanatoestética e a tanatopraxia, conferindo bom aspeto ao morto, se é precisa uma boa aparência para ser enterrado e comido. Ainda têm para oferecer o serviço de música no velório e funeral e os habituais arranjos florais.

A tradição, especialmente em zonas rurais como a nossa, envolve um caixão e uma sepultura, que alguns substituem investindo num jazigo mais ou menos pomposo conforme a bolsa e a vaidade, porque até na morte existe. Nalguns casos, a escolha do jazigo ou até da sepultura com prateleiras acontece pelo medo de “ficar enterrado”. Presumo que seja mais pelo receio de sentir “falta de ar” do que por ter medo de vingança da bicharada. É que se diz por aí que eles nos “comem” para se vingarem dos inúmeros seres vivos que matamos enquanto andamos por cá, tantas vezes sem necessidade … 

Mas, como é vulgar dizer-se, a tradição já não é o que era e os centros urbanos foram os primeiros a romper com ela também neste caso. E a ideia de enterrar o corpo perde força a favor da cremação. Quem diria! Durante anos andaram-nos a acenar com um inferno feito de labaredas imensas para onde seriam atirados os pecadores e agora, pecadores ou não, aceitam como ótima opção ser incinerado a mais de mil graus de temperatura, numa pira funerária moderna e eficaz …

O primeiro crematório remonta a 1925, mas viria a ser encerrado, a meu ver por “falta de clientela com medo de chamuscar o rabo”. Mas as voltas da vida e da sociedade fizeram com que a “falta de espaço nos cerca de 5.000 cemitérios”, a crescente dificuldade das pessoas em fazerem a “visitação aos cemitérios”, a “fácil acomodação do pote das cinzas em casa” e a maior facilidade no “despacho do assunto”, têm feito com que os “clientes da cremação” aumentem de dia para dia, sendo igualmente uma opção em crescimento mesmo nas zonas rurais como é a nossa.

Até 1963, para a maioria dos católicos a cremação não era opção a ter em conta, mas a partir daí foi autorizada pelo Papa João VI. Porém, foi necessário que a sociedade e as mentalidades se alterassem pouco a pouco para o processo vir a ser aceite, embora há algumas religiões que continuam a não o admitir. Mas ainda nos dias de hoje o enterro é a cerimónia de despedida mais popular e, à partida, tida por ser … a mais barata. Acontece com as famílias que têm jazigo ou sepultura, o que simplifica logo o processo. Caso contrário, para quem tiver de o comprar e lhe somar as lápides, flores e visitações ao longo de anos, a conta final pode ser outra.

A opção pelo enterro é uma decisão a ter em conta, especialmente quando a família quer ter um local para visitar quem morre e onde ir prestar homenagem. E as visitas são importantes para muita gente, embora uma maçada para muitas outras. Além disso, o enterro tem certo valor simbólico e é tradição. E a tradição e a questão religiosa têm muito peso, principalmente em certas datas.

Claro que a cremação tem vindo a ganhar clientes e, como tem custo superior, até já existem “planos funerários de financiamento” onde o slogan publicitário deveria ser: “Morra e pague às prestações, que nós o cremamos a pronto”. A família pode guardar as cinzas em casa sem necessidade de ir ao cemitério, ter jazigo ou sepultura, colocar flores, fazer manutenções e pagar taxas. E, se a vontade do falecido for que as suas cinzas sejam espalhadas nalgum lugar escolhido por ele, onde repousará conforme o seu desejo, terminam para sempre as preocupações da família no momento em que elas são espalhadas ao acaso pelo vento.

Fazemos parte da natureza como qualquer outro ser vivo e devemos voltar a ela quando morrermos tal como uma árvore que cai com o vento e se desintegra lentamente, libertando os nutrientes que a compõem e irão alimentar e dar vida a novas vidas. Por isso gostaria de ver o meu corpo devolvido à terra, não num dos nossos cemitérios onde todo o tipo de jazigos e sepulturas se atropelam como uma feira de vaidades, mas num tipo americano feito parque onde cada um tem uma cruz simples e uma placa identificadora, porque ali ninguém tem que ser maior que ninguém. E assim, à sombra duma árvore, o corpo seria devolvido à natureza, entregue a biliões de pequenos seres que o transformariam em elementos básicos da vida, num benefício para o ecossistema envolvente com reciclagem completa a favor de outros seres vivos, o que não acontece com a cremação.

De uma forma ou de outra, temos de nos dar por felizes se a morte, quando chegar, só nos puder roubar a vida …  

Só estamos bem “do outro lado da porta”…

Na minha imaginação sempre que ouço falar em “viúva” ainda vejo uma mulher completamente vestida de negro, com rendas a esconder-lhe o rosto e um grande crucifixo ao peito. Além disso, era uma mulher condenada à “solidão eterna”, como se tivesse também “morrido” com o falecido marido. Nessa época, quando um dia perguntaram a uma mulher idosa que perdera o marido há muitos anos qual a razão por que continuava a manter o “luto cerrado” ela respondeu com toda a naturalidade: “Esta é a forma que tenho de manter o sentimento, respeito e saudade pelo meu homem”. No caso de ser o homem viúvo, apesar de ter um pouco mais de liberdade, não deixava de andar enlutado e havia muita dificuldade em ter novo relacionamento. Recordo que na aldeia onde cresci, a rapaziada “tocava os cornos” na noite da véspera do casamento de algum viúvo, o que era coisa rara. Mas essas imagens são duma infância distante, tendo a realidade mudado pouco a pouco com o tempo, a moral, as mentalidades e mesmo os novos conceitos de relacionamento. O luto foi encurtando tal como o comprimento dos vestidos e o preto cedo deu lugar à cor. Só nas Caxinas, Vila do Conde, as mulheres a quem o mar roubou os seus homens, se mantêm figuras vivas de um negro absoluto e, para a maioria, a viuvez, como o casamento, é para o resto da vida. Até as leis que impunham ao viúvo um “tempo de jejum e abstinência” para novo casamento, espera essa que era de 300 dias para as mulheres e 180 dias nos homens, mudaram e, com isso, desapareceu em 2019 o período de espera, sinal de novo tempo e novas formas de ver a sociedade.

A verdade é que um viúvo ou viúva não morre com o cônjugue e nem sequer tem de ficar condenado a viver sozinho o resto dos seus dias, sem alguém com quem compartilhar as refeições além do sofá, as alegrias e tristezas, os projetos e preocupações, quem comparticipe nas despesas da vida e nas dificuldades do dia a dia e de dar satisfação aos impulsos sexuais se ainda for o caso, sem ter de recorrer a processos alternativos. A sociedade em geral já reconhece isso, dá aval e encara com naturalidade o direito de cada um refazer a sua vida, mas há demasiadas vezes “pedregulhos no caminho”, gente que acha saber qual deve ser a duração do processo de luto para alguém que perdeu o seu par como se tivesse o direito de se intrometer nos sentimentos e na vida desse alguém. 

O processo de luto é variável conforme a pessoa, mas é habitual durar entre 6 meses e um ano. A partir do momento que o viúvo faz o luto pode passar à fase seguinte, isto é, encontrar uma nova experiência amorosa. Já Freud dizia que “resolver o luto é voltar a amar”.

Normalmente o que mais inibe as viúvas são os filhos. As que são mães de jovens adolescentes têm medo de meter outro homem em casa. Por isso tendem a criá-los primeiro antes de apostar no novo relacionamento. Mas, seja homem ou mulher, muito mais vezes do que podemos imaginar têm de estar preparados para a reação negativa de um ou mais filhos quando dá sinais, ainda que ligeiros, de querer conhecer alguém com eventual intenção de um futuro relacionamento. É que uma não aceitação poderá acontecer com filhos de todas as idades, credos e fatores sociais, culturais e económicos, pois há aspetos emocionais e financeiros envolvidos para aceitar a nova namorada do pai, o companheiro da mãe. Há filhos que têm medo de “perder” também o pai (ou a mãe) para a pessoa com quem se está a relacionar, deixando de ter a sua atenção. Por vezes invocam a lembrança da mãe (ou do pai) que morreu, como se nova vida amorosa seja motivo para esquecer de vez a sua memória.

Os filhos adultos são mais racionais e pensam muito na parte financeira, no possível aproveitamento de alguém para enganar e tirar partido da situação. Claro que estão a pensar mais neles do que no pai (ou mãe), pois não querem que o património voe e vá parar às mãos de qualquer oportunista de “falinhas mansas”. Como o homem é muitíssimo mais pateta, pois procura sempre mulher que “o trate bem”, “lhe aqueça os pés” e “tome conta da casa”, é normal ser facilmente “esmifrado”. Ainda esta manhã a senhora “Maria” me dizia que “os homens são uns bananas que só pensam em mimos, sopas e descanso”, enquanto as mulheres são muitas vezes “interesseiras e calculistas”. E, como conhece bem o “mercado das viúvas” que “andam à caça”, diz que uma maioria tem sempre em mente como estratégia “ir sacando da vítima” todo o tipo de “contributos”, competindo entre elas para ver quem mais consegue. Contou alguns casos concretos em que se permitem falar à mesa dos cafés para provocar as invejas do costume. Dizia uma, exibindo um anel à “amiga e concorrente”: “De onde veio este virão ainda muitos mais”. E não se inibem de enumerar os vestidos, sapatos, botas, eletrodomésticos, móveis, quando não carros ou apartamentos, conquistados à custa desse “jeitinho” especial a que os homens se submetem.

Um novo relacionamento de alguém que enviuvou não implica casamento e, em muitos casos, cada um continua a viver na sua casa, mantendo a independência necessária para uma eventual retirada estratégica a qualquer momento. Como hoje tudo é tão transitório, é melhor estar prevenido …

Para quem perdeu o conjugue e quer voltar a “meter-se na boca do lobo”, isto é, “em alhadas”, se tiver filhos deve informá-los da sua intenção sem se sujeitar a qualquer pedido de autorização, o que seria absurdo. A responsabilidade da “asneira” tem de ser assumida por quem se quer meter nela, sem a querer distribuir por gente inocente no caso de correr mal. E, provavelmente, vai. Mas a vida é isso mesmo: Queremos estar sempre do outro lado da porta …